São quatro anos de aulas e mais um de estágio obrigatório. Há disputa por vagas e prova para entrar. Tem pesquisa, produção acadêmica, aplicação de metodologias, metas individuais a cumprir. E, ainda, projetos complexos, apresentação de trabalhos em feiras de ciência e tecnologia, incentivo à participação em eventos internacionais. Isso sem falar na estrutura, que tem seus problemas, mas conta com diversos laboratórios, salas de aula equipadas, máquinas e materiais variados, amplos espaços abertos à disposição dos estudantes.
Em quase tudo, a Fundação Liberato, em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, se assemelha a uma universidade. Mas a instituição, de nome extenso – que ajuda a explicar suas peculiaridades –, não é de Ensino Superior. Não são oferecidas graduações, mas cursos técnicos. E os alunos, apesar das aulas diferenciadas, saem de lá com um certificado de conclusão do Ensino Médio.
A Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha é um colégio estadual, o maior do Rio Grande do Sul. Mas, como também é uma fundação, tem autonomia para cobrar mensalidades – são 3,3 mil alunos na instituição, que oferece educação profissional técnica de nível médio em cursos como Química, Mecânica, Eletrotécnica e Eletrônica. Mais da metade dos estudantes tem isenção no pagamento, e os demais arcam com mensalidades que variam de acordo com a condição socioeconômica de cada um. A maioria recebe bolsa, e só 2% pagam o valor máximo, de R$ 930, na íntegra.
O status de escola estadual garante o pagamento dos salários de todos os servidores pelo Executivo gaúcho, incluindo aí os professores, que têm regimes de trabalho variados, entre 20 e 40 horas – nenhum deles com dedicação exclusiva. E o status de fundação permite mais autonomia: a Liberato consegue arrecadar investimentos junto a empresas privadas e trabalhar com apoio e parcerias, inclusive de prefeituras e órgãos públicos, para a realização de seus eventos. O maior deles é um capítulo à parte: a Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec), que neste ano chega a sua 34ª edição consolidada como a maior do gênero na América Latina – e uma das maiores do mundo.
Não à toa o ensino por lá também tem suas peculiaridades. Desde o primeiro ano do ensino técnico, os alunos recebem orientações sobre como fazer projetos de pesquisa e já são instigados a pensar no que vão desenvolver quando chegarem ao quarto ano – porque, lembre-se, a conclusão do Ensino Médio ali não é no 3º ano, como de costume. As aulas têm foco na prática, especialmente nos últimos anos de formação, já que todos os matriculados precisarão apresentar os próprios projetos.
– Esse vínculo que a Liberato consolidou ao longo dos anos com a tecnologia e a ciência faz com que o aluno que queira vir para cá já saiba o que vai encontrar. Então, ele pensa: “Eu quero me preparar bem para depois ser um pesquisador, para ser um bom técnico, vou lá pra Liberato”. Nós hoje temos alunos de 50 municípios da região. Alunos até de fora do Rio Grande do Sul. De todas as classes sociais – destaca Ramon Fernando Hans, diretor-executivo da Fundação Liberato.
Engenheiro mecânico por formação, Ramon é ex-aluno da escola, de onde saiu com o certificado de técnico em Eletrotécnica nas mãos. Quando ele ingressou no curso, a Mostratec, que começou em 1985, ainda não era realizada. Mesmo antes disso, a instituição, fundada há 52 anos, investia na realização de feiras científicas. O incentivo à pesquisa sempre fez parte do dia a dia da Fundação Liberato.
– A pesquisa leva o aluno a experimentar, em busca das respostas que ele quer. O curso técnico prevê aulas práticas, é natural. E isso já começa a abrir as possibilidades para o estudante – explica o diretor.
Atualmente, a Mostratec recebe, todos os anos, de 30 mil a 40 mil visitantes de dezenas de países. São apresentados, a cada edição, 720 projetos, envolvendo aproximadamente 2 mil estudantes, principalmente de Ensino Médio – mas, há alguns anos, passou a ser realizada também a Mostratec Júnior, voltada a alunos da educação infantil e do Ensino Fundamental, incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Difícil pensar em algum ano em que projetos de alunos da escola não tenham sido premiados. Os estudantes colecionam condecorações, inclusive internacionais. E credenciamentos para participar de feiras em diversos países. E medalhas. Troféus. Prêmios.
Uma das mais recentes agraciadas com distinções assim é Bruna da Silva Cruz, 19 anos. Hoje fazendo estágio supervisionado, após ter concluído as aulas do curso técnico de Mecânica, ela recebeu, no final de junho, o Prêmio Jovem Cientista da Assembleia Legislativa gaúcha por ter desenvolvido uma impressora com múltiplas funções para auxiliar a escrita de deficientes visuais.
– O que me fez desenvolver o projeto foi ter me interessado pela escrita em Braille, e visto a forma como ela costuma ser feita, com um instrumento manual. Me perguntei se não existiam tecnologias mais rápidas para isso. E é claro que sim, mas elas partem de R$ 4 mil e vão até R$ 30 mil, e cada uma tem uma só função. Então pensei se eu não poderia desenvolver algo mais barato, que pudesse ajudar essas pessoas. E consegui – vibra Bruna.
O projeto garantiu a ela um primeiro lugar na Mostratec e, com isso, uma bolsa de estudos na Unisinos, onde foi aprovada no vestibular e hoje cursa a graduação em Engenharia Mecânica. Satisfeita com os resultados, Bruna atribui muito do sucesso da criação às possibilidades trazidas pela escola, como o acesso a laboratórios, a disponibilização de professores orientadores e de monitores, além da proximidade com outras áreas técnicas diferentes da que ela decidiu seguir. Para tornar a impressora Fast Braille realidade, Bruna, estudante de Mecânica, teve de aprender muito sobre Eletrônica – tanto por meio de videoaulas quando com o auxílio dos docentes desse curso.
Atualmente também em seu último ano na instituição, as amigas Daniele Ataydes e Jade Rafaela Graeff, ambas de 19 anos, pesquisaram a contaminação de fontes alternativas de água em Novo Hamburgo, São Leopoldo e Campo Bom. Fizeram coletas em 11 pontos, no inverno e no verão. E descobriram que 91% das amostras analisadas indicavam contaminação.
– Mesmo incolor e inodora, essa água pode trazer prejuízos à saúde. Então é necessário que haja uma conscientização das pessoas, que elas fervam água antes de consumir, para que não haja problemas no futuro envolvendo a saúde pública – descreve Daniele.
– Observamos que muitas pessoas consumiam bastante essa água. Então vemos esse projeto como importante para mostrar para a população que essa água estava contaminada e pode conter bactérias capazes de fazer mal para a população – completa Jade.
As jovens lembram de ter passado horas e mais horas, ao longo de vários meses, pesquisando, preparando seu projeto, coletando as amostras: uma dedicação que vai muito além dos períodos de aula e é bastante comum entre os estudantes.
– Os laboratórios da Liberato estão sempre abertos. Os alunos têm aula de manhã e ficam à tarde aqui. Porque sabem que tem estrutura, tem alguém para ajudá-los, um professor à disposição. O que não conseguem terminar em sala de aula, em relação à prática, eles terminam sozinhos, vindo por conta própria. Eles têm uma meta. Sabem que, em tal dia, têm que entregar um projeto, e querem apresentá-lo em grandes feiras. Então damos todo o apoio. Mas são eles que fazem – explica o diretor-executivo da Fundação Liberato, Ramon Fernando Hans.
Foi assim também que Renata Duarte Jaques, 19 anos, e Bárbara Rios Ligocki, 18, usaram os conhecimentos que adquiriram durante o curso de Eletrotécnica, aliados à curiosidade que as levou a aprender também programação, para criar um sistema de monitoramento e detecção de incêndios residenciais. Com uma instalação simples, feita perto da rede elétrica de uma casa, a criação das meninas emite alertas para o Corpo de Bombeiros, para o morador – que, mesmo não estando perto de casa, pode ficar sabendo do problema – e até desliga a eletricidade, evitando problemas ainda maiores.
– Lidar com provas, com a pressão em casa, dos professores, dos pais, de ter que estudar, tirar notas boas e ainda conseguir desenvolver um projeto do tamanho que a gente desenvolveu tomou muito tempo nosso e muita organização, paciência, saber lidar em equipe, interagir com a outra pessoa, dividir as ideias. Mas tudo valeu a pena. É um aprendizado e tanto – resume Bárbara.
Em comum, tanto entre as propostas dessas jovens quanto as das centenas e centenas de outros projetos desenvolvidos anualmente na instituição de educação profissional, estão a dedicação, a vontade de ir além, de descobrir fatos novos ou criar produtos inovadores, de transformar seus estudos em algo muito útil para a sociedade. Tudo, enfim, o que fazem os melhores cientistas e pesquisadores – e olha que elas ainda nem saíram da escola.
O projeto
- O que é? Educação profissional técnica de nível médio e Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec).
- Quem faz? Fundação Liberato e governo do Estado do Rio Grande do Sul.
- Desde quando? A fundação foi criada há 52 anos, e a Mostratec, há 34 anos.
- Conquistas – Todo ano, estudantes conquistam prêmios em mostras científicas no Brasil e mundo afora. Também aos participantes da Mostratec, representando dezenas de outras instituições de ensino, são garantidas premiações, incluindo bolsas, estágios, medalhas etc.
- Apoios – A feira conta com patrocínio de empresas e órgãos governamentais, como os ministérios da Ciência e da Educação. Tem, ainda, o apoio da prefeitura de Novo Hamburgo, de associações e da iniciativa privada da região.
- Objetivo – Além de oferecer ensino técnico de qualidade, a escola preza por estimular estudantes na iniciação científica e tecnológica a fim de acelerar o processo de expansão e renovação no quadro de pesquisadores, além de promover a integração entre instituições de ensino, pesquisa e o meio empresarial, possibilitando o desenvolvimento e também a aplicação e a divulgação de novas tecnologias criadas pelos alunos na prática.