Agachada sobre o solo escorregadio e alaranjado, a bióloga Lísie Damke observava atentamente as rochas ao seu redor. Os joelhos da calça jeans clara já estavam marcados pela poeira fina que se soltava da ravina a cada movimento. Passava das 14h30min de 30 de junho e a equipe já havia encontrado os primeiros fragmentos fósseis no sítio de difícil acesso, localizado no município de Agudo, na região central do Rio Grande do Sul.
Entre os materiais localizados durante a prospecção naquela tarde, estão uma pequena lasca de osso, um dente incisivo, pós-canino, uma mandíbula e um possível pedaço de maxilar — todos pertencentes a espécies que conviveram com os dinossauros.
— Depois que nos acostumamos a ver o fóssil e as rochas, fica mais fácil diferenciar. Eu olhei para baixo e vi, daí só puxei, porque ele (o possível pedaço de maxilar) está desarticulado. Estava aparecendo, dentro do buraco. É a parte debaixo desse osso aqui, está bem firme e é bonitinho porque conseguimos ver os dentes — descreve a aluna do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Animal da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), apontando para a própria boca e para o osso em suas mãos.
Natural de Santa Maria, a bióloga de 23 anos faz parte da equipe do Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (Cappa) desde 2022. A unidade vinculada à UFSM e sediada em São João do Polêsine, a cerca de 260 quilômetros de Porto Alegre, é responsável por salvaguardar os fósseis escavados na região da Quarta Colônia, composta por outros oito municípios — Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande, Restinga Sêca e Silveira Martins.
Em sua coleção, o Cappa possui restos dos dinossauros mais antigos do mundo, que podem ser encontrados em apenas outras duas localidades: Argentina e África. Além de serem reconhecidos internacionalmente, os materiais achados no território gaúcho são muito bem preservados, o que representa um diferencial na comparação com outros países.
Lísie explica que, no laboratório da unidade, é possível preparar e estudar o que foi encontrado no afloramento, que é conhecido por ter muitos fósseis. Entretanto, quando são muito fragmentários, nem sempre se consegue ter certeza se os ossos pertenceram ao mesmo animal ou qual espécie representam.
Para a bióloga, o chamado trabalho de campo é a parte mais empolgante da paleontologia, justamente pela possibilidade de achar algo diferente a cada dia. Já o colega André de Oliveira Fonseca, 24 anos, aponta que as visitas aos sítios sempre envolvem muitas emoções: se acha algum fóssil, tudo vale a pena; caso contrário, fica frustrado.
— Gosto mais do meu trabalho lá, desenvolvendo meu projeto. Acho que é minha parte favorita, mas o campo também é legal. Achar algo novo é incrível, só que tem a frustração quando não achamos nada. Cansar vale a pena, quando temos resultado — comenta o biólogo e mestrando em Biodiversidade Animal, que atua há quatro meses no Cappa.
Natural de Juiz de Fora, Minas Gerais, o jovem conta que já conhecia o centro pelo material que publicam. Por isso, veio para o Estado no ano passado para fazer um estágio na unidade e, após concluir a graduação em sua cidade natal, decidiu migrar definitivamente para o território gaúcho:
— Vim experimentar, ver se era tudo aquilo que falavam. E é muito melhor do que eu imaginava! Nem se compara com a estrutura da minha região. Lá tem paleontologia, mas é tudo mais distante e não pode coletar continuamente. Aqui, fora a estrutura, a proximidade é uma coisa que facilita muito o nosso trabalho.
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Fósseis triássicos
Após mais de uma década atuando nesta área, o trabalho de campo continua sendo a parte preferida de Rodrigo Temp Müller, 30 anos, chefe do Cappa. Na visita ao sítio de Agudo, o paleontólogo foi o responsável pela localização de um dente, uma mandíbula e um outro fóssil, que também acreditava se tratar de uma mandíbula. Esses dois últimos, o especialista apenas deixou parcialmente expostos na rocha, para que pudessem retirá-los quando estivessem com todos os materiais necessários.
— Assim que constatamos que ali tem um fóssil, precisamos expô-lo parcialmente para verificar se é um material isolado ou são vários indivíduos associados, estabilizá-lo com resinas e colas, escavá-lo com as ferramentas de campo, protegê-lo com gesso e, depois, retirar o bloco de rocha inteiro contendo o material para levá-lo até o Cappa. Não faremos (no momento da visita) isso porque precisa do gesso e demora um pouco mais — explica Müller.
Para escavar os fósseis, o paleontólogo utilizou um bisturi. Facas e talhadeiras pequenas, picaretas, martelos e curetas também estão entre os equipamentos usados em campo pelos pesquisadores. Apesar de não deixar transparecer, o chefe do Cappa confessa que a empolgação toma conta quando algo é encontrado nos sítios:
— Essa sensação de estar mexendo aqui na rocha e de repente aparecer o resto do animal de tantos milhões de anos atrás é sempre legal. Viemos para o campo já imaginando o que pode ter, mas nunca temos certeza do que vamos achar, então sempre tem aquela expectativa de que pode aparecer algo novo.
De acordo com Müller, o turno escolhido para ir a campo e o tempo em que ficarão no local depende da temperatura e do que encontrarão no sítio. O tamanho do fóssil descoberto também terá impacto na duração da escavação, que pode demorar dias, semanas e até meses. Nessas saídas, já costumam levar o gesso e a juta, que é um tipo de tecido, para o caso de precisarem remover algo. Além disso, calçam botas adequadas para transitar pelo afloramento e carregam suas mochilas, com equipamentos, água e protetor solar.
Já a escolha do sítio varia conforme o que os pesquisadores desejam estudar, isso porque cada local tem uma idade e uma determinada fauna. O paleontólogo esclarece que a rocha sedimentar que aflora na região central do RS, na chamada Depressão Central, é do período Triássico e tem cerca de 230 milhões de anos. Esse período é o primeiro da Era Mesozoica, quando existiam os dinossauros — depois, vem o Jurássico, que é o mais famoso pelo nome, e o Cretáceo, o mais recente.
— Há sítios dessa idade tanto no território do Geoparque Quarta Colônia, quanto em outros pontos do Estado. Aqui, temos o surgimento dos dinossauros registrados nas rochas, temos parentes muito próximos dos pterossauros, ancestrais dos mamíferos e todas essas faunas que posteriormente tiveram muito sucesso durante a Era Mesozoica. E o diferencial daqui é que temos uma diversidade grande de fósseis, com uma preservação única no mundo todo. Por isso, o Brasil tem alguns dos fósseis triássicos mais importantes do mundo — afirma.
A grande quantidade de fósseis na região é explicada pelo fato de que, no passado, o ambiente era florestal e suportava uma certa diversidade de vida, ou seja, existiam muitos animais naquela área. A localidade também representava um ambiente deposicional bom para preservar fósseis: ocorriam cheias, a lama que estava no fundo dos rios era carregada para planície de inundação, cobria os esqueletos dos animais que lá estavam e, com o passar do tempo, se tornava a rocha que hoje é visível e escavada por pesquisadores.