Na região central do Rio Grande do Sul, paleontólogos e estudantes que atuam no Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (Cappa), vinculado à Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), realizam prospecções frequentes em busca de fósseis de animais pré-históricos. Os especialistas visitam sítios espalhados pelos nove municípios que compõem a área da chamada Quarta Colônia — Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande, Restinga Sêca, São João do Polêsine e Silveira Martins — e, ao encontrar algum sinal de fragmento ósseo, começam a escavação. Depois disso, tem início o trabalho interno.
Dentro da sede do Cappa, que fica em São João do Polêsine, funcionários e mais de 20 alunos de graduação e pós-graduação da UFSM preparam e estudam os fósseis encontrados nos sítios. Conforme o chefe do Cappa, Rodrigo Temp Müller, 30 anos, a unidade foi construída pelos municípios da região e, posteriormente, cedida para a instituição de ensino.
O objetivo dos pesquisadores é escavar e coletar os fósseis da região para armazená-los na sede do centro. Nos laboratórios, eles fazem a preparação do material para estudá-lo e, depois, guardá-lo na coleção científica ou deixá-lo exposto em uma área que é aberta para visitação diariamente (confira detalhes no final desta reportagem).
— Temos aqui fósseis dos dinossauros mais antigos do mundo. Somente na Argentina e no continente Africano tem animais com a mesma idade, só que os daqui são mais bem preservados. Se não salvarmos esses materiais agora, eles serão perdidos para sempre. Cada chuva destrói um pouquinho da história. Então, salvar esses fósseis é importante agora e para as gerações futuras, porque ajuda a reconstruir a história da vida na Terra — destaca Müller.
Paleontólogos de outras instituições, como da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), também coletam fósseis nos sítios da Quarta Colônia. Entretanto, Müller comenta que há um acordo entre as entidades estabelecendo que podem levar os materiais para estudar, mas que depois devem devolvê-los ao Cappa.
O chefe da unidade ressalta que a exposição não tem muitos itens, porque o local é apenas um centro de pesquisa e não um museu, mas comenta que há a intenção de ampliar o espaço futuramente. Por enquanto, o setor ajuda a suprir a demanda daqueles que têm interesse em ver um fóssil de perto e conhecer o trabalho realizado na unidade. Ou seja, além de resgatar e armazenar os restos de animais, o Cappa tem como objetivo permitir que a população tenha acesso a eles.
Na sala, há materiais grandes e pequenos que foram coletados em sítios da região. As peças que estão protegidas por vidros são originais, enquanto as outras, como um grande crânio, são réplicas construídas a partir do fóssil original.
— É um dos poucos lugares em que se consegue ficar ao lado do fóssil, porque os materiais originais precisar ser reestudados o tempo todo. Então, viemos aqui, tiramos ele e, depois, colocamos de volta. Não tem como fazer isso em um museu, onde não tem um laboratório bem do lado, por isso, geralmente são só réplicas, mas aqui conseguimos deixar os originais — explica o paleontólogo, apontando para os itens expostos e acrescentando que a maior parte está na coleção científica, que conta com cerca de 400 espécimes catalogadas.
Entre os fósseis da exposição, destacam-se o da espécie Dynamosuchus collisensis, que foi escavado em 2019, no município de Agudo, e é o único exemplar do seu grupo já descoberto no Brasil; e o do Gnathovorax cabreirai, encontrado em São João do Polêsine e considerado o mais completo e bem preservado de um dinossauro predador do início da história evolutiva desses répteis em todo o mundo.
Em outra sala, ficam os blocos coletados nos afloramentos que ainda precisam ser preparados. O trabalho de preparação, segundo Müller, é minucioso e consiste em remover o sedimento para poder extrair o fóssil de dentro da rocha. Eles acabam se acumulando, afirma, porque a equipe encontra mais material do que consegue preparar. Contudo, os fósseis mais interessantes ou inéditos têm prioridade nessa “fila”.
Outro ambiente, preenchido por um barulho que lembra um consultório dentário, comporta o laboratório de preparação, onde é feito o “trabalho sujo” para tirar o fóssil da rocha — o que pode demorar semanas ou meses. Entre os equipamentos utilizados nessa etapa, estão serras circulares, marteletes de mão feitos exclusivamente para a paleontologia e bisturis. Para dar resistência ao material, os pesquisadores vão aplicando camadas de resina misturada em acetona, antes mesmo de removê-lo completamente da rocha. Há também uma parte de preparação química, em que o fóssil fica de molho no ácido.
Vestindo um jaleco branco já coberto de poeira alaranjada, a doutoranda em Biodiversidade Animal Débora Moro, 28 anos, preparava um fóssil em uma das mesas do laboratório, utilizando um martelete:
— Aqui está toda a cintura pélvica dele, a região do quadril. Quando tem rocha ainda, preparamos com o martelete e, quando está mais perto do fóssil, utilizamos o bisturi. É um trabalho minuciosíssimo, digo que é quase cirúrgico. Tem que ter a habilidade de um cirurgião, com calma e paciência. Se vai muito rápido, danifica o material — explica a paleontóloga, que é licenciada em Ciências Biológicas e atua no Cappa há quase cinco anos.
É um trabalho minuciosíssimo, digo que é quase cirúrgico. Tem que ter a habilidade de um cirurgião, com calma e paciência. Se vai muito rápido, danifica o material.
DÉBORA MORO
Doutoranda em Biodiversidade Animal
Natural de São Pedro do Sul, a aluna enfatiza que considera o trabalho realizado na unidade muito bonito pelo fato de estarem resgatando o passado. Também destaca a importância dessa atividade tanto do ponto de vista científico quanto social, já que o espaço é aberto para quem quiser conhecer.
O chefe do Cappa ressalta ainda que a região não tinha nenhum tipo de divulgação desse trabalho anteriormente, então, apesar de ter nascido em Agudo, um município que tem escavações, só foi ter contato com fósseis depois de se tornar paleontólogo. Agora, essa realidade está mudando:
— É como se estivéssemos correndo atrás de anos de prejuízo, porque aqui tem muito fóssil, tem todo esse patrimônio, mas as pessoas não tinham acesso. Agora, elas têm um acesso gratuito no Cappa. Também estamos nos aproximando mais dos estudantes e das pessoas que têm interesse na área, porque formamos paleontólogos, a partir do mestrado, e temos toda uma estrutura só para isso.
A estrutura do Cappa conta ainda com salas administrativas, o espaço da coleção científica, onde os fósseis são guardados identificados em armários, áreas com computadores para pesquisa e um ambiente onde são produzidas as réplicas em impressoras 3D. Além disso, possui dormitórios para os pesquisadores.
A paleontologia no Brasil
De acordo com o professor Renato Pirani Ghilardi, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), a paleontologia nacional é uma ciência ainda em desenvolvimento. Isso porque, apesar haver comissões de pesquisadores coletando e descrevendo fósseis pelo Brasil desde o final do século 19, não há um número suficiente de profissionais para trabalhar no vasto território do país. São cerca de 600 pessoas associadas à SBP, por exemplo, mas menos da metade realmente trabalha com paleontologia, afirma o especialista.
— Isso se dá por vários fatores, o principal deles é que a paleontologia é uma ciência interdisciplinar aqui no Brasil. Ou seja, para ser paleontólogo, o profissional precisa ser formado em uma pós-graduação. Também temos o problema de que ainda não há uma definição por lei sobre o que é ser um paleontólogo no nosso país — esclarece.
Mesmo assim, Ghilardi garante que a pesquisa brasileira em paleontologia é de um nível razoavelmente bom e que existem paleontólogos de alto nível no país, especialmente pelas conexões traçadas com pesquisadores internacionais. Assim, tanto os fósseis quanto as pesquisas da área do Brasil são “bem-vistas” no Exterior.
Ao comentar sobre os países referência na área, o professor explica que as nações mais desenvolvidas são aquelas que mais elaboram pesquisas, o que é chamado de colonialismo científico. Portanto, Estados Unidos, Inglaterra e Japão são alguns dos que se destacam nos estudos paleontológicos. Já a China, por exemplo, tem se destacado em pesquisas sobre dinossauros e vertebrados.
— Mas há sempre uma mobilidade, não é um ranking estanque de quais são os “melhores” ou “piores” países. Depende muito das condições econômicas do país naquele momento e do que está sendo descoberto por lá. O Brasil, nesses últimos anos, teve um reconhecimento científico importante em decorrência desse roubo do dinossauro Ubirajara jubatus, mostrando que aqui também há potencial de se achar animais de importância evolutiva — afirma.
Conforme Ghilardi, esse tipo de ranqueamento também se reflete nos estados brasileiros, ou seja, regiões com mais dinheiro ou com um desenvolvimento científico mais antigo terão, em teoria, maior capacidade de recursos para que haja pesquisa paleontológica. No início deste século, os Estados que produziam maior quantidade de trabalhos científicos eram Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro:
— O Rio Grande do Sul tem uma quantidade enorme de paleontólogos de muito bom calibre nos dias de hoje e há uma produção muito boa, afinal, os vertebrados continentais mais antigos do nosso país estão aí. Então, temos pesquisas muito importantes vindas daí e em quantidade muito grande, assim como em outros estados.
Como visitar
O Cappa fica aberto para visitação todos os dias, das 9h às 11h30min e das 13h30min às 17h. De segunda a sexta-feira, as visitas são realizadas exclusivamente com agendamento prévio. Aos sábados, domingos e feriados, é necessário agendamento somente para grupos com mais de 10 pessoas.
- Contato: pelo WhatsApp (55) 99974-1090 ou pelo e-mail cappa@ufsm.br
- Endereço: Rua Maximiliano Vizzotto, número 598, em São João do Polêsine