Desacelerar o aquecimento global é um desafio atual, especialmente em regiões muito afetadas pelo efeito estufa, como a Bacia do Prata (leia na primeira parte desta reportagem).
Heinrich Hasenack, professor do Departamento de Ecologia da UFRGS, observa que essa desaceleração é essencial para dar tempo às espécies de se adaptarem à mudança no clima. Quanto mais depressa ocorrerem as alterações, mais os organismos vegetais e animais sofrerão.
– Está havendo uma alteração mais rápida do que a maioria das espécies consegue tolerar. A velocidade é o problema mais sensível. Daí a importância de as pessoas mudarem seus hábitos – alerta.
Segundo Hasenack, a alteração no clima, com diferenças de temperatura, de umidade e de chuva, não será bem tolerada por parte das espécies. Algumas vão migrar, outras vão reduzir suas populações, outras vão desaparecer. Espécies mais vulneráveis podem não resistir a transformações em seus hábitats. Se estiverem na base da cadeia alimentar, isso pode impactar toda a cadeia para cima, com prejuízo para o equilíbrio dos ecossistemas. Uma pesquisa recente da Universidade de Reading (Reino Unido), por exemplo, indica que uma das árvores típicas do sul brasileiro, a araucária, deve estar extinta até 2070.
O professor da UFRGS ressalta que não são apenas as espécies nativas que sofrem, mas também os animais de criação e os cultivos.
– De repente ocorrem cheias ou secas prolongadas, que não aconteciam no passado. Algumas culturas podem deixar de ser viáveis. Quando se desenvolve uma cultivar, a gente busca todas as características da região para adaptá-la a essa região. Se o clima muda, vou ter de mudar a cultivar. Será que tenho uma cultivar adaptada para a nova situação? Não sei. Se não tiver, vou ter de investir recursos para desenvolver. No caso dos animais, também. Eles estão adaptados a determinado limite térmico, a uma determinada quantidade de umidade. De repente ele não consegue resistir – argumenta Hasenack. – Imagina um aviário cheio de frangos. Num dia está gelado, no outro faz um calorão. Mesmo que haja equipamentos para condicionar o ar lá dentro, vai ter de ter um controle muito sério disso, ou perde-se toda a criação daquele período, se o equipamento não é capaz de dar conta. Significa gasto de energia, muitos investimentos.
Há informações alarmantes por todos os lados. Dados coletados na Estação Agrometeorológica de Pelotas indicam que a temperatura média anual cresceu 1,07ºC entre 1951 e 2005. A temperatura mínima média, por sua vez, saltou 1,66ºC. Com mais calor, doenças associadas aos trópicos, como a dengue e a malária, encontram condições para avançar. Não é por acaso que houve uma multiplicação dos focos de Aedes aegypti e dos casos de dengue no Rio Grande do Sul nos últimos anos.
Os prejuízos para a saúde podem ser severos. Segundo o relatório Monitor de Vulnerabilidade Climática: Um Guia para o Cálculo Frio de um Planeta Quente, encomendado por 20 governos e assinado por mais de 50 cientistas, economistas e outros experts, eventos relacionados com a mudança climática contribuíam para a morte de 400 mil pessoas ao ano, com um custo de US$ 1,2 trilhão (o trabalho é de 2012). Além disso, 4,5 milhões de indivíduos morriam por causa da poluição gerada pelos combustíveis fósseis, grandes responsáveis pelo efeito estufa. “Estima-se que a continuidade do atual padrão energético baseado no carbono, somada à mudança climática, causará 6 milhões de mortes ao ano em 2030, das quais cerca de 700 mil por causa da mudança no clima”, afirma o relatório.
Um Estado que depende do setor agropecuário, como o Rio Grande do Sul, precisa estar particularmente atento às modificações do clima. Por um lado, a projeção de eventos meteorológicos extremos gera um risco de perdas na lavoura. Por outro, há uma tendência de redução das geadas, o que pode ter efeitos positivos para a agricultura.
Mas essas questões são apenas uma parte da equação. Um dos principais desafios será adaptar os cultivos a condições ambientais novas. No caso da batata, por exemplo, temperaturas mais altas resultam em tubérculos defeituosos, com menor valor comercial. A maçã, o pêssego, a pera, a ameixa e a uva dependem, para seu desenvolvimento, de determinadas horas de frio. O arroz, por sua vez, pode não resistir a extremos de temperatura, alta ou baixa.
Pesquisador da Embrapa Clima Temperado, o agrônomo Clenio Pillon lembra que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária desenvolve atualmente 72 programas de melhoramento genético, para permitir que diferentes culturas – de grãos, de oleaginosas e de frutas – possam conviver com as mudanças climáticas em curso.
– O que esses programas estão fazendo, por exemplo, é desenvolver uma genética de pêssego adaptada à condição de inverno ameno ou, no caso da batata, tolerante ao calor extremo. Da mesma forma, na cultura de arroz, buscamos genéticas para conviver com eventos extremos de frio e de calor. Podemos fazer frente às mudanças investindo em ciência, tecnologia e inovação – prevê.
Com aumento de temperatura, certas culturas podem ter de ser realocadas. Talvez em algumas regiões não seja mais possível cultivar determinada espécie e em outras possa ser cultivada uma espécie nova. É um perde e ganha.
CLENIO PILLON
Agrônomo
Pillon dá como exemplo de sucesso o caso da soja, uma cultura de clima temperado que, graças a melhoramentos genéticos, é produzida hoje desde o sul do país até a zona equatorial. Mesmo assim, ele reconhece que mudanças na geografia dos cultivos devem ocorrer:
– Com aumento de temperatura, certas culturas podem ter de ser realocadas. Talvez em algumas regiões não seja mais possível cultivar determinada espécie e em outras possa ser cultivada uma espécie nova. É um perde e ganha. Pode ser que seja possível, um dia, plantar café no Vale do Uruguai, assim como outras culturas podem ficar inviabilizadas.
A mudança climática também impacta nas pragas que atacam as lavouras. Um estudo mostrou que um aumento de 3ºC na temperatura no Rio Grande do Sul significaria incrementar em oito vezes a multiplicação da mosca-das-frutas, principal praga em várias culturas do Estado. Como resultado, seria necessário usar mais produtos químicos para combater o inseto.
Quando se fala em aquecimento global, o setor agropecuário não tem só um papel reativo. Ele também pode dar uma contribuição para controlar ou reduzir o efeito estufa. É a chamada mitigação, que significa desenhar sistemas de produção que neutralizem as emissões de gases ou que ofereçam um saldo ambiental favorável, absorvendo mais gases nocivos do que emitindo-os. Em sistemas conservacionistas baseados no plantio direto, afirma Pillon, é possível sequestrar da atmosfera entre 0,3 e 0,5 tonelada de carbono por hectare ao ano.
– Podemos desenhar sistemas de manejo de plantas e de solo capazes de retirar parte do dióxido de carbono via fotossíntese e incorporá-lo de novo dentro do sistema de produção, seja na produção de biomassa florestal, via madeira, seja por aumento da matéria orgânica no solo.
Um sistema exemplar, no qual o Brasil é referência, é o chamado plantio direto, que envolve pouco revolvimento do solo, rotação de culturas, produção intensa de biomassa e manutenção da palha sobre a terra. Essa palhada mantém a umidade e a atividade microbiana, permitindo que o carbono sequestrado seja incorporado à matéria orgânica do solo, que haja liberação de nutrientes e que ocorra maior conservação de água, além de permeabilidade do solo a enxurradas.
No caso da pecuária, a saída são sistemas em que se integre a produção animal à produção de forragens e a um componente florestal (para exploração de madeira). Dessa forma, pode-se neutralizar o metano que é emitido pelos animais.
– A Embrapa desenvolveu um sistema de carne carbono neutro, mais sustentável, em que as emissões oriundas da atividade agropecuária são equilibradas pelo sequestro de carbono no solo, via pastagem, e pelo sequestro de carbono no componente florestal. Aquilo que estou emitindo no sistema para a produção animal estou retirando da atmosfera e incorporando na matéria orgânica do solo ou no componente florestal, que depois vai virar madeira para fazer uma cadeira, uma mesa, para a produção de energia – diz Pillon.
O aumento da produtividade é outro aliado do ambiente. Quarenta anos atrás, produziam-se 4 mil quilos de arroz por hectare, com gasto de 15 mil metros cúbicos de água. Hoje o mesmo hectare rende 10 mil quilos, com 6 mil a 8 mil metros cúbicos de irrigação.
– Podemos aumentar produção e produtividade sendo mais eficientes, manejando de forma mais eficiente os nossos meios de produção, seja o solo, a água e os insumos, para ter eficiência maior e produzir mais alimentos, emitindo menos gases de efeito estufa. É uma contribuição importante da agricultura, no sentido de oferecer à sociedade um balanço ambiental de carbono favorável – diz o pesquisador da Embrapa Clima Temperado.
O secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, convidou três jovens para falar na abertura da Cúpula do Clima, realizada no fim de setembro em Nova York: a sueca Greta Thunberg, o indiano Anurag Saha Roy e a brasileira Paloma Costa Oliveira. Com 27 anos, Paloma é estudante da Universidade de Brasília (UnB) e está envolvida em projetos ambientais como o Engajamundo (voltado à formação de jovens para o ativismo climático) e o Ciclimáticos (grupo que percorre o Brasil de bicicleta para documentar os impactos da mudança do clima). Coube a ela a responsabilidade de ser a primeira a falar na cúpula.
– Foi um momento superimportante. O secretário-geral fez questão de que a cúpula fosse aberta por jovens, de que nós fizéssemos parte da discussão – comenta Paloma.
Foi decepcionante dedicar tanto tempo a esse evento e ver que o resultado deixou a desejar. Poucos países foram além. O Brasil nem apresentou nada de novo. O que eu senti na cúpula é que as pessoas interessadas em mudar o cenário estão em um nível de desespero, de não saber mais por que caminho ir.
PALOMA COSTA OLIVEIRA
Estudante brasileira que esteve na Cúpula do Clima da ONU
Apesar do contentamento pela participação, a ativista brasileira saiu decepcionada do encontro. O objetivo era que os países assumissem compromissos mais ousados para reduzir emissões e limitar o aumento da temperatura, mas Paloma avalia que faltou ambição:
– Foi decepcionante dedicar tanto tempo a esse evento e ver que o resultado deixou a desejar. Poucos países foram além. O Brasil nem apresentou nada de novo. O que eu senti na cúpula é que as pessoas interessadas em mudar o cenário estão em um nível de desespero, de não saber mais por que caminho ir. Estávamos lá, escrevendo a declaração dos jovens, e fomos vendo que os jovens estão muito impacientes, que estão fazendo coisas com as próprias mãos. É o que nos impulsionou a ir para as ruas. A gente vem com essa energia nova e com essa coragem. Você acha que não dá para mudar seus hábitos? A gente mostra que já mudou. Eu não como carne há mais de cinco anos, me desloco a maior parte do meu tempo em bicicleta, educo sobre clima outros jovens. Eu consegui ver pessoas impactadas pela mudança climática com minha bicicleta e meu celular. Essas pequenas ações têm impacto, porque quando as pessoas veem que podem fazer, fica mais fácil. Isso é o incrível no movimento que a Greta impulsionou, ela mostrou que está tudo bem se você não reunir 1 milhão de pessoas. Se você for lá e fizer sozinha a sua greve, já causa impacto.
Jovens e adolescentes como Paloma, Greta e os participantes do Fridays For Future em Porto Alegre estão mostrando que há muita coisa que cada um pode fazer para ajudar o planeta. Os cientistas concordam. Convidado a citar a mudança de hábito que mais poderia colaborar para conter o aquecimento, o climatologista Francisco Aquino diz que é combater o desperdício de comida.
– Para produzir alimentos precisa de água, de solo, de irrigação, de trator, de mão de obra, de transporte, de energia elétrica, de ração. Mesmo que tenha um preço baixo no supermercado, a comida tem um custo alto para ser produzida, porque demanda muito da natureza. Poupar comida é importantíssimo para minimizar nosso impacto ambiental – diz ele.
Tércio Ambrizzi acredita que é possível manter o aumento da temperatura da Terra dentro dos 2ºC e buscar um novo equilíbrio climático a partir daí. Ele defende a educação ambiental e o engajamento da sociedade, o que forçaria os governos a adotar políticas de redução das emissões. No nível pessoal, sugere caminhar, andar de bicicleta ou preferir o transporte público, em lugar de andar de automóvel, um grande emissor de gases causadores do efeito estufa. Também propõe o uso racional da água, a redução do consumo de carne e a economia de energia elétrica – a instalação de painéis de células fotovoltaicas nas residências seria uma boa alternativa.
Ele defende:
– As mudanças têm de ser feitas com urgência. Falamos da agenda de objetivos para 2030, mas 2030 está aí. Passa rapidinho. Temos um caminho longo a percorrer, e o tempo é curto. Não dá para esperar. Isso não é extremismo de ambientalista. O que nos tem prejudicado são os extremos. Tem extremos de um lado dizendo que nada ocorre, que pode fazer o que quiser. E tem o outro extremo que diz que não se pode fazer absolutamente nada, porque o planeta vai morrer. Precisamos ter uma visão de futuro, gastar um pouco mais agora para economizar lá na frente. Não vamos salvar o planeta fazendo isso. Vamos salvar a nós mesmos. Porque o planeta sobrevive. Se eu eliminar a espécie humana, a Terra volta ao equilíbrio e vive ainda bilhões de anos. E nós, será que conseguimos sobreviver se continuarmos a fazer o que estamos fazendo?