No final de 2015, o climatologista Francisco Aquino começou a montar uma biblioteca da chuva de Porto Alegre. Pesquisador do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele havia ajudado a estabelecer um módulo científico nos confins da Antártica, a 84º de latitude sul, e vinha analisando amostras de neve e gelo coletadas no local para entender o comportamento do clima na Terra ao longo de muitos milhares de anos.
Aquino teve a ideia de fazer o mesmo tipo de análise química com a água que se precipitava sobre a capital gaúcha. Instalou no Campus do Vale, em Viamão, um pluviômetro que impedia o processo de evaporação, para preservar a estrutura molecular original, e começou a coletar e armazenar em pequenos frascos alguns mililitros de eventos específicos, de chuvas semanais e de acumulados mensais.
Uns dias depois, no começo de 2016, ano mais quente da História, a América do Sul vivia uma semana escaldante, com uma onda de calor intenso sobre o Sul do Brasil. Na noite de 29 de janeiro, o mundo caiu, bem em cima de Porto Alegre. Uma tempestade de violência inédita, com rajadas de vento próximas dos 120 km/h, derrubou 4 mil árvores, danificou casas e edifícios, alagou ruas e imóveis, provocou danos sérios ao sistema de fornecimento de energia, afetou serviços e convulsionou a rotina da cidade por dias. O prejuízo foi de R$ 42 milhões.
– Casualmente, começamos a coletar água da chuva e veio esse evento intrigante – recapitula o pesquisador.
Aquino submeteu uma amostra do dia 29 de janeiro à leitura da concentração de Oxigênio-16 e Oxigênio-18, o que permitiria determinar a origem da massa de ar que provocou a precipitação. Normalmente, em eventos severos, essa origem é a Amazônia. Mas não foi o que apareceu nos resultados. A água tinha uma assinatura típica da Antártica. Mais do que isso, tinha vindo do interior do continente, passando pelo gélido Mar de Weddell, uma origem inusitada, porque não é de lá que costumam vir as massas de ar polar que alcançam a América do Sul.
– O ar estava vindo de uma região que não era comum para nós. Só existe aquele ar na Antártica. Então temos um caso em que, dentro de um ano quente, em uma semana bastante quente, ocorre uma tempestade com alto grau de destruição em que a assinatura química da chuva me diz que a Antártica foi o pivô da história. Se não não fosse aquele ar tão frio fazer contraste com o ar quente e abafado da Amazônia, o fenômeno não teria tido a mesma intensidade. A chegada daquele ar da Antártica revela que a circulação da atmosfera do Hemisfério Sul está se intensificando. Como é que se intensifica a atmosfera para ter isso que estou observando? Você tem de aquecer a atmosfera, porque, se você esfriá-la, não ocorre dessa forma. O DNA da água daquele evento foi tão da Antártica, tão do Sul, que fugia ao esperado e era característico de um planeta mais quente. Aquecemos a atmosfera, e ela responde com a intensificação dos fenômenos. Temos de aceitar que há mudança climática, que há aquecimento global e que os eventos vão ficar mais fortes, como naquele de 29 de janeiro de 2016 – afirma Francisco Aquino.
Para a Bacia do Prata, os cenários apontam mais chuva e mais eventos extremos. É uma das regiões onde mais vão aumentar a precipitação e a temperatura. Teremos ciclones mais destrutivos. O que isso significa para nós é que, se não mudarmos nossa cultura e nossa política de investimento, teremos muito prejuízo.
FRANCISCO AQUINO
Pesquisador da UFRGS
Na América do Sul, a Bacia do Prata, Rio Grande do Sul incluído, é a região que deve sofrer de forma mais intensa o impacto das mudanças no clima. A zona fica no meio das massas de ar quente que vêm do Norte e das massas de ar polar meridionais. Aquino explica que, se a Terra está mais quente, mas existe uma fonte de ar frio como a Antártica, que concentra 90% do gelo da Terra, ocorre uma espécie de duelo atmosférico. O contraste entre uma massa e outra fica maior, e quanto mais cresce esse contraste, mais violentos tornam-se os fenômenos meteorológicos.
Para o território gaúcho, isso significa ciclones extratropicais mais severos, maior volume de precipitação e mais vendavais, queda de granizo, tornados. Mudanças nesse sentido já vêm sendo detectadas pelos climatologistas (em 2004, por exemplo, um ciclone extratropical transformou-se no Catarina, o primeiro furacão registrado no Atlântico Sul), apesar de a temperatura média global ter aumentado apenas cerca de 0,7ºC ou 0,8ºC de 1850 para cá. Governos do mundo todo assumiram compromissos para tentar limitar o aquecimento a no máximo 2ºC, o que já traria graves consequências para a vida humana e a biodiversidade, mas, diante da inércia dos países, muitos especialistas veem risco de um aumento de 3ºC, 4ºC ou até mesmo 6ºC até o fim do século, com efeitos catastróficos. De 2001 para cá, foram registrados 18 dos 19 anos mais quentes da história, e 2019 deve entrar para a lista, provavelmente na segunda ou terceira posição.
É certo que o planeta vai continuar a esquentar, que os impactos serão sentidos e que adaptações precisarão ser feitas.
– Para a Bacia do Prata, os cenários apontam mais chuva e mais eventos extremos. É uma das regiões onde mais vão aumentar a precipitação e a temperatura, só que o aumento no volume de chuva é em eventos extremos e esporádicos. É chuva em excesso. Daí passam-se várias semanas sem chuva, com estiagem. Teremos ondas de calor mais frequentes e mais prolongadas. Teremos ciclones mais destrutivos. O que isso significa para nós é que, se não mudarmos nossa cultura e nossa política de investimento, teremos muito prejuízo. O ano de 2016 custou ao Rio Grande do Sul R$ 1,5 bilhão em desastres associados à atmosfera, com predomínio de perdas na agropecuária. Em 2015, outro ano anomalamente quente, o prejuízo foi de R$ 2,5 bilhões. O Rio Grande do Sul precisa fortalecer a prevenção a desastres, melhorar sua infraestrutura, adotar postes e telhados melhores, construir ginásios, escolas e hospitais mais resistentes, porque não vai adiantar fazer obra barata – alerta Francisco Aquino.
Em 20 de agosto do ano passado, uma adolescente sueca de 15 anos chamada Greta Thunberg resolveu faltar à escola para posicionar-se diante do parlamento de seu país, em Estocolmo, com um cartaz que trazia a frase “Skolstrejk för klimatet” (“Greve escolar pelo clima”). Também entregou folhetos em que se explicava: “Estou fazendo isto porque vocês, adultos, estão destruindo o meu futuro”. Semana após semana, ela repetiu o ato, clamando por atitudes concretas para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa, responsável pelas mudanças climáticas.
Com o passar do tempo, as manifestações deixaram de ser solitárias e começaram a se espalhar pelo mundo. Em centenas de cidades de todos os continentes, escolares passaram a se reunir às sexta-feiras para repetir o gesto de Greta, no movimento batizado de Fridays For Future. No fim de setembro, convidada pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, a adolescente abriu a Cúpula do Clima realizada em Nova York. Como se nega a viajar por via aérea, por causa das emissões geradas pelas aeronaves, Greta atravessou o Atlântico em um barco. Diante de líderes poderosos, foi dura:
– Eu não devia estar aqui. Eu devia estar na escola, do outro lado do oceano. Mas vocês vêm até nós, jovens, em busca de esperança. Como vocês se atrevem? Vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias. E ainda assim sou dos que têm sorte. As pessoas estão sofrendo. As pessoas estão morrendo. Ecossistemas inteiros estão entrando em colapso. Estamos no início de uma extinção em massa. Enquanto isso, vocês só falam sobre dinheiro e em contos de fadas de eterno crescimento econômico. Como vocês se atrevem?
Eu não devia estar aqui. Eu devia estar na escola, do outro lado do oceano. Mas vocês vêm até nós, jovens, em busca de esperança. Como vocês se atrevem?
GRETA THUNBERG
Ativista sueca
Três dias antes, em 20 de setembro, um grupo de adolescentes inspirados por Greta havia se deslocado com cartazes até o Palácio Piratini e a Assembleia Legislativa, em Porto Alegre, para promover o primeiro ato do Fridays For Future no Rio Grande do Sul – as manifestações têm se repetido todas as sextas-feiras desde então. Os participantes são estudantes de Ensino Médio que chegaram à conclusão de que o mundo e o seu futuro estão em risco. Eles mudaram hábitos, para reduzir sua pegada ecológica, e acharam que era necessário sair à rua e pregar o evangelho de Greta, exigindo conscientização e mudança.
Entre os iniciadores está Basilio Freitas Lopes, 17 anos, morador de Arroio dos Ratos, município localizado a 60 quilômetros da capital gaúcha. No começo do ano, assistindo ao canal de TV CNN Internacional, ele viu uma reportagem sobre Greta Thunberg e sentiu uma forte identificação.
– Depois do Chico Mendes, a gente não tinha uma grande referência. Com a Greta, vi que podia falar abertamente. Entendi que, como adolescente, podia fazer alguma coisa. O que mais chamou minha atenção foi ela ir sozinha para a frente do parlamento para se manifestar, fazer com que ouvissem a sua voz. Vi o que ela estava fazendo e me senti inspirado a fazer também – conta Basilio.
O rapaz de Arroio dos Ratos começou a pesquisar nas redes sociais, conseguiu contato com brasileiros que já estavam envolvidos no Fridays For Future e, dois meses atrás, criou o grupo de WhatsApp do movimento no Rio Grande do Sul. Mais ou menos na mesma época, outros adolescentes estavam buscando se engajar na iniciativa de Greta e começaram a se articular com Basilio.
Elisa Fink, 17 anos, moradora de Porto Alegre, havia voltado em julho de um intercâmbio na Nova Zelândia, onde tomara contato com as greves pelo clima, e queria seguir o exemplo por aqui. Ela estava impactada pela conscientização que encontrara em Nelson, uma cidade de apenas 50 mil habitantes.
– Na Nova Zelândia é forte a preocupação ambiental. Eles têm mais interesse em preservar a biodiversidade e a natureza, sabem mais sobre separação de lixo, preocupam-se com a questão do plástico. Lá, mudei de hábitos. Passei a reduzir o consumo, de maneira geral, e adotei o costume de comprar roupa em brechós, porque a indústria da moda tem muito impacto ambiental.
Elisa entrou para o grupo de WhatsApp criado por Basilio, onde também já estava outro adolescente da Capital, Arthur Amaral Schneider, 17 anos, que havia descoberto o movimento por acaso, em uma rede social. Até então, ele não tinha nenhum ativismo ligado ao meio ambiente, mas o discurso de Greta despertou nele a consciência de que seria a sua geração a sofrer com as decisões ambientais que estão sendo tomadas agora.
– Apesar disso, só fazem coisas para piorar, colocam o lucro próprio à frente do clima, que é um bem de todos. Temos de mudar logo as atitudes, porque em breve não vai ter volta. Muita gente ainda não percebeu isso – protesta Arthur.
Trocando mensagens, Basilio, Elisa e Arthur articularam o ato do dia 20 e espantaram-se com a adesão: 30 pessoas apareceram com seus cartazes.
– Fiquei orgulhoso. Vi que não estou sozinho, que existem pessoas com a mesma cabeça, com a mesma vontade – comemora Basilio.
Os três adolescentes gaúchos prometem continuar promovendo os atos semanais diante das sedes do Executivo e do Legislativo. Na rotina diária, também estão dando sua contribuição para tentar brecar o aquecimento do planeta. Basilio, que comia carne todos os dias, limitou o consumo ao fim de semana. Também reduziu ao máximo a produção de lixo, especialmente plástico.
Arthur fez mais ou menos o mesmo: começou a comer carne só dois dias por semana e trocou as garrafas de plástico descartáveis por uma de vidro, que sempre reusa. Quando vai ao supermercado, leva a própria sacola. Além de comprar em brechó, Elisa diz que se tornou quase vegetariana, por causa do impacto da pecuária para as emissões na atmosfera.
– Já sabia um pouco sobre o impacto da criação de gado, e recentemente, com as queimadas na Amazônia, tive mais informação sobre a relação disso com o desmatamento e fiquei muito preocupada. Mas não é a minha mudança de hábitos que vai fazer diferença. Tem de ter um conjunto de mudanças individuais e têm de ocorrer mudanças no poder público, que afetem todas as pessoas – defende ela.
Apesar dessa militância e da visibilidade que ela tem ganho, a maior parte da população ainda não se apercebeu da ameaça, e, além disso, há grupos negacionistas, inclusive dentro dos governos. Eles já não negam o aquecimento global, porque isso se tornou impossível, mas adotaram a estratégia de dissociar o aumento da temperatura média do planeta da ação humana. Reconhecem que a Terra está ficando mais quente, mas sustentam que isso é resultado de uma oscilação natural, e não do nosso estilo de vida. Ao fazerem isso, colocam-se contra um esmagador consenso científico. “A negação da contribuição antrópica para o aquecimento global contradiz os resultados em milhares de estudos publicados em todo o mundo por cientistas de diferentes nacionalidades e trabalhando em diferentes instituições, com contribuições importantes de pesquisadores brasileiros. Uma análise no buscador Google Acadêmico mostrou que existem 2 milhões de artigos publicados sobre o tema ‘Aquecimento Global’. Quando a busca é feita com o tema ‘Mudanças Climáticas’ chega-se a um número superior a 3 milhões de artigos científicos. Portanto, é notório que, apesar da necessidade de mais estudos, existe um volume significativo de informações que direcionam as atuais conclusões e ações”, afirma o documento O Brasil e as Mudanças Climáticas, publicado neste ano por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Os princípios são de simples compreensão. Existe um conjunto de gases que retêm o calor na atmosfera, impedindo que esse calor se dissipe no espaço. É o chamado efeito estufa. Entre esses gases estão o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso.
O efeito estufa é um fenômeno natural, que mantém a temperatura média do planeta na faixa dos 15ºC – sem os gases, a temperatura cairia para -16ºC, prejudicando a vida animal e vegetal. No entanto, se a composição da atmosfera é alterada, com maior presença de dióxido de carbono, de metano e de óxido nitroso, o efeito estufa aumenta e a temperatura global média sobe.
No último século, houve uma explosão na emissão desses gases. No caso do dióxido de carbono, o grande vilão é a queima de combustíveis fósseis. Desde a Revolução Industrial, a concentração desse gás na atmosfera aumentou cerca de 40% – e é a maior dos últimos 800 mil anos. A taxa continua a subir, 2% ao ano. As emissões de metano, por sua vez, estão fortemente associadas à pecuária – um dos pilares da economia brasileira. O metano tem um potencial cerca de 30 vezes maior de geração do efeito estufa do que o dióxido de carbono.
Um dos principais cientistas da área é Tércio Ambrizzi, professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Ele ressalta que não há dúvida de que a ação humana está por trás do aquecimento:
Os negacionistas vão dizer que sempre houve evolução e que esse ciclo é natural. Sim, mas o que estamos fazendo é acelerar e intensificar esse ciclo em função de mudanças drásticas em temperatura e precipitação.
TÉRCIO AMBRIZZI
Professor da USP
– Uma minoria usa o argumento de que, em um passado longínquo, a concentração de gases como o dióxido de carbono foi maior e a temperatura do planeta era mais alta. Afirmam que o que estamos vivendo faz parte da variabilidade natural. Realmente, existe uma variabilidade natural da atmosfera. Isso ninguém discute. No entanto, quando pegamos dados de paleoclima e voltamos 800 mil anos atrás, vemos que os picos de dióxido de carbono eram da ordem de 280 partes por milhão. Hoje, estamos com 410 partes por milhão. Como se explica isso, um aumento de mais de 40%? Só com o desenvolvimento humano: o crescimento vertiginoso da população, a utilização de muito mais recursos do planeta e toda a evolução industrial.
O aumento de menos de um grau na temperatura média, registrado no passado recente, ou de dois graus nos próximos anos, se as metas estabelecidas no Acordo de Paris forem atingidas, pode parecer pequeno, mas essa é uma percepção equivocada.
– Quando falamos que houve um aumento médio global de 0,7ºC ou 0,8ºC, realmente dá a impressão de que é pouco. Mas isso é a média global. Se pegarmos regiões específicas, como o norte da Ásia, as temperaturas já estão 3ºC ou 4ºC acima da média, uma diferença tremenda. As projeções são de que o aumento médio pode atingir 3ºC ou 4ºC. Isso significa que, em algumas regiões, o crescimento seria muito maior – observa Ambrizzi.
Os impactos já são percebidos mundo afora e podem se agravar bastante. Um mundo mais quente significa temperaturas máximas diárias mais altas, mais ondas de calor, mais secas, mais ciclones e furacões, derretimento de geleiras, aumento do nível dos oceanos, extinção de espécies. Ambrizzi cita que São Paulo por exemplo, tem tido menos dias de chuva, com problemas sérios de falta de água, e perdeu grande parte da área destinada ao cultivo de café, por causa de alterações do clima. Os biomas estão sofrendo, e algumas espécies de vegetais e animais não conseguem se adaptar e desaparecem.
– Os negacionistas vão dizer que sempre houve evolução e que esse ciclo é natural. Sim, mas o que estamos fazendo é acelerar e intensificar esse ciclo em função de mudanças drásticas em temperatura e precipitação.