Aos 31 anos, Jéssica Aline de Souza Tavares dos Santos traçava planos em busca de uma vida bem diferente da que vinha levando nos últimos anos. Estava comprometida com a mudança: trabalhava de manhã, fazia estágio à tarde, planejava a formatura em Enfermagem para o próximo semestre e ensaiava os primeiros passos na busca por um apartamento, que alugaria para morar sozinha, como sonhava. Para isso, decidiu se separar do companheiro, de 46 anos.
Durante a conversa, no último sábado (4), as expectativas de vida da estudante foram ceifadas, relatam familiares. Conforme a Polícia Civil, o homem não aceitou o fim do relacionamento e passou a agredir a vítima. Jéssica morreu na casa onde os dois moravam havia mais de 10 anos, em Porto Alegre, que foi incendiada horas depois pelo homem.
Conforme a polícia, o companheiro da vítima, que não teve a identidade divulgada, se apresentou à delegacia no domingo (5), um dia após o crime. Confessou o feminicídio e foi preso em flagrante. Segundo a ocorrência, ele chegou ao local dizendo:
— Ontem matei minha mulher e vim me entregar — sem informar mais detalhes aos policiais.
De acordo com a família da vítima, os dois estavam juntos havia 13 anos. Eles se conheceram quando Jéssica tinha 18, e ele 33. Começaram a namorar e logo foram morar juntos. Nos últimos tempos, residiam em uma casa no bairro Chapéu do Sol, na Zona Sul.
Nos últimos anos, Jéssica teria percebido que o relacionamento não lhe fazia bem, afirma a mãe, Ieda Maria Rodrigues de Souza Medronha, 52. A filha costumava relatar um comportamento agressivo e ciumento por parte do homem, que controlava e, por vezes, impedia a vítima de visitar familiares.
De olho em um futuro distante dessa realidade, a mulher estava para concluir o curso de Enfermagem na Faculdade Factum. A formatura estava prevista para daqui a cinco meses. Enquanto isso, ela fazia estágio em um posto de saúde à tarde, e pela manhã trabalhava em um hospital como técnica em enfermagem. O gosto pela profissão veio da mãe, que também é técnica na área.
Filha mais velha de quatro irmãos, Jéssica gostava de passar o tempo com a família e era muito ligada à mãe:
— Ele não deixava ela vir, não queria que visitasse a família. Então ela dizia para ele que ia fazer plantão no hospital, me ligava e dizia: "Vou aí tomar um café contigo". Ela tinha que mentir. Apesar disso tudo, era uma pessoa muito alegre, feliz, educada, brincalhona. Era querida por todos, por gente do trabalho, pelos amigos, pela família. Ela estava na melhor fase da vida, se cuidando, quase se formando — conta a mãe.
Segundo Ieda, a estudante vinha planejando se mudar após a separação. Queria alugar um apartamento e morar sozinha, um dos sonhos que mantinha.
— Ela se abria muito comigo. Dizia que ia tirar férias agora em dezembro, aí pegaria o dinheiro disso para alugar um apartamento. Eu dizia que ela podia ficar aqui ou com os irmãos, mas ela queria ter o canto dela, ser independente.
Jéssica nasceu em Porto Alegre, mas morou com o pai em Venâncio Aires até os sete anos. Depois, veio para a Capital morar com a mãe.
Mulher acreditava que homem iria mudar, diz mãe
Ieda conta que mudou de bairro há alguns meses e passou a morar perto da filha. Há cerca de quatro meses, notou uma mudança de consciência em Jéssica, em relação ao que ocorria dentro do relacionamento.
— Ela estava mais consciente de que o relacionamento não tinha volta, que queria se separar. Porque por muito tempo ela acreditou que ele iria melhorar com ela, mudar. Ele era possessivo, perseguia ela no trabalho, não deixava ver a família, não podia ter amigas, estava sempre controlando ela. Já briguei muito com ele, a gente não queria que ela ficasse nesse relacionamento.
A mãe afirma ainda que a jovem já havia relatado agressões físicas por parte do companheiro:
— Ele batia nela com frequência, mas ultimamente ela dizia que isso tinha parado. Sei que a tortura psicológica nunca parou, ele dizia que ia se matar se ela separasse, falava que ia se cortar, se aplicar medicamentos. Fazia chantagem porque ela não queria mais o relacionamento. Eu disse para ela fazer um boletim de ocorrência por agressão e tortura psicológica, ela tinha feito naquela semana. Falei para registrar porque achei que ele poderia fazer algo contra si e culpar ela, mas nunca ia imaginar que ele iria matá-la. Agora fica esse sentimento de tristeza, de impotência. Ela podia estar aqui com a gente, feliz, rindo, e agora nunca mais vamos vê-la. Estamos arrasados.
Segundo Ieda, o cachorro da filha também morreu no local. A polícia não divulgou se o óbito foi causado pelo incêndio.
A última vez que mãe e filha se reuniram foi no fim de outubro, em uma festinha de aniversário de um familiar. A pequena confraternização teve bolo, pizza feita pela avó de Jéssica e refrigerante. Das muitas fotos que tirou com a família naquele dia, a estudante escolheu uma imagem para postar em redes sociais. Na legenda, ela resumiu o momento que vivia: “Estou voltando a sorrir.”
Investigação
O caso é investigado como feminicídio pela Delegacia Especializada da Mulher (1ª Deam) da Capital. GZH entrou em contato com equipes da delegacia e também da assessoria de imprensa da Polícia Civil, atrás de informações sobre o inquérito, mas não obteve retorno. Desde o dia 1º, delegados suspenderam entrevistas e repasse de informações à imprensa, como forma de protesto ao governo do Estado, em busca de reajuste salarial.