A Defesa Civil estima prejuízos bilionários com eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul. O mais recorrente entre esses eventos é a estiagem, que atingiu com força do Estado nos últimos dois anos. De acordo com a instituição, entre os meses de outubro de 2019 e janeiro de 2020, 105 municípios tiveram situação de emergência decretada devido à seca, com prejuízo estimado de R$ 3,2 bilhões na economia gaúcha, somando propriedades públicas e privadas. O quadro entre 2020 e 2021 não é diferente – no mesmo período, 107 municípios entraram em emergência, com prejuízos estimados em R$ 2,6 bilhões.
As notícias de desastres naturais têm sido recorrentes para a população gaúcha, pela falta de chuva ou pelos danos causados pelo excesso de precipitação, outro tipo de evento extremo bastante recorrente. Um exemplo emblemático vem de Camargo, que tem cerca de 3 mil habitantes e fica no norte gaúcho. Em fevereiro de 2020, cinco dias após decretar situação de emergência pela estiagem, o município foi atingido por uma chuvarada acompanhada de ventos que destelharam 70 casas. O decreto acabou sendo renovado por motivo diferente.
– Já estávamos com problema de falta de água e perda grande na produção agrícola. Praticamente 70% da arrecadação do município é oriunda do setor primário. A gente já estava com essa dificuldade e, agora, amanhã estaremos decretando situação de emergência e de calamidade até, acredito, em função do vendaval – afirmou, na época, a então prefeita municipal Eliani Trentin.
Climatologistas avaliam que as situações extremas devem se tornar ainda mais recorrentes nos próximos anos. Esse é um dos diversos efeitos provocados pelas mudanças climáticas globais. Uma análise da Agência Espacial Norte-Americana (Nasa) publicada em 14 de janeiro mostrou que a temperatura global subiu 1,02°C em 2020 em relação à média móvel dos anos de 1951 e 1980, tornando o ano passado o mais quente já registrado pela instituição.
“O último ano mais quente, 2016, havia tido um aumento significativo devido à forte manifestação do El Niño (alteração na distribuição da temperatura da superfície da água no Oceano Pacífico). A falta de um efeito similar neste ano é uma evidência de que o clima continua a aquecer devido aos gases do efeito estufa”, afirmou o diretor de estudos espaciais do Instituto Goddard Gavin Schmidt em nota.
Para além do efeito do aquecimento global, o cenário brasileiro dá significativa contribuição para os eventos extremos com o desmatamento florestal, segundo climatologistas. A taxa de desmatamento divulgada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) cresceu 9,5% em um ano, atingindo 11 mil quilômetros quadrados de área desmatada entre os meses de agosto de 2019 e julho de 2020 – intervalo que calcula o ciclo completo de chuva e seca. A meta proposta na Convenção do Clima de Copenhague (Dinamarca) em 2009, assinada pelo Brasil, era menos de um terço disso (3 mil quilômetros quadrados).
De acordo com Francisco Aquino, climatologista do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o desmatamento na Amazônia está diretamente relacionado com a estiagem verificada no Estado.
– A circulação de umidade na atmosfera vem sofrendo alterações, os regimes hídricos vêm sofrendo alterações. Somado às atividades humanas, isso provoca uma crise ambiental. “Crise” é uma palavra boa para utilizar neste momento – afirma o climatologista.
Aquino pondera que o excesso no desmatamento provoca alterações no regime hídrico – o conjunto de variações de chuva e dos rios – de todo o Brasil, não apenas da Amazônia. Isso por que a umidade do norte brasileiro ajuda a manter o equilíbrio entre as precipitações e os períodos de seca.
O que a comunidade científica vêm alertando é que estamos chegando ao limite para os sistemas amplificarem esses defeitos e os ecossistemas colapsarem.
FRANCISCO AQUINO
Climatologista (UFRGS)
– Muitas vezes a Amazônia abasteceu o Sul e ficou com déficit hídrico. A umidade criada por ela, neste momento, talvez não seja suficiente para abastecer a ela mesma. O que a comunidade científica vêm alertando é que estamos chegando ao limite para os sistemas amplificarem esses defeitos e os ecossistemas colapsarem. Não vão conseguir se recuperar se a gente não parar de desmatar. Temos recordes na Amazônia por falta de fiscalização, por que alguém desmata e bota fogo para limpar a área. O fogo sai do controle porque a região está mais seca do que deveria.
A meteorologista Cátia Valente, responsável pela Sala de Situação da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, pondera que a conexão entre os dois fatos pode não ser facilmente observável. Segundo ela, os períodos de alta no desmatamento são pequenos perto do tempo em que acontece uma mudança climática. Entretanto, Cátia ressalta que os eventos extremos estão se tornando regra:
– Eles têm sido cada vez mais frequentes e intensos. Se estão relacionados a mudanças climáticas, a ciência pode dizer.
Cátia observa que a presença do fenômeno La Niña, que provoca um resfriamento nas águas do Pacífico, teve enorme impacto na distribuição de chuvas no Rio Grande do Sul nos últimos anos.
– Tivemos, no verão de 2020, uma estiagem prolongada, que se estendeu pelo outono. La Niña atuou durante a primavera, desfavorecendo novamente as chuvas. Tivemos alguns eventos grandes de chuva, na parte norte do Estado, mas foram pontuais. No último ano, não tivemos recuperação do déficit hídrico que se consolidou desde o verão. Até agora, temos um déficit hidrológico de 300mm a 800mm acumulados no Estado – esclarece a meteorologista.
Cátia é uma das pessoas responsáveis por disparar os alertas de eventos climáticos extremos, que as pessoas podem receber por mensagens de texto no celular. Projetando os próximos meses, ela declara que a chuva do início de janeiro melhorou um pouco a situação, mas o sistema hídrico do Estado “segue comprometido”.
– Pelo menos até meados do próximo ano, teremos chuvas irregulares e problema de déficit hídrico. A perspectiva é de que a situação melhore a partir do segundo semestre deste ano, com o Oceano Pacífico menos frio. Pelo menos até metade do ano, o cenário não é positivo – diz.
Já o professor Francisco Aquino observa a necessidade de aumentar a fiscalização ambiental, não apenas para diminuir o desmatamento na Amazônia, mas para recompor o sistema climático como um todo – e isso inclui diminuir os danos da estiagem no Rio Grande do Sul.
– Uma floresta como a Amazônia não tem grandes períodos de estiagem e seca. É exuberante porque abastece e se recompõe. O que vem acontecendo nas últimas quatro décadas é que em todo ano geramos dano. Quando as políticas públicas são favoráveis a fiscalizar, controlar, você percebe que o sistema se recompõe, quer melhorar. Quando suavizamos a fiscalização e o controle, o sistema degrada rapidamente – afirma Aquino.
O impacto das mudanças climáticas na prática: veja, na galeria abaixo, eventos extremos registrados pelos fotógrafos de GZH no Rio Grande do Sul ao longo de 2020
Os eventos climáticos extremos, incluindo as tempestades rápidas, porém violentas, trazem efeitos na agricultura que são sentidos mesmo na vida dos habitantes das áreas urbanas. Em junho de 2020, o efeito da estiagem no PIB gaúcho foi de 3,3%, afetando diretamente as produções de soja (-27,7%), milho (-19,3%) e fumo (-22%). Colheitas como o milho verde, o espinafre e a vagem ficam diminuídas pela falta de chuvas, aumentando os preços nas gôndolas dos supermercados.
– Afeta a biodiversidade em geral. O produto da feira tá mais caro. Você vai planejar os próximos 50 anos sabendo que vai gastar mais com seguro, mais com prejuízo. Todo agricultor, quando vai buscar mais financiamento, mais seguro, depara com riscos maiores. O banco diz que há mais riscos porque a mudança climática é real. É automático – diz Aquino.
O climatologista pondera que a pandemia demonstra que as relações predatórias com o ambiente vão agravar esses problemas nos próximos anos.
– A pandemia é resultado do desmatamento, das questões ambientais, da degradação de modo geral. É um exemplo típico da dissociação do nosso modo de vida com a realidade do planeta. Para algumas pessoas, podemos ter investimento, aplicação, rentabilidade, usando o recurso natural da forma mais agressiva possível, sem pensar no amanhã. Isso nos condena por completo.
Cátia Valente também considera que a educação ambiental é essencial para melhorar a preservação e diminuir os danos à natureza, mas que isso deve trazer uma camada de pertencimento às novas gerações.
– A comunidade deve se sentir pertencente ao meio ambiente. Temos que explicar o que são as mudanças climáticas, por que e como elas ocorrem e, ao mesmo tempo, fazer com que o menino do bairro saiba que aquele lixo que aquele usa vai para algum lugar, pode impactar a chuva mais forte que vai acontecer e todas as suas consequências. Acredito na educação ambiental e nas ações das comunidades, nos bairros, no sentido mais prático. A ciência precisa trabalhar mais na área da gestão, com políticas públicas, trazendo as universidades para as tomadas de decisão, com iniciativas públicas e privadas – afirma.