Depois que baixar toda a água da enchente no Rio Grande do Sul, os municípios terão de lidar com mais um problema – a destinação dos resíduos sólidos oriundos da cheia. São montanhas e montanhas de entulho acumuladas nas calçadas. Segundo levantamento de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da consultoria Mox Debris, os detritos devem alcançar a marca das 47 milhões de toneladas.
Em entrevista a GZH, o especialista Martin Bjerregaard, um dos coordenadores do estudo, aborda o desafio de administrar essa quantidade gigantesca de resíduos. De acordo com ele, a separação e reciclagem de materiais de madeira e concreto é a solução ideal para evitar o pior: a provável sobrecarga nos aterros. Ele diz que, em termos de volume de entulho, a catástrofe no Estado é uma das maiores já ocorridas no mundo, comparável a tragédias como o furacão Katrina, em 2005, e cenários de guerra.
Martin é consultor em resíduos pós-catástrofe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e fundador da Mox Debris. Além da ONU, a empresa presta serviços para o Banco Mundial e a União Europeia, com especialistas que orientam as autoridades internacionais no planejamento de estratégias para a gestão de quantidades monumentais de resíduos – como o caso do RS.
O estudo constatou que foram atingidas pela enchente pelo menos 400 mil construções em áreas urbanas e que o volume de entulho pode chegar a quase 47 milhões de toneladas, certo? Como foi feito esse estudo?
Nós usamos um software que permite identificar alterações nas edificações e mapear as que provavelmente foram danificadas pela água. O programa de computador usado pelos pesquisadores da UFRGS, com base no nosso modelo, é capaz de verificar os telhados que sofreram alterações e os que provavelmente estão comprometidos. O sistema nos permite ver quais construções ficaram submersas, mapeando a mancha de inundação por meio de imagens de satélite. Também levamos em consideração a velocidade da correnteza e tempo de exposição dessas construções à água. Outro fator considerado é o número de pavimentos dos edifícios. Temos uma noção de quanto um edifício produz, em toneladas de entulho, por cada metro quadrado de espaço habitável. Portanto, o estudo analisa duas coisas: entulhos dos próprios edifícios danificados, e estimativas de destroços de construções que ainda estão de pé, mas que presumimos que, por terem ficado submersas durante tanto tempo, também terão suas estruturas condenadas.
Tecnicamente, o que pode ser considerado entulho? E por que é desafiador ter tanto lixo acumulado?
Restos de móveis, eletrodomésticos, utensílios ou mesmo casas inteiras, edifícios inteiros, tudo isso que foi originado da catástrofe é entulho. O cálculo que fizemos é apenas uma estimativa, nunca saberemos se essas 46,7 milhões de toneladas são o número exato, não tem como mensurar tudo. Mas não interessa. O recado principal disso tudo é que temos uma quantidade enorme de resíduos sólidos, e temos que pensar em como administrar isso. Um dos grandes desafios é onde colocar esses resíduos. Se tivermos 46, 40 ou mesmo 30 milhões de toneladas, é preciso muito espaço e muita terra, se formos apenas despejar esse material. Também tem toda a questão logística, de transporte desses resíduos, será preciso uma quantidade gigantesca de caminhões. E onde vamos encontrar toda essa terra? Quem vai oferecer terrenos para que esse lixo seja despejado? Queremos mobilizar as autoridades para que planejem essa destinação.
Considerando os estragos de outras catástrofes que você e sua equipe analisaram, que comparação podemos fazer? Qual é a dimensão dessa tragédia no RS, em termos de entulho gerado?
Também atuamos mapeando resíduos gerados em regiões de conflito, por conta de bombardeios, principalmente. Considerando o entulho gerado até o momento na Faixa de Gaza, com a guerra no Oriente Médio, por exemplo, a estimativa é que seja acima das 40 milhões de toneladas. Será uma quantidade de entulho semelhante à do Rio Grande do Sul, mas em um espaço bem menor. Também estamos realizando levantamentos no Azerbaijão, na Ucrânia, em Alepo, na Síria, e em Mossul, no Iraque. Em relação a outros eventos climáticos, atuei em New Orleans após o furacão Katrina, nos Estados Unidos. Foram geradas cerca de 80 milhões de toneladas de resíduos, na época. Mas, novamente, o entulho estava concentrado num espaço muito menor, em uma só cidade. Comparando com o grande terremoto e o tsunami no Japão, foi praticamente o dobro de entulho. Esse desastre em 2011 gerou 23 milhões de toneladas de resíduos. O caso do Rio Grande do Sul é muito particular por conta dessa questão geográfica. O principal desafio é a logística, tendo em vista que essa quantidade enorme de resíduos está espalhada por todo esse grande território. Será muito complexo por conta disso. É um efeito semelhante a desastres como terremotos, que abrangem uma área geográfica maior, muitas vezes.
O que essas experiências de outros lugares do mundo nos ensinam, em termos de gestão de resíduos? Quais são as soluções para o problema?
Como mencionei, a primeira pergunta para resolver o problema é entender onde vamos colocar o entulho. A segunda é compreender o que exatamente é esse entulho. De que é composto? E quanto desse material é possível reciclar? Tem muita madeira, boa parte das construções de bairros em situação de vulnerabilidade são de madeira. Além de janelas, portas e pavimentos de casas e edifícios de outros materiais. Toda essa madeira pode ser triturada e processada para reduzir seu volume e ser reaproveitada para outras finalidades, por exemplo. Resíduos da construção civil também podem ser triturados, peneirados e utilizados como matéria-prima para gerar novas construções, e eles podem ser armazenados por mais tempo, como blocos de cimento. Como muitas construções foram devastadas, sabemos que a madeira e resíduos como o concreto representam milhões de toneladas desses entulhos. E será necessário muito material para reconstruir essas comunidades destruídas, para recuperar rodovias. Portanto, reciclar seria também uma vantagem econômica. Em outros países, tijolos provenientes de catástrofes têm sido reciclados e utilizados para a construção de parques infantis, por exemplo. E o resto deve ir para os aterros, todo o plástico, todos os resíduos que não puderem ser reaproveitados.
Mas como é possível reciclar? Muitas pessoas estão receosas, pelo fato de os materiais estarem contaminados. Isso não é um problema?
É fácil de reciclar se o tivermos separado. Não podemos triturar e reciclar o concreto se este ainda estiver misturado de materiais plásticos ou têxteis. Por isso, é preciso separar e selecionar todo esse resíduo. E precisamos que as autoridades locais aprovem esses processos. Com a limpeza necessária e o cumprimento das especificações técnicas obrigatórias, é possível reciclar.
Como as autoridades locais podem articular isso e resolver o problema?
Depois de realizar a separação dos detritos, é importante garantir as ferramentas necessárias para esses processos, como caminhões, trituradores e máquinas de reciclagem, bem como aterros sanitários licenciados e preparados para receber esse material que não for reaproveitado. Além disso, é importante conscientizar a população para que as pessoas realizem a separação desses materiais na origem, sempre que possível. Há muito trabalho pela frente para as autoridades. Seria importante entrar em contato e trocar experiências com outros governos, com autoridades de locais que já tenham passado por eventos desse porte, como New Orleans. Outro exemplo é o Estado de Tabasco, no México, que passou por graves inundações.
Cada vez mais estão surgindo novos aterros, além de depósitos temporários, onde os entulhos estão sendo depositados provisoriamente. Qual é o risco disso para o meio ambiente?
Se os novos aterros não forem construídos corretamente, se forem apenas aquilo que chamamos de lixeiras a céu aberto, em locais aleatórios, teremos muitos problemas. Um deles é o gás metano, porque os resíduos que se decompõem criam metano, e esse é um dos gases do efeito estufa, além do dióxido de carbono. O Brasil já sofre com esses problemas, temos que evitar o aumento da emissão desses gases.
O que vai acontecer se não for realizado esse processo de reciclagem e destinação adequada?
Antes das inundações, provavelmente já existia o problema dos aterros sanitários e da capacidade deles. Os aterros são muito caros para os resíduos domésticos, e os aterros em todo o mundo estão ficando sem espaço. E construir novos aterros é muito caro, é um processo difícil. Por isso, depois que acabar a enchente, temos que tentar garantir que os entulhos que podem ser reciclados, que podem ser reutilizados, não vão parar em aterros. Senão, vamos encher estes espaços caros de entulho e, muito em breve, não haverá onde colocar os resíduos domésticos normais. No mundo todo, esse é um dos desafios. Será preciso construir grandes aterros sanitários e aterros de inertes. Não existe outra solução.