Não são muito comuns os momentos em que se pode presenciar a habitual agitação infantil dar lugar a uma silenciosa contemplação coletiva. Mas bastou tirar algumas turmas de Ensino Fundamental de escolas em Canela, na serra gaúcha, e oferecer a elas lições na pouco visitada floresta nacional do município, para conferir a ansiedade ser substituída por rostos boquiabertos, olhos animados, cabeças cheias de perguntas e braços e pernas dispostos a explorar cada pedacinho daquela sala de aula ao ar livre.
A Floresta Nacional de Canela, também conhecida como Flona, é uma unidade de conservação de 563 hectares sob responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Distante cinco quilômetros do centro da cidade, a área verde está, talvez justamente por essa distância, bastante fora do radar dos turistas e até dos moradores. Para reverter a falta de informação a respeito do local, educadores da região decidiram promover, periodicamente, uma espécie de “aula guiada” por lá.
Funciona assim: algumas vezes por ano, estudantes de escolas públicas do município são levados ao local para aprender, na prática, conceitos de ciências da natureza (biologia, física, química) e também outras disciplinas, como geografia e até matemática. O objetivo é estimular o aprendizado dos jovens e inclusive de seus professores com lições que envolvem o contato direto com a floresta e seus elementos. Crianças e adolescentes adoram:
– A escola ensina, e aqui a gente vivencia. A gente põe em prática o que aprendeu na aula. Sabendo cuidar, não jogar lixo no chão, essas coisas – declara Kauani Vitória Müller, 12 anos, aluna do 7° ano de uma escola municipal em Canela.
– Para mim, é tudo interligado. Escola, natureza... A gente aprende na escola, depois vem para cá e amplia o conhecimento que conseguiu lá. Assim, aprendemos o dobro! – complementa Gabriel Renan Blauth dos Santos, também de 12 anos, colega de Kauani.
O Ministério do Meio Ambiente decidiu conceder o parque à iniciativa privada. No momento, discute-se principalmente dois pontos: se o edital que prevê essa concessão será feito somente com a Floresta Nacional de Canela ou se será em bloco, incluindo também os Aparados da Serra, de Cambará do Sul, e a Floresta Nacional de São Francisco de Paula. Em abril, o ministro Ricardo Salles esteve na região para visitar as áreas. Ainda não há previsão para a data de lançamento dos editais.
No início de uma dessas aulas na floresta de Canela, dezenas de crianças se perfilavam próximas à entrada da unidade de conservação. Ainda estavam agitadas: era uma das poucas oportunidades de ter lições com os professores fora da escola, e logo em um ambiente repleto de árvores, animais, rochas e trilhas. O tempo era instável no dia, contribuindo para a ansiedade dos jovens e dificultando o passeio. Era o terceiro de cinco encontros marcados para este ano – nos anteriores, haviam sido transmitidos conceitos como educação ambiental e um breve histórico da Terra a partir de rochas da serra gaúcha.
– Os alunos e os professores saem daqui aprendendo o básico de um determinado elemento da natureza. Nós separamos as atividades assim, para que eles conheçam mais sobre as rochas, as árvores, a floresta, a água, os animais que vivem aqui. Sabendo mais sobre esses elementos, eles começam a ter um entendimento maior, e na sala de aula fica mais fácil continuar a construção do conteúdo, porque in loco, no ambiente, se teve um contato direto com aquilo – explica o professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) Clódis Andrades Filho, um dos coordenadores da iniciativa.
Clódis e vários outros docentes e estudantes da Uergs Hortênsias, o campus da instituição em São Francisco de Paula, também na Serra, somaram-se à proposta envolvendo as escolas no ano passado. Ligados à área de Gestão Ambiental, eles passaram a promover capacitações para os professores do município, e assim a ideia cresceu. Tornou-se o Projeto Curiaçu – Guardiões da Floresta.
A iniciativa tem como objetivo promover educação ambiental a partir da imersão em ambientes naturais para conscientizar sobre a preservação dos recursos naturais e despertar a “empatia ambiental”, como definem os responsáveis.
– Quanto mais você conhece alguma coisa, mas se apega àquilo e, consequentemente, ajuda a preservar – define Laci Gross, professora da rede municipal de Canela e representante da Secretaria de Educação no Conselho Municipal de Meio Ambiente.
– Os “Guardiões da Floresta” são pessoas que buscam se afeiçoar cada vez mais com o meio ambiente, e, por meio dessa afeição, garantem que as ações de proteção sejam mais efetivas. Esse projeto parte de uma máxima que nós gostamos de falar: somente os laços afetivos são efetivos. Aquilo que a gente conhece e gosta é aquilo que a gente vai lutar para proteger – complementa Clódis.
A lição sobre empatia, claro, também é repassada na prática. Lembra das crianças e dos adolescentes agitados na entrada da floresta? Pois uma das primeiras atividades daquele dia foi reuni-los para uma ação voltada a desenvolver esse afeto neles. Em frente à réplica de uma grande araucária que corta boa parte da sede do ICMBio, os jovens foram convidados a entrar em uma passagem estreita que não revelava nada do que se poderia encontrar lá dentro. A reportagem também fez esse caminho.
Todos os participantes são solicitados a usar uma venda. A ideia é fazer da ação uma espécie de trilha multissensorial: enaltecer o tato, o olfato, a audição enquanto você caminha rumo ao desconhecido na natureza. Os coordenadores do projeto orientam o público, já mais nervoso do que agitado, sobre os próximos passos.
– Te abaixa. Vem mais um pouco para a frente. Usa a mão para te guiar – dirige uma voz amigável.
O caminho araucária adentro é estreito, e não saber o que se vai encontrar lá, ou quanto tempo vai demorar a empreitada, leva todos a prestarem atenção nos seus arredores. A ouvirem os sons que ora se aproximam, ora se afastam; a sentirem a textura da árvore, a proximidade de galhos e folhas.
– Onde a gente está? – arrisca-se um dos jovens, quebrando o silêncio.
– Só mais um pouco até que chegue todo mundo – repete a voz amigável.
Os participantes distribuem-se em algo como um círculo, tateando ao redor para não bater em ninguém, e logo tem início a justificativa daquela atividade. Um áudio com narrativa repleta de sons de pássaros explica a iniciativa e salienta a importância da conscientização ambiental (ouça abaixo).
– Vocês podem tirar as vendas – diz a voz amigável que, enfim se descobre, é de Demétrio de Andrade, estudante do bacharelado em Gestão Ambiental na Uergs, um dos criadores do projeto.
É depois desse “rito de passagem” que a agitação dá lugar a semblantes mais contemplativos. Todos os participantes são convidados a receber uma pintura azul no rosto, remetendo à tradição indígena e simbolizando a gralha azul da lenda que dá nome ao Projeto Curiaçu. A saída de dentro da araucária marca uma fase de conscientização para os envolvidos.
A própria presença da árvore por ali – assim como por toda a floresta, e destacada ao longo da região serrana do Sul do Brasil – é simbólica.
– A araucária marca a paisagem da região. Marca a cultura também. Ela entrou em extinção no momento em que tudo o que representa, esse vínculo natural com a paisagem regional, passou a ter menos importância do que o valor econômico da madeira, o preço. Foi aí que ela foi devastada – lamenta Antonio Cesar Caetano, analista ambiental do ICMBio em Canela, reforçando laços culturais como, por exemplo, o fato de a erva-mate crescer à sombra da árvore e, ainda, que a araucária dá também o pinhão tão marcante para os gaúchos.
Ao final da manhã de atividades, os estudantes são guiados por uma trilha pela Floresta Nacional de Canela. Descobrem os nomes de árvores e os animais que habitam a área, recebem indicações de como não se perder pelo mato. Mas o aprendizado maior é outro.
– Nosso objetivo principal aqui é promover a empatia ambiental, fazer as pessoas resgatarem o elo perdido com a natureza. Acabar com essa cisão que a gente criou, como se o homem fosse separado da natureza e ela fosse um mero cenário, quando na verdade nós somos parte de um grande ecossistema – descreve Demétrio.
Trabalhando para a criação dos tais laços afetivos e efetivos com a natureza, os “Guardiões da Floresta” procuram resolver, de pouquinho em pouquinho, a falta de conhecimento da população em relação ao ambiente, em especial no que diz respeito à preservação. Assim, ajudam a conscientizar crianças e adolescentes, pais e professores, moradores e turistas sobre áreas como a Floresta Nacional de Canela, tão próximas e acessíveis a todos – mas tão distantes do conhecimento geral.
O projeto
- O que é? Projeto Curiaçu – Guardiões da Floresta.
- Quem faz? Alunos e professores do bacharelado em Gestão Ambiental e da pós-graduação em Ambiente e Sustentabilidade da Uergs Hortênsias, em São Francisco de Paula, em conjunto com educadores e estudantes de escolas públicas em Canela.
- Desde quando? O projeto, nos moldes atuais, começou em 2018. Era, no início, focado na capacitação de professores, o que foi ampliado neste ano para contemplar também os alunos. Mas as atividades escolares envolvendo aulas práticas na Floresta Nacional de Canela começaram anos antes.
- Apoio – Conselho Municipal de Meio Ambiente de Canela (Comdema), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), secretarias de Educação e do Meio Ambiente de Canela e Laboratório de Gestão Ambiental e Negociação de Conflitos (Ganeco), da Uergs.
- Responsáveis – Professores Marcia Berreta e Clódis Andrades Filho, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs).
- Objetivo – Promover a educação ambiental a partir da imersão em ambientes naturais e capacitações para os educadores de Canela, a fim de aproximá-los da floresta nacional localizada no município e construir conscientização no que diz respeito à preservação dos recursos naturais e provocar o despertar da “empatia ambiental”.
- Saiba mais – facebook.com/projetocuriacu e facebook.com/FlonaCanela.
Próximos eventos
- 5 de agosto – Responsabilidade Socioambiental para Conservação da Biodiversidade e da Água.
- 6 de setembro – Oficina Descobrindo a Fauna da Floresta.
- 25 de setembro – Oficina Desvendando a Ecologia da Mata Atlântica.
- 1º de novembro – Sarau ecológico.