Muita gente não sabe o que é uma paleotoca, mas essas estruturas subterrâneas estão espalhadas pela natureza, inclusive em Porto Alegre. O assunto voltou a despertar interesse após uma delas, com cerca de 200 mil anos e 35 metros de profundidade, ser descoberta na mata nativa do terreno que pertence à vinícola Almadén, em Santana do Livramento, na Fronteira Oeste.
— Uma paleotoca é um abrigo subterrâneo escavado por um animal de grande porte pré-histórico, como tatu-gigante ou preguiça-gigante — define Heinrich Theodor Frank, professor de geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Projeto Paleotocas na Região Metropolitana.
Há milhares de anos, os animais cavavam abrigos, provavelmente para fugir de predadores, das temperaturas extremas e até para procriar em espaços protegidos. Por se tratarem de estruturas cavadas por feras de épocas geológicas passadas, a pesquisa sobre paleotocas se insere na paleontologia.
— Na paleontologia, há um ramo chamado iconologia, que pesquisa traços fósseis, como pegadas, rastros, buracos e outras coisas do gênero. Dentro dela, estudamos as tocas, não o bicho que cavou, mas o buraco que o animal deixou para trás — explica.
A reportagem de GZH visitou uma paleotoca de cerca de 26 metros de extensão e com ao menos três túneis, nesta quinta-feira (2), no Morro da Tapera, na zona sul da Capital. Fica em uma área de mato a cerca de 500 metros da Avenida Juca Batista, partindo da altura do número 2.980. Há uma trilha ascendente a ser percorrida até o local, mas a entrada da toca — que possui 1,30 metro de largura por 1 m de altura — está situada em um ponto escondido em meio à vegetação.
— Esta paleotoca do Morro da Tapera é o que sobrou de um sistema de vários túneis conectados entre si, cuja abertura só foi revelada depois que fizeram uma terraplanagem aqui. Realizaram uma escavação, retiraram granito e removeram também a primeira porção da entrada, que estava completamente entupida — detalha o docente, que atuou como guia da equipe.
Para entrar nos túneis, é necessário se preparar, vestindo calça especial, propés mais longos do que os habituais, toucas, luvas e lanternas de cabeça e de mãos. O uso de máscara também é recomendado.
Uma paleotoca é um abrigo subterrâneo escavado por um animal de grande porte pré-histórico, como tatu-gigante ou preguiça-gigante.
HEINRICH THEODOR FRANK
Professor de geologia da UFRGS
As paleotocas encontradas no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina foram escavadas pelos animais mencionados. Eram os únicos a possuírem garras grandes para cavarem os buracos e foram extintos há 10 mil anos.
Os tatus-gigantes viveram em Porto Alegre entre 10 milhões e 10 mil anos atrás, e chegavam a pesar até 250 quilos. As preguiças-gigantes habitaram a região da Capital entre 2 milhões e 10 mil anos atrás, e as menores podiam pesar em torno de uma tonelada. Atualmente, aranhas, morcegos, sapos, crustáceos, insetos e algumas aves podem habitar essas tocas.
Entretanto, é praticamente impossível precisar a idade das paleotocas em solo gaúcho.
— As rochas nas quais as paleotocas foram escavadas geralmente são muito mais antigas do que a megafauna. Então, a rocha em si não nos dá nenhuma informação de idade. Dentro da toca não temos nada que possa datar — esclarece o professor, que pesquisa o tema há 20 anos.
Durante o deslocamento pelo interior da paleotoca, foi possível perceber que havia poucas aranhas. Mas a ação poluidora do homem chegou até esses túneis. Três pneus estavam espalhados em alguns cantos.
— As paleotocas foram escavadas em granitos alterados, o que garante a estabilidade das tocas — garante o docente.
Suscetíveis a intempéries
Frank estima que existam aproximadamente 12 paleotocas na cidade, sendo algumas concentradas na mesma área, mas nem todas acessíveis — em alguns casos, restaram apenas vestígios, em outros, os buracos estão preenchidos.
Além da visitada pela reportagem, em frente à Faculdade de Agronomia da UFRGS estão os restos de uma toca que foi destruída depois de ser atingida por um alagamento na Avenida Bento Gonçalves, em meados de 1985. Outra está situada em cima do morro em frente à mesma faculdade, mas sofreu danos devido à existência de um chiqueiro de porcos no seu entorno. Na área de preservação ambiental do Parque Natural Morro do Osso, que contempla 127 hectares entre os bairros Tristeza, Ipanema, Camaquã e Cavalhada, também há outra. Além dessas, havia algumas preenchidas em um loteamento do bairro Guarujá. Porém, não são mais possíveis de serem visualizadas (confira algumas conhecidas no mapa).
Na Região Metropolitana, cerca de 400 paleotocas preenchidas já foram encontradas pelos pesquisadores. Ao longo das obras de duplicação da BR-116, entre Guaíba e Tapes, outras 200 delas acabaram descobertas.
— Cada morro tem, ao redor da sua beira, várias paleotocas. O difícil é achá-las. Provavelmente, existam muitas dezenas delas em Porto Alegre, mas devem estar tapadas por construções — acredita o especialista.
Outro ponto destacado pelo geólogo é que as pessoas esperam encontrar paleotocas espaçosas e gigantes.
— O pessoal sempre acha que paleotoca está aberta, bonita e limpa. As abertas e acessíveis são exceção. Geralmente, encontramos elas entupidas — atesta.
O professor Francisco Sekiguchi Buchmann, do Laboratório de Estratigrafia e Paleontologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é uma das referências no país em relação às paleotocas. O docente estima quantas existem na América do Sul, ressaltando apenas as confirmadas por equipamentos de geolocalização:
— São cerca de 2 mil delas, especialmente no RS e em SC.
Conforme Buchmann, há paleotocas com cerca de 3 milhões de anos, que seriam anteriores à separação do continente norte-americano do sul-americano.
— As existentes no Brasil possuem aproximadamente 300 mil anos. Nada impede que elas tenham, por exemplo, de 15 milhões, quando surgiu a megafauna, até 3 mil anos. A idade da parede não é a mesma do buraco — ensina, acrescentando que o assunto precisa ser mais divulgado para o público. — Dentro do circuito acadêmico, é bem conhecido, mas localmente, pelo brasileiro, é muito difícil. A grande maioria não sabe nem que existe.
Na avaliação do pesquisador, aqui se conhece o mamute em função dos desenhos. Mas se desconhece, por exemplo, sobre os dinossauros brasileiros.
— No estado do Pará, temos uma paleotoca com 1,5 quilômetro. Não está bem preservada — compartilha.
Buchmann resume a situação dessas tocas na Capital:
— A região de Porto Alegre é riquíssima em paleotocas — conclui.
Também há uma paleotoca localizada no município de Doutor Pedrinho, em Santa Catarina, que foi simulada em 3D. O trabalho científico foi publicado na Revista Brasileira de Paleontologia no ano passado. É possível visualizar como a toca é por dentro acessando aqui.
Os estudos acerca das paleotocas podem ser acessados neste link.
Saiba mais
- Além de Porto Alegre e da Região Metropolitana, há paleotocas em outros municípios do RS, como São José dos Ausentes, Riozinho, Agudo, Cristal, Cambará do Sul, Gramado, Chuvisca, Encruzilhada do Sul, Soledade, São Lourenço do Sul, entre outros.