Obstinada, Dhienefer Cecchin Uliana está insatisfeita com o formato do incenso que tenta aperfeiçoar. Em seu diário de bordo — um caderninho de anotações que ela alimenta, com acréscimos regulares, desde que começou a desenvolver seu projeto científico na escola —, o primeiro registro é de 8 de maio de 2018.
De lá para cá, a jovem de 17 anos, aluna do 3° ano do Ensino Médio da Escola Estadual Elisa Tramontina, em Carlos Barbosa, tem avançado, passo a passo, no projeto de tornar viável um incenso que não tenha o carvão, elemento altamente poluente, como ingrediente principal.
Em frente a uma mesa repleta de materiais de laboratório — bastão, funil, tubo de ensaio —, ela testa novos materiais, experimenta, questiona.
— Sabe como a gente faz para limpar ralo? É parecido. Você tem o fio, depois é preciso espalhar o material até deixar uma fina camada. Aí você espera secar por uns dias, e depois novamente vai ter esse material mais úmido. A ideia é que você consiga agregar material, mas em camadas — orienta a professora de Química Sandra Seleri.
— É melhor com menos massa, né? Aí ele vai ficar com uma espessura boa — responde a aluna, já vislumbrando mais um passo rumo à realização de seu projeto.
A cada aprendizado, a cada novo registro no colorido diário de bordo, o produto final vai tomando forma. A tentativa mais recente envolveu o uso de diferentes tipos de goma, para verificar qual sustentaria melhor o produto, sem deixá-lo muito espesso. Isso depois de a jovem já ter conseguido, juntamente com uma colega, um feito e tanto: trocar o carvão por uma farinha feita a partir da casca de mandioca que queima tão bem quanto um incenso comum.
— Mas não é aquela que você compra no pacotinho em supermercado — ressalva Dhienefer.
— Tem todo um processo criado especificamente para que ela funcione no incenso — diz, animada.
O que explica tamanha motivação pela pesquisa em uma estudante de Ensino Médio que, como tantos na sua idade, ainda está indecisa quanto a qual faculdade cursar? Por que empregar esforços em um projeto tão complexo, quando se poderia receber uma boa nota com algo que demandasse menos trabalho?
A explicação passa pelo incentivo à pesquisa na escola da serra gaúcha — uma iniciativa que ganhou corpo a ponto de, hoje, ser uma prerrogativa de quase todo o município. Assim como Dhienefer, diversos alunos desenvolveram, durante os estudos da Educação Básica, o gosto pela ciência. A iniciação científica, com projetos aprimorados no contraturno das aulas ou como parte dos clubes de ciências, virou atividade frequente em várias escolas públicas de Carlos Barbosa — todas as cinco da rede municipal aderiram, e a maioria das instituições estaduais também tem propostas semelhantes. No ano passado, foi dado um passo além: a criação de uma mostra científica virou lei.
— Desde 2018, inserimos essa estratégia nos projetos pedagógicos de todas as escolas municipais, sendo que todos os alunos com quatro anos ou mais desenvolveram trabalhos científicos. Foi algo obrigatório tendo em vista a importância da pesquisa científica no desenvolvimento de habilidades preconizadas na Base Nacional Comum Curricular — explica o secretário de Educação, Fabiano José Taufer.
A 1ª Mostra Científica Municipal de Carlos Barbosa, em outubro de 2018, reuniu 153 trabalhos, totalizando 930 alunos envolvidos. Ao longo de todo o ano, a participação foi ainda maior: nas etapas preliminares, realizadas em cada escola classificando para a grande feira, foram 3,5 mil alunos engajados em projetos de pesquisa. E tudo tem se repetido neste ano, em meio às preparações para a segunda edição da mostra, que será realizada em agosto.
Os custos para tornar tudo isso possível não foram nada exorbitantes, considerando-se a realidade de um município de 29.409 habitantes. Toda a organização demandou da prefeitura, no ano passado, investimento de menos de R$ 10 mil — gastos em estrutura, material gráfico e premiação, como medalhas e troféus. Para este ano, com a qualificação da infraestrutura oferecida, a previsão é de gastos na ordem de R$ 20 mil.
Tentativas, erros, acertos
Mas voltemos à Escola Estadual Elisa Tramontina. Durante uma aula de Química, na mesa ao lado de onde Dhienefer trabalhava com seus incensos, dois alunos tentavam encontrar o ponto ideal de aquecimento de folhas de arruda.
Em experimentos anteriores, também devidamente anotados em um diário de bordo mantido por eles, as folhas queimaram — e os restos estão guardados em um potinho de vidro, para lembrá-los do aprendizado.
Após algumas tentativas — e alguns erros —, Brenda Bonatto, 15 anos, e Sabrina Machado Zaro, 16 anos, ambas do 2° ano do Ensino Médio, descobrem a temperatura mais adequada. E avançam outro passo rumo ao seu objetivo: extrair canabidiol, que tem sido prescrito para tratamento dos sintomas de diversas doenças, de uma planta com a qual, diferentemente do que ocorre com a maconha, não há ilegalidade no plantio e na colheita.
— Até pouco tempo atrás, achava-se que essa substância só existia na Cannabis sativa. Mas, felizmente, pesquisas recentes mostraram que está presente em várias outras plantas. Como, por exemplo, a arruda, que descobrimos também ter esse canabidiol. Vamos pegar um processo originalmente pensado para tirar o canabidiol da maconha e usar na arruda para ver se conseguimos extrair também dali. Neste ano, vamos tentar isolar o princípio e, no ano que vem, buscar transformar isso em um remédio — diz Brenda Bonatto, 15 anos, aluna do 2º ano do Ensino Médio.
Sendo a pesquisa algo obrigatório em diversas escolas do município, seria de se esperar que muitos trabalhos fossem feitos sem vontade, ou para cumprir tabela, certo?
Isso acontece, claro: há aqueles projetos que se limitam a replicar experimentos, outros que não avançam em um campo de pesquisa, alguns que são concluídos apenas em busca da nota — nem todos, afinal, se interessam pela aplicação da ciência na prática. Mas, em muitas turmas, o que se vê é mesmo a intenção de desenvolver um projeto importante e levar a pesquisa adiante.
—A pesquisa mexe com eles. Mexe com essa necessidade de saber o porquê, e não apenas aceitar que as coisas são assim. A pesquisa permite que eles saiam da caixa. Que pensem diferente, e façam diferente. Isso começa pequeno, com a ideia, a pesquisa teórica. E depois vai crescendo, enquanto eles começam a descobrir coisas que não sabiam — resume a professora Sandra.
Os resultados são motivo de orgulho também na Escola Estadual de Ensino Médio São Roque. As alunas Nicole Chies Steffani e Ana Cláudia Pradella dos Santos, ambas de 16 anos e alunas do 2° ano, passaram semanas conversando com meteorologistas, procurando tabelas com temperaturas mínimas e máximas no município, anotando cada nova informação que descobriam com o objetivo de verificar se as médias registradas pelos termômetros locais vêm aumentando com o tempo.
— E nós descobrimos que sim. Houve uma mudança radical de temperaturas por aqui nas últimas décadas. Nós já esperávamos isso, mas agora podemos provar. E, assim, conscientizar a população de que o aquecimento global existe mesmo e é muito sério — defende Nicole.
Há 95 trabalhos em andamento na escola, que também incentiva a pesquisa desde os primeiros anos do Ensino Fundamental até o final do Médio. Os 20 com os resultados mais promissores serão selecionados para apresentação na 2ª Mostra Científica Municipal. Mas, mesmo depois, ao longo do segundo semestre, o incentivo é para que os estudantes de todas as idades continuem se dedicando a trabalhos científicos.
— Acabamos tendo uma carga horária maior com iniciação científica e vemos que isso tem garantido bons resultados. Muitos alunos ficam mais motivados e aprendem desenvolvendo projetos que eles mesmos propuseram — conta Samuel Pedro Sattler, vice-diretor da escola.
Nos dois colégios estaduais que oferecem Ensino Médio em Carlos Barbosa, troféus, medalhas e certificados, frutos de premiações garantidas não só na mostra municipal, mas também em feiras regionais, nacionais e até internacionais, são exibidos com orgulho em estantes localizadas em áreas bastante visíveis para alunos, professores, funcionários, pais e visitantes em geral.
— A metodologia científica da pesquisa instiga os alunos a pensar sobre os problemas que envolvem nosso meio social, elaborar hipóteses de resolução desses problemas e testar essas hipóteses. Quando temos destaques na escola, isso motiva ainda mais. Outros alunos acabam querendo seguir o exemplo. Eles percebem que, mesmo a gente estando em uma escola pública, o que às vezes é difícil, porque não se tem todo o material de suporte necessário, é possível fazer trabalhos muito bons — afirma a diretora da Escola Elisa Tramontina, Rosane Mutzemberg.
Ano após ano, estudantes de Carlos Barbosa têm recebido destaque com seus projetos de pesquisa. Eles já conquistaram credenciais para participar de feiras em Portugal, no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Escócia — isso sem contar as presenças em mostras nacionais.
Às vezes, a própria prefeitura, por meio da secretaria de Educação, arca com custos das viagens como forma de incentivo. Para este ano, o orçamento previsto exclusivamente para isso é de R$ 13,9 mil. Mas o reconhecimento, concordam os envolvidos, é só outro passo nessa caminhada.
— O reconhecimento é detalhe. Às vezes a pessoa que olha de fora pensa que o objetivo é ganhar um prêmio. É bom ganhar prêmio, mas é melhor ainda você perceber o quanto evolui nas práticas do seu dia a dia. E os professores percebem a mudança. Os trabalhos começam a ser entregues com qualidade melhor, a concentração do aluno muda, ele passa a ter mais interesse sobre determinados assuntos porque entende que é importante saber. Todo mundo só tem a ganhar — garante a professora Sandra.
O projeto
- O que é? Mostra Científica Municipal e incentivo à iniciação científica em Carlos Barbosa.
- Quem faz? Estudantes e professores dos ensinos Fundamental e Médio e da Educação Infantil das escolas municipais, com participação de outros colégios.
- Desde quando? A 1ª Mostra Científica Municipal ocorreu em 2018, e a segunda edição será em 8 e 9 de agosto. Já o incentivo aos projetos científicos começou por volta de 2011 na Escola Estadual Elisa Tramontina.
- Responsáveis: secretarias municipal e estadual de Educação.
- Apoio: prefeitura de Carlos Barbosa, empresas, círculos de pais e mestres e comunidade, por meio, por exemplo, de rifas.
- Objetivo: estimular nos alunos o interesse pela iniciação à pesquisa científica e proporcionar aos professores o contato com metodologia de pesquisa e orientação de trabalhos, ampliando as possibilidades de ensino e a aprendizagem.
Conquistas:
São diversos os prêmios recebidos por estudantes das escolas municipais, estaduais e também particulares de Carlos Barbosa desde 2011, com destaque para as participações nas seguintes feiras:
- Edimburg Festival, em Edimburgo (Escócia)
- Expo-Sciences International (ESI) Brasil, em Fortaleza (CE)
- Exposição de Ciência, Engenharia, Tecnologia e Inovação (Expoceti), em São Lourenço da Mata (PE)
- Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), em São Paulo (SP)
- Feira Brasiliense de Tecnologia e Ciência (FeBraTec), em Brasília (DF)
- Genius Olympiad, em Nova York (EUA)
- Mostra Científica e Tecnológica das Escolas de Ensino Médio e Fundamental da Serra Gaúcha (Mostraseg), em Caxias do Sul (RS)
- Mostra Internacional de Ciência e Tecnologia (Mostratec), em Novo Hamburgo (RS)
- Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio Ambiente — Fiocruz, no Rio de Janeiro (RJ)
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