Pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o climatologista Antonio Donato Nobre, 62 anos, é reconhecido como um dos maiores especialistas na biodiversidade amazônica no Brasil. Seu trabalho introduziu na literatura científica o conceito de “rios voadores”, que descrevem a transferência da umidade da floresta para as regiões produtivas do Brasil. Nesta entrevista a GZH, ele analisa os efeitos do desmatamento nos sistemas climáticos brasileiros, inclusive no Rio Grande do Sul, e diz que a educação ambiental das novas gerações pode diminuir os efeitos danosos das mudanças climáticas.
Estamos em um cenário em que os índices de desmatamento da floresta amazônica bateram recordes em 2019 e 2020, e não há sinal de que isso possa ser revertido, dada a política ambiental atual no Brasil. Como o senhor vê esse cenário?
Muito ruim. Estamos vendo uma política pública irresponsável e descarada dando resultado.
Há espaço para que o Brasil possa reverter esse cenário?
Sempre deve haver espaço para a luta pela defesa do berço esplêndido. Contextos políticos facilitam ou dificultam a luta. O que está em jogo é o futuro da vida no Brasil.
A política ambiental, muitas vezes, é considerada pelos brasileiros que vivem nos centros urbanos como algo distante de suas vidas. Na sua palestra histórica no TEDx Amazônia, em 2010, o senhor citou, na explicação dos “rios sobre nós”, que o desmatamento da floresta tem consequências diretas nas nossas vidas, como a estiagem no rio grande do sul, por exemplo. Como o senhor explica isso para alguém que não vê essa relação?
Explicaria assim: “Olhe para um mapa-múndi, veja onde estão localizados a maioria dos desertos ao redor do globo. Constate que o centro-sul da América do Sul, a leste dos Andes, é uma exceção à regra. Depois olhe no Jornal Nacional, quando mostram a imagem de satélite do continente na previsão do tempo, o movimento das nuvens pela Amazônia na direção dos Andes, e acompanhe sua trajetória até o Rio Grande do Sul. São os rios aéreos de vapor que transportam a matéria-prima para a formação de chuvas em uma região que, de outra forma, seria deserto”. Há vários vídeos no YouTube explicando esse processo e a importância da floresta saudável na Amazônia para as chuvas em outras regiões do Brasil.
É possível dizer que o calor sentido por vários dias seguidos no verão, decorrente de uma bolha atmosférica, tem a ver com o desmatamento?
Sim, é uma relação demonstrada pela ciência e que já era conhecida pela sabedoria de povos nativos desde tempos imemoriais.
Como a educação no Brasil pode ser direcionada para uma melhor compreensão da necessidade da política ambiental?
Olha, crianças a muito custo são ensinadas a ignorar o ambiente como uma condição básica para a existência da vida.
Como o senhor vê a ideia do presidente eleito dos EUA, Joe Biden, de promover um fundo para diminuir o desmatamento da Amazônia, dando a entender que podem ocorrer sanções econômicas caso o Brasil não faça algo a respeito?
É uma excelente medida. Espero que não precisemos chegar a tanto, e que o Brasil retome sua política vencedora de combate ao desmatamento e proteção da floresta e do clima. Proteger a fonte dos rios voadores interessa primeiro ao Brasil e aos brasileiros.
O senhor costuma trazer, nas suas falas, uma reflexão sobre as capacidades sensoriais dos humanos de absorverem a “elegância” da natureza. Como descrever isso para os nossos leitores?
Quando estamos nos alimentando, nossa língua descreve uma coreografia inacreditável e eficiente dentro da boca. Sentimos os alimentos por consistência, forma, sabor, temperatura, umidade e os transportamos por entre os dentes, permitindo sua trituração. Depois, encaminhamos para a deglutição, quando se liquefazem. Se falamos enquanto comemos, toda essa dança muscular combina com a modulação do fluxo de ar, para produzir sons e palavras. Tudo é entremeado pela respiração, que passa o oxigênio para dentro e o dióxido de carbono para fora. É difícil imaginar um processo tão enormemente complexo. E, apesar disso, qualquer pessoa saudável faz todas essas operações na boca com simplicidade e elegância. Assim é a natureza, um cosmos de complexidade, apresentado de forma natural.
A pandemia trancou as pessoas em suas casas, cada vez mais longe das realidades da natureza e dos aspectos sensoriais dela, dependendo das telas e da energia elétrica. Isso não prejudica essa capacidade sensorial de entender a natureza?
Sim. Por um lado, a distância dos ambientes naturais prejudica nossa conexão com a vida. Por outro, o afastamento da feérica babel do consumismo à qual nos entregamos nos circuitos de distrações externas à casa abre espaço para conexões íntimas conosco e com a família. A natureza e o universo inteiro estão alojados como semente fractal dentro de cada ser humano. Uma viagem imaginativa e sensorial ao nosso próprio corpo pode nos levar ao êxtase, ao reconhecimento da grandiosidade dos processos da vida.
Como a primeira geração que observa a necessidade de conhecer as mudanças climáticas, o que o senhor falaria para pais e mães que precisam dizer para seus filhos da necessidade de preservar o planeta?
Pais e mães, da mesma forma que cuidam dos seus filhos e filhas, com carinho, responsabilidade, amor e respeito, devem ensiná-los a cuidar da vida no planeta, explicando que, sem a natureza, infelizmente, encontraremos o nosso fim.