O avanço das palometas (Serrasalmus maculatus), espécie nativa do oeste gaúcho, por rios do leste do Estado causa desequilíbrios ambientais, como prejuízos a pescadores e ameaças à biodiversidade aquática. Naturais da bacia do Rio Uruguai, estes peixes podem chegar agora ao Rio Tramandaí. Eles atravessaram a região central do Estado e passaram a ocupar o Rio Jacuí com mais intensidade a partir de 2021, por meio das bacias do Vacacaí-Mirim e do Baixo Jacuí. O trajeto é de mais de 420 km.
— A palometa é um predador agressivo que ataca outros peixes e pode atacar anfíbios, eventualmente aves. Às vezes, mordisca humanos para investigar se é comida e pode sangrar. Na literatura, há registros de que ela faria isso por proteção do ninho em período de desova, que é feita na vegetação. Não existe ataque catastrófico de filme, devorando pessoas — explica o biólogo Fernando Becker, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Hoje, já há confirmação de palometas nas bacias dos rios Caí, Sinos, Taquari-Antas e Lago Guaíba, além de elas terem se espalhado pela Lagoa dos Patos – no total, são ao menos sete bacias invadidas em menos de dois anos. Também há estes animais avistados perto da região das lagoas do Casamento e Capivari, na zona nordeste da Lagoa dos Patos, segundo pescadores e moradores da região ouvidos por GZH.
— Aqui começaram (a pescar palometas) de fevereiro para cá, a partir do Carnaval. Em março, apareceu mais. São do tamanho de um palmo, e até filhote, pequeninho, do tamanho de um lambari — diz Celia Lopes, proprietária de um camping em Viamão, localizado na orla da Lagoa do Casamento, com espaço para pesca.
No fim de abril, por exemplo, o gerente comercial Evandro Couto, 39 anos, que vai mensalmente ao camping de Celia pescar por lazer pegou uma palometa com seu anzol, na beira da orla – geralmente, os peixes se embrenham em redes lançadas em áreas mais fundas.
— Onde tem palometa, não dá outro peixe. Eu já tinha ouvido falar dela, tanto que a reconheci. Ali no camping, já é conhecida — diz Couto.
Pescadores profissionais da região também já teriam avistado palometas mais adiante, na Lagoa Capivari, segundo a pescadora Ilda Rodrigues, que mora em Palmares do Sul, município localizado na orla da Lagoa do Casamento, no Litoral Médio. De três meses para cá, a espécie invasora passou a aparecer em redes de pesca, presença que ainda não se traduziu em prejuízos aos pescadores, diz ela.
— Já tem (palometas) na Lagoa Capivari. Daqui uns anos, o governo vai ter que dar uma força para nós, se elas continuarem — diz Ilza, temendo uma infestação que prejudique a pesca na região.
Em outras regiões onde há maior presença deste peixe, como o Rio Jacuí, há relatos de perdas de até 80%, de acordo com o engenheiro Júlio Salecker, coordenador-geral do Fórum Gaúcho de Comitês de Bacias. Além de atacar pescados nas redes, o que prejudica a atividade, a agressividade da espécie também é vista como uma ameaça ao turismo e ao esporte náutico em águas gaúchas, na avaliação de Salecker.
— Como ela não é originária dessa região, não tem seus predadores e acaba se metendo na cadeia alimentícia da fauna aquática. Come os peixinhos que alimentam os grandes e também atacam peixes em redes e espinheis desses pescadores das colônias — afirma.
Lagoas costeiras sob risco
A chegada das palometas na zona da Lagoa Capivari é preocupante para biólogos porque a área é considerada sensível devido ao seu uso agrícola. Por lá, há drenagem de águas por dutos para irrigar lavouras, o que pode abrir caminho a uma propagação da espécie invasora até as lagoas costeiras do Litoral Norte, que compõem a bacia do Rio Tramandaí.
Hoje, não há regramento ambiental que vede a transposição de águas de uma bacia a outra, segundo nota da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) enviada a GZH. Sem impedimentos do tipo, conexões artificiais como dutos, açudes e lavouras irrigadas podem se tornar vias de propagação para espécies invasoras, de acordo com biólogos.
— Há canais de drenagem, como rios retos e abertos em um terreno por onde passa água. Tem espaço para pôr uma canoa e, dependendo da época, é mais raso ou cheio. São para irrigação. O ideal seria ir in loco registrar a presença de palometas nessas áreas de conexão para bater o martelo, mas é uma rede de canais muito densa, com várias vias — diz Becker, que participou de saídas de campo à região para tentar mapear zonas de risco para propagação.
Uma potencial chegada destes animais até o Litoral Norte seguiria um padrão já visto para outras duas espécies invasoras que ocuparam o Rio Jacuí, chegaram à Lagoa dos Patos e são vistos na bacia do Rio Tramandaí há alguns anos. Ambos nativos da bacia do Uruguai, o “peixe-cachorro”, semelhante a um grande lambari com dentes caninos, e o “porrudo”, parecido com um bagre, chegaram à região e as hipóteses levantadas pelos pesquisadores são os canais de irrigação agrícola ou inundações em períodos de cheia.
No caso das palometas, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) coordena o plano de prevenção, controle e monitoramento da palometa em parceria com o governo estadual. A questão é levada a sério porque invasões biológicas são uma das principais causas de extinção de espécies, devido aos desequilíbrios ambientais que geram.
— Nosso entendimento é de que teriam de ser feitos isolamentos de canais que não tenham sido autorizados e também que sejam criadas barreiras nos levantes de captação de água para as lavouras. No Rio Capivari, há canais que estão lá desde a década de 50 e é uma rede enorme que não temos dimensão — diz o biólogo Maurício Vieira, analista ambiental do Ibama, responsável por investigar a infestação em parceria com a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e pesquisadores, como Becker.
Vieira explica que, hoje, o Ibama tem apenas monitorado a expansão porque não há métodos de controle conhecidos e disponíveis para impedir a propagação da espécie. Nos últimos meses, o instituto tem fechado a identificação de pontos que poderiam facilitar o acesso das invasoras à bacia do Litoral Norte para ver se é viável tecnicamente a correção desses pontos de contágio entre bacias.
— No Capivari, área do Litoral Médio, tem esses canais. Não teria como o peixe subir rio acima e atravessar um morro, então ele poderia atravessar por essas vias de irrigação e entrar na bacia ali pela região de Cidreira, mais ou menos. São canais artificiais em que foi rompido o relevo natural, então há a transposição de águas de uma bacia para outra. É uma preocupação — reforça o ecólogo Dilton de Castro, presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Tramandaí.
Inundações e lavouras
Hoje, biólogos também rastreiam como as palometas saíram da bacia do Uruguai para iniciar seu caminho até a Lagoa dos Patos. Um artigo publicado em julho de 2022 na prestigiada revista Fish Biology pelo biólogo Vinícius Bertaco, pesquisador da Sema, teoriza que uma transposição de águas por meio de canais usados para abastecimento público ou para a agropecuária, sobretudo o arroz irrigado, abriu a passagem das palometas do oeste para o leste gaúcho.
Na avaliação dos pesquisadores, açudes na região de São Gabriel, cidade a 145 km ao sudoeste de Santa Maria, são suspeitos para a abertura da passagem do Rio Ibicuí, da bacia do Uruguai, para o Rio Vacacaí, que deságua no Jacuí. “Há a suspeita de que conexões artificiais de bacias hidrográficas ocorram como uma consequência da gestão da terra e água para a agricultura (diques, canais e drenagens) ou a transposição para uso público”, diz o estudo, que também foi assinado por Becker.
Na opinião do engenheiro agrônomo Ivo Mello, chefe do núcleo de Assistência Técnica e Extensão Rural de Alegrete do Instituto Rio-Grandense do Arroz (Irga), é improvável que as lavouras de arroz da região sejam as responsáveis pela propagação. Mello diz que lá há poucas lavouras do grão e que elas estão muito próximas aos canais principais dos rios, o que dificultaria o contato entre as bacias. O engenheiro, no entanto, considera o cenário plausível para as lagoas costeiras do Litoral Norte.
Como não sabemos o exato mecanismo, temos que levar em conta todas as possibilidades. A invasão por meio de canais de irrigação é uma delas, mas pode ser também uma situação de cheia que alague a área e a invasão ocorra naturalmente em uma ligação que ocorra entre as bacias.
UWE SCHULZ
Biólogo e professor titular da Unisinos
— Entre a Lagoa dos Patos e o litoral, o divisor de água é muito tênue. São dunas de areia, estradas. Existe a possibilidade de se puxar a água da Lagoa dos Patos para o sistema das lagoas perto de Quintão, Cidreira, Pinhal. É comum que a drenagem pegue ovas de peixes ou animais na beira dos rios e puxe-os para a lavoura, que vira um berçário. Quem adora são as aves, tanto que a plantação fica infestada delas, que têm ali uma refeição diária com os peixinhos que se desenvolvem perto do arroz — diz.
Lavouras, no entanto, não são as únicas possibilidades para a transposição de palometas do Ibicuí para o Vacacaí. Há também uma segunda hipótese, a partir da qual inundações em períodos de chuvas podem ter favorecido a invasão. A partir da primavera, há previsão de, no mínimo, um El Niño forte. Isso, por exemplo, pode favorecer a infestação das palometas devido a enchentes e cheias que já são esperadas para a estação.
— Como não sabemos o exato mecanismo, temos que levar em conta todas as possibilidades. A invasão por meio de canais de irrigação é uma delas, mas pode ser também uma situação de cheia que alague a área e a invasão ocorra naturalmente em uma ligação que ocorra entre as bacias — avalia o biólogo Uwe Schulz, professor titular da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos).
Há, no entanto, um consenso entre especialistas. Não há a possibilidade da infestação ter partido de intervenções pontuais, como pessoas que movem peixes de um rio para o outro ou ovas carregadas por animais. Isso porque, para uma espécie invasora se estabelecer, é necessário um fluxo constante ao longo do tempo.
— Para uma espécie estabelecer uma população, não pode ser um indivíduo só, e sim muitos chegando de modo que haja uma janela de oportunidade para que, na época certa, ele sobreviva e se reproduza. São janelas ecológicas nem sempre disponíveis. Deve haver indivíduos chegando com frequência e muitas vezes durante um certo tempo até formar uma "colônia". Isso se conhece de invasão por planta e invertebrado. É raro partir de indivíduos pontuais — explica Becker.
O que diz o Ibama
De acordo com Vieira, é improvável que a soltura de palometas avulsas nos rios do leste gaúcho tenha resultado na colonização dessas bacias, sendo mais provável a existência de vias de passagem contínua, que não precisam estar necessariamente abertas 100% do tempo, como nas hipóteses dos canais de uso agropecuário ou de inundações eventuais.
Hoje, já não há mais esperança de que intervenções humanas contenham a infestação. Por isso, especialistas estão aguardando que a invasão resulte em um novo equilíbrio ecológico.
— Uma coisa interessante a se ter em mente: esse problema das espécies invasoras é mundial, ocorre com milhares de animais e isso é objeto de preocupação porque é um dos fatores que pode levar a extinção de outras espécies. Esses estudos mostraram que, no início das invasões, há uma curva ascendente e uma explosão da população, mas a tendência ao longo do tempo é de que o ambiente também pressione a espécie e ela começa a entrar em um novo equilíbrio — explica.
Contudo, na avaliação do analista ambiental, é improvável que haja extinção de espécies, apesar de o risco existir.
— A situação vai exigir ainda bastante atenção e vai ser um aprendizado interessante para todos — diz.
O que diz a Sema
A Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) informa que, embora a Lei Complementar 140/2011 estabeleça como competência da União o controle de espécies exóticas invasoras, estados e municípios compartilham de atribuições, tais como formular e fazer cumprir a Política de Meio Ambiente, exercer a gestão de recursos ambientais, integrar programas de proteção e gestão ambientais da administração pública, desenvolver estudos e pesquisas, entre outros.
Dessa forma, a Sema lançou, em 2018, o programa Invasoras RS, que tem como objetivo o monitoramento das espécies exóticas, de forma a colaborar com o Ibama nesse controle.
O Rio Grande do Sul tem atuado em frentes para conscientizar a população. Entre as iniciativas está a criação do aplicativo Invasoras RS. O RS já reconhece 127 espécies exóticas invasoras presentes no Estado, nas quais quatro são monitoradas pelo aplicativo: Javali, Axis, sagui e caracol gigante africano.
Outra ação foi o lançamento, em 2020, de uma animação do programa Invasoras RS, mais uma ferramenta para orientar e informar a população sobre essas espécies que são introduzidas em um novo ambiente, resultando em uma invasão biológica e colocando em risco as espécies nativas, a saúde humana e a economia.
Se tratando das palometas, o Ibama é o principal ator, pois coordena o Plano Estadual de Prevenção, Controle e Monitoramento da invasão biológica pela espécie Serrasalmus maculatus (palometa) na Região Hidrográfica do Atlântico Sul no estado do RS, em que a Sema participa e tem cooperado para implementar ações conjuntas.
Para reunir os registros da espécie ao longo do rio Jacuí, foi disponibilizado um formulário eletrônico (https://forms.gle/Ut67h4KYKEM82yPi9), divulgado no perfil do Programa no Instagram, onde também foi divulgado artigo publicado com colaboração dos ictiólogos do Museu de Ciências Naturais.
Até o momento não há regramento que proíba - da parte do licenciamento ambiental – a transposição de bacias.
Cabe ressaltar que o combate a espécies exóticas invasoras é reconhecido pela ciência como um dos maiores desafios para a conservação da biodiversidade no planeta.
Combater espécies invasoras requer engajamento e sensibilização de toda a sociedade. Somente com a colaboração de todos será possível enfrentar as invasões biológicas.