Especializada no roubo de cargas de cigarro, uma quadrilha que age na Região Metropolitana contava com o apoio do funcionário de uma grande empresa do ramo e de um empresário, dono de posto de combustíveis, que encomendava os assaltos.
No esquema, o empregado, que atuava como motorista e fazia entrega dos produtos para a empresa, repassava informações sobre a rota e sistemas de segurança para que o grupo criminosos fizesse os roubos. Já empresários investigados encomendavam as cargas, para revendê-las em comércios, e um deles teria até emprestado o carro para que fossem praticados os crimes.
Uma operação, deflagrada na manhã desta quarta-feira (6), mira desarticular a quadrilha, suspeita de praticar ao menos cinco crimes do tipo até o ano passado em Porto Alegre e na Região Metropolitana.
A ação ocorreu nas cidades de Canoas, Esteio e Gravataí, com base em 34 ordens judiciais, sendo que 22 eram mandados de busca e apreensão. Os outros 12 são das chamadas medidas cautelares diversas de prisão, nas quais são colocadas tornozeleiras eletrônicas nos investigados — a Justiça negou o pedido de prisão preventiva do grupo (entenda abaixo).
O trabalho começou por volta das 5h30min e se encerrou perto das 12h. Seis alvos foram localizados e detidos. O grupo foi encaminhado para a colocação de tornozeleira eletrônica. Outros três, que já estavam recolhidos no sistema prisional, também foram comunicados sobre as novas medidas cautelares. Ao longo da ação, outras duas pessoas foram presas em flagrante por contrabando de cigarros do Paraguai e por porte ilegal de arma de fogo. O armamento, um revólver 357, foi apreendido, assim como celulares, os cigarros contrabandeados, balaclava e munições.
As autoridades não divulgaram o nome dos alvos da ação, mas a reportagem apurou que o motorista que trabalhou para uma grande empresa de cigarro é Carlos Eduardo Padilha, 41 anos, que atualmente está preso por tráfico de drogas. Ele foi um dos que recebeu nova ordem judicial de detenção. Já o empresário é Volnei da Silva Medeiros, dono de um posto de gasolina em Gravataí. A reportagem tenta localizar a defesa dos suspeitos para contraponto.
O trabalho foi coordenado pela Delegacia de Repressão a Roubo e ao Furto de Cargas (DRFC), do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil. Participam da Operação Abuse Of Truste 119 policiais civis.
Tornozeleira abandonada
Um dos alvos da operação é um homem de 31 anos que teria 12 antecedentes por homicídio doloso, além de registros por roubos a residência e a motoristas. A polícia fez buscas em endereços onde ele poderia estar, mas o suspeito não foi localizado e é considerado foragido.
Em Gravataí, em um desses endereços, a polícia afirma ter encontrado uma tornozeleira rompida, deixada no imóvel. As equipes irão confirmar se o aparelho é do homem ou se poderia ser de um terceiro.
Para a diretora do Deic, delegada Vanessa Pitrez, a apreensão do equipamento, abandonado, confirma que a instalação de tornozeleiras nos alvos não é suficiente para impedir novos roubos.
— Acreditamos que essa tornozeleira é de um dos coordenadores operacionais desses roubos. O aparelho estava rompido, dentro da casa dele. É uma prova clara de que esse tipo de medida judicial não tem efetividade para criminosos de grupos criminosos, com prática de delitos violentos. o monitoramento não tem se mostrado eficaz para esses indivíduos — avalia Pitrez.
Procurada, a comarca de Gravataí informou que "o processo tramita em sigilo". "A magistrada informa que a delegada de polícia ainda não apresentou relatório de cumprimento das diligências realizadas, sendo inviável prestar maiores esclarecimentos", diz a nota (leia integra abaixo).
Informações privilegiadas
Conforme a investigação, nos roubos, os criminosos interceptam o furgão carregado, durante o trajeto do depósito das empresas até os lojistas, em via urbana. Depois, rendem os motoristas e os fazem conduzir o veículo até uma rua mais deserta, onde descarregam as caixas de cigarro para o carro da quadrilha. Em alguns casos, os condutores são obrigados a ajudar a descarregar a mercadoria e trocá-la de veículo.
Nos casos que tiveram apoio do ex-funcionário da empresa, Carlos Eduardo Padilha, a quadrilha recebeu informações privilegiadas, segundo a polícia.
Em um roubo registrado em 14 de abril do ano passado, o então motorista teria passado orientações aos comparsas, que fariam o assalto. Ele teria repassado a placa do veículo que iria utilizar, a quantidade de carga transportada e ainda teria alertado sobre a possível existência de um rastreador na carga, conforme a polícia. Ainda teria se comprometido a enviar sua localização em tempo real, facilitando a própria abordagem. A carga que ele transportava na ocasião foi avaliada em mais de R$ 64 mil.
Segundo a polícia, Padilha combinava detalhes de roubos com três grupos criminosos diferentes. Antes de ser preso, mensagens enviadas por ele mostram como agia, segundo a investigação. Ele escreveu:
“Opa, a placa da caminhonete que estou é xxx. Certo amanhã?"
O empresário respondeu:
“Manda a localização em tempo real amanhã.”
Mais tarde, Padilha avisa:
“Oh amigo olha só, vamo acerta mais ou menos assim (...) como eles me deram outra caminhonete né, tem câmera na frente e no baú tá, e provavelmente pode ser tenha rastreador tá, hoje não tinha tá, mas eles andaram botando.”
No dia seguinte, em 14 de abril de 2022, após o roubo, ele enviou nova mensagem:
“Essa deu grande, deu bastante caixa grande.”
Ainda segundo a apuração, um outro dono de estabelecimento comercial, na Região Metropolitana, também faria combinações com Padilha. O ex-funcionário teria pedido ao comerciante que encomendado uma compra de cigarros, em pouca quantidade, para que, no momento da entrega na loja, a quadrilha efetuasse o roubo. Em troca, Padilha teria oferecido R$ 1,5 mil pelo "serviço" ao empresário.
Conforme a polícia, em maio do ano passado, Padilha foi desligado da empresa de cigarros e teria passado a praticar os roubos com a quadrilha. Em julho de 2022, câmeras de segurança flagraram o homem abordando um motorista de uma empresa para roubar a carga, segundo a polícia.
— Dessa forma, além de repassar informações privilegiadas obtidas da empresa onde era funcionário, ele passou depois a ser autor imediato dos crimes, rendendo os motoristas e roubando a carga de cigarro. Somente dois roubos realizados por ele superam a quantia de R$ 30 mil — afirma a delegada Isadora Galian, que coordena a investigação e a ação desta quarta.
Polícia pediu prisão há quatro meses, mas Justiça optou por tornozeleira
De acordo com o Deic, as equipes pediram pela prisão preventiva das 12 pessoas em agosto, “por todo arcabouço probatório obtido no decorrer do inquérito policial”. No entanto, o Poder Judiciário entendeu que medidas cautelares diversas da prisão — ou seja, o monitoramento eletrônico — seria suficiente para evitar que os envolvidos voltem a cometer os crimes. A decisão judicial saiu em dezembro, dias antes da operação desta quarta.
O retorno judicial, neste caso, gerou frustração, pontua o delegado Eibert Moreira Neto, o diretor da Divisão de Investigação do Deic.
— É algo muito frustrante. Essa investigação está protocolada no Poder Judiciário desde agosto, quando foram pedidas as prisões. A resposta veio só agora, apesar de o pedido ter caráter de urgência. Deveriam ser apreciadas com a maior brevidade possível, o que não ocorreu. Quando veio a decisão, se determinou pelo monitoramento, não pela prisão. Mesmo que esses casos investigados não tenham registrado violência física contra as vítimas, houve emprego de arma de fogo. Vemos também que o nível de violência vem aumentando em casos mais recentes, com quadrilhas utilizando fuzis durante os roubos — pondera o diretor.
O delegado afirma que alguns dos alvos da operação desta quarta têm passagens por crimes violentos, como homicídio. Um deles teria 13 antecedentes por este delito.
Dinheiro para facções
Segundo o Deic, organizações criminosas se utilizam do roubo de cargas para buscar uma rápida capitalização e utilizar o dinheiro para comprar armas visando enfrentamento com grupos rivais por pontos de venda de drogas e fortalecer a facção.
Apesar de uma queda de cerca de 35% nos roubos a motoristas que fazem entregas de cigarro, esta segue sendo a carga mais visada por criminosos, de acordo levantamento feito pela Divisão de Inteligência e Análise Criminal do Deic.
Isso ocorre em função da facilidade de comercializar o produto, pois pode ser vendido em diversos locais, como padarias, bancas de jornal e mercados. Além disso, o item possui alto valor comercial, trazendo lucro rápido a facções criminosas.
Para a diretora do Deic, a operação desta quarta-feira é mais uma demonstração da forte atuação departamento no combate ao crime organizado nas suas mais variadas linhas criminosas.
— Os fatos investigados indicam claramente a formação de uma rede criminosa em torno do roubo de cargas de cigarro, que é a mercadoria mais roubada no país em razão da grande movimentação de transporte, fácil escoamento do produto e alta lucratividade obtida com a revenda ilegal. Nossa investigação desbaratou toda a rede de criminosos envolvida nessa atividade criminosa: de um lado membros de uma conhecida facção ligada ao tráfico de drogas, em sua maioria com extensa e violenta ficha criminal que se utiliza dessa prática criminosa para capitalizar sua organização; de outro, empresários que encomendam o roubo para compra do produto a baixo custo e revenda pelo mesmo valor tabelado no comércio formal, aumentando muito sua lucratividade. Todos os envolvidos nesses crimes foram identificados e serão responsabilizados, no que depender do trabalho da Polícia Civil — enfatiza Pitrez.
Contrapontos
O que dizem as defesas de Carlos Eduardo Padilha e Volnei da Silva Medeiros:
GZH não conseguiu contato com as defesas dos dois investigados.
O que diz o TJ-RS sobre os pedidos de prisão:
O processo tramita em sigilo e não há pedido, pela autoridade policial, para que os autos sejam tornados públicos.
A magistrada informa que a Delegada de Polícia ainda não apresentou relatório de cumprimento das diligências realizadas, sendo inviável prestar maiores esclarecimentos, sob pena de tornar ineficaz alguma medida que ainda possa estar em curso e que esteja a cargo da Polícia Civil.
Tão logo reduzido o nível de sigilo dos autos, será possível complementar as informações.