Um “namoro acidental” entre uma espécie de lobos-marinhos adaptada ao frio e outra ao calor gerou uma terceira, adaptada a um clima intermediário na costa peruana. Essa é a primeira vez que se confirma que um mamífero se originou de cruzamentos diretos entre linhagens distintas – um tipo de origem evolutiva mais comum entre espécies de plantas do que animais.
Os resultados foram publicados na revista científica Science Advances por cientistas de nove países, liderados pelo biólogo e geneticista Sandro Bonatto, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A pesquisa partiu do doutorado de um dos orientandos de Bonatto, o biólogo Fernando Lopes, que estudou a história evolutiva desses animais na América do Sul.
O “namoro” entre os animais de linhagens diferentes teria ocorrido há cerca de 430 mil anos, quando lobos-marinhos-de-galápagos, que viviam sob o calor do arquipélago equatoriano de Galápagos, migraram para o Sul até a costa peruana em Punta San Juan, reserva próxima à região das Linhas de Nazca, a 530 quilômetros de Lima.
No litoral andino, o grupo dos animais galápagos se encontrou com um outro bando, mas de lobos-marinhos-sul-americanos que, por sua vez, veio dos litorais gelados do extremo-sul do continente. Essa outra espécie habita uma região que sai da costa chilena e circunda o sul latino-americano até a Ilha dos Lobos, próxima ao município de Torres, no Rio Grande do Sul.
Com uma migração em direção ao Norte do Oceano Pacífico, esses lobos-marinhos acostumados ao frio se encontraram com os de Galápagos, adaptados ao clima equatorial, e ambos se reproduziram em uma região peruana isolada de seus agrupamentos originais, originando uma espécie nova e híbrida, fixada em Punta San Juan.
— É um local justamente no meio do caminho, 2 mil quilômetros ao Sul de Galápagos e, mais ou menos, 2 mil quilômetros ao Norte do sul chileno. Nessa região, o clima e a temperatura do mar são intermediários, então surgiu uma espécie que se adaptou e imaginamos que metade do genoma que ‘veio do frio’, e a outra ‘do calor’, possibilitou essa sobrevivência e reprodução com uma colônia estável, por ser um genoma híbrido — explica Bonatto.
O biólogo e geneticista diz que ainda não se sabe o que levou os grupos de animais a migrarem, mas a hipótese é que eventos climáticos como o El Niño muito intenso podem ter levado as espécies a viajarem longas distâncias até a costa peruana.
Lobos-marinhos híbridos
O fato de um cruzamento direto ter gerado uma nova espécie híbrida é o que torna inédita a descoberta do grupo de pesquisadores. Às vezes, como quando há cruzamentos entre cavalos e burros, ambos equinos, os descendentes são inférteis (as “mulas”). Mas, neste caso, entre lobos-marinhos, a linhagem era fértil e gerou descendentes que herdaram e consolidaram suas características únicas.
Geralmente, as novas linhagens surgem de populações que acabam isoladas de seus ancestrais e, ao longo de milhares de gerações, vão acumulando diferenças até se tornarem tão diferentes de seus parentes originais a ponto de virarem espécies novas, explica o biólogo e geneticista. O caso do lobo-marinho-peruano é especial porque não seguiu esta tendência.
Isso porque, quando mamíferos semelhantes cruzam, suas cargas genéticas costumam ser incorporadas por descendentes sem gerar espécies novas, diz Bonatto. A própria humanidade é um exemplo. No passado, a nossa espécie, batizada de homo sapiens, se reproduziu com humanos de outra, os já extintos neandertais. O resultado foi que, hoje, cerca de 5% do nosso genoma tem herança neandertal, sem que tenhamos nos tornado uma espécie nova.
— Nesse caso (do lobo-marinho-peruano), essa origem foi muito rápida porque, normalmente, os indivíduos híbridos em situações especiais, se estão isolados de suas espécies parentais e são férteis, podem formar rapidamente uma terceira espécie. Em plantas, isso é um mecanismo relativamente comum, mas em mamíferos esse surgimento por hibridização entre indivíduos de espécies distintas nunca havia sido totalmente demonstrado com um grande conjunto de evidências atualizadas — explica.
A linhagem recém-identificada está no planeta há mais tempo do que nós. Isso porque na época do “namoro” entre lobos-marinhos, os homo sapiens ainda não habitavam a Terra – nossos ancestrais mais diretos surgiram apenas há 300 mil anos atrás.
Pressão climática
Segundo Bonatto, hoje existem cerca de 30 mil indivíduos de lobos-marinhos-peruanos, espécie que agora está em processo de catalogação após a publicação do estudo que atestou suas origens genéticas.
normalmente, os indivíduos híbridos em situações especiais, se estão isolados de suas espécies parentais e são férteis, podem formar rapidamente uma terceira espécie. Em mamíferos esse surgimento por hibridização entre indivíduos de espécies distintas nunca havia sido totalmente demonstrado com um grande conjunto de evidências atualizadas
SANDRO BONATTO
Biólogo, geneticista, professor da PUCRS
Essa população costuma variar por fatores climáticos, já que na região costeira do Oceano Pacífico eventos como El Niño costumam levar à seca, a altas temperaturas e a uma menor disponibilidade de alimentos, como peixes, para os animais. Com isso, até 70% dos lobos-marinhos da região morrem, estima o biólogo.
De acordo com ele, mudanças do gênero tornam a espécie vulnerável aos impactos do aquecimento global, que podem até “extinguir a espécie” no futuro. Isso porque as temperaturas mais quentes atraem os grupos de lobos-marinhos-de-galápagos bem-adaptados ao calor até o sul. Hoje, já há colônias dos animais no norte peruano, próximo ao berço da espécie andina.
— As condições de Galápagos são extremas e equatoriais. O norte do Peru está aquecendo e isso já permitiu que essa espécie totalmente adaptada a uma região tropical vá a essa região mais fria. Se isso continuar, os lobos-marinhos-de-galápagos vão se expandir, se encontrar com os peruanos e, como eles fazem híbridos férteis, vão se misturar até a espécie nova se desfazer e ser substituída — alerta.
O estudo do grupo de Bonatto foi financiado pelas agências brasileiras Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). Já os estudiosos estrangeiros que participaram do trabalho receberam apoio dos governos norte-americano e sueco para a participação na pesquisa.