Familiares da enfermeira Priscila Ferreira Leonardi, 40 anos, encontrada morta em 6 de julho em Alegrete, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, foram beneficiários de cheques, cujos valores somaram R$ 167,7 mil, que saíram da conta de Ildo Leonardi, o falecido pai da vítima. Nove das 12 transações bancárias, que somaram R$ 150 mil do montante transferido, foram efetuadas no dia 20 de abril de 2020, exatos 14 dias antes da morte de Ildo por “falência de múltiplos órgãos”, aos 74 anos, conforme consta na certidão de óbito.
Nesta época, Priscila morava em Dublin, na Irlanda, para onde se mudou em 2019. Os favorecidos pelos cheques foram a prima de Priscila, na casa de quem ela estava hospedada em Alegrete à época do desaparecimento, no dia 19 de junho de 2023, e a esposa do primo, o último que a teria visto com vida.
A conta da qual os valores saíram, no Banrisul, tinha Ildo e Priscila como titulares. Pessoas que acompanharam os últimos passos da enfermeira no Estado afirmam que ela somente tomou conhecimento das transações bancárias dias antes de desaparecer, ao ser informada de detalhes da tramitação do processo do inventário da herança do pai. A advogada do primo de Priscila argumenta, no entanto, que ela sabia de todas as movimentações (leia mais sobre o posicionamento abaixo).
A reportagem de GZH teve acesso às microfilmagens dos cheques e aos comprovantes de compensação, que constam no processo eletrônico. Os familiares da enfermeira que receberam o dinheiro foram chamados a prestar explicações na Justiça por conta do inventário. Eles asseguram que foram doações conscientes feitas por Ildo no fim da vida, legalmente registradas.
A esposa do primo recebeu oito cheques nominais, entre 8 e 20 de abril de 2020, somando R$ 95,7 mil. As movimentações começaram com valores menores, como R$ 500 e R$ 3,6 mil, mas logo avançaram para R$ 18 mil. Em entrevista a GZH na terça-feira (11), a defesa havia informado que o primo somente tinha recebido a doação de Ildo de um veículo Gol e de uma fração de 15 hectares de terra. O dinheiro em benefício da esposa dele não foi mencionado.
Já a prima obteve quatro cheques de R$ 18 mil cada, totalizando R$ 72 mil. Todos eles foram assinados por Ildo e depositados na mesma data, em 20 de abril de 2020. Na entrevista de terça-feira (11), a defesa informou que a prima recebeu um valor em doação, mas disse não ter conhecimento do montante.
Uma das linhas de investigação da Polícia Civil é a de homicídio por conta de desentendimentos por posses e valores. Além da questão dos cheques, Priscila havia ingressado, em 2023, com processo judicial na 2ª Vara Cível da Comarca de Alegrete para cobrar uma dívida do primo relacionada à residência que era dela e do falecido pai. Em mensagem de WhatsApp enviada a uma amiga brasileira que mora em Dublin, a enfermeira relatou ter recebido provocações do primo e clima tenso entre eles. A polícia também não descarta a possibilidade de feminicídio.
Priscila residia na Europa e estava de férias do trabalho de enfermeira em um asilo na Irlanda. Ela veio ao Brasil para tratar de pendências relacionadas ao inventário do pai e, durante a passagem, aproveitaria para passear e localizar documentos para encaminhar a cidadania italiana.
Na tarde de 19 de junho, ela tinha uma reunião com o advogado dela em Alegrete, mas não compareceu, nem avisou da ausência. O que aconteceu depois é descrito na versão do primo. A enfermeira teria ido até a casa do familiar, que mora na antiga residência do falecido pai dela, em Alegrete, para recolher pertences de valor sentimental. Depois das 23h, ela teria tentado ligar para chamar um veículo de transporte. Como não conseguiu e estava com pouca bateria, o primo fez o chamado, via mensagem de WhatsApp.
Priscila teria embarcado em uma Duster preta, supostamente dando sinais de conhecer o motorista. Ela deveria ir para a moradia da prima, onde estava pousando em Alegrete, mas jamais chegou. Na manhã seguinte, ainda conforme a versão do primo, registrada em boletim de ocorrência, a Duster preta voltou até a frente da casa dele, no bairro Vila Nova, dizendo que Priscila tinha de acertar uma suposta dívida com um pai de santo.
A partir destes supostos acontecimentos e da constatação de que a enfermeira não tinha dormido na casa onde estava hospedada, o primo e a prima registraram ocorrência por desaparecimento na Polícia Civil na manhã de 20 de junho.
O corpo de Priscila foi avistado por um pescador à margem do Rio Ibirapuitã, preso em galhos, em local de difícil acesso, somente em 6 de julho. Ela tinha sinais de espancamento, sofreu traumatismo encefálico e a causa da morte foi estrangulamento. Uma fita branca semelhante a um esparadrapo grosso estava no pescoço dela, em várias voltas. O cadáver estava em estado avançado de decomposição. A perícia não detectou sinais de violência sexual.
As transações bancárias
Cheque 1
- Data do cheque - 7 de abril de 2020
- Data da movimentação - 8 de abril de 2020
- Valor - R$ 500
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 2
- Data do cheque - 7 de abril de 2020
- Data da movimentação - 8 de abril de 2020
- Valor - R$ 3,6 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 3
- Data do cheque - 1º de abril de 2020
- Data da movimentação - 13 de abril de 2020
- Valor - R$ 13,6 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 4
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Prima de Priscila
Cheque 5
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 6 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 6
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 7
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 8
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 9
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Prima de Priscila
Cheque 10
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Prima de Priscila
Cheque 11
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Esposa do primo de Priscila
Cheque 12
- Data do cheque - 20 de abril de 2020
- Data da movimentação - 20 de abril de 2020
- Valor - R$ 18 mil
- Beneficiária - Prima de Priscila
Total repassado à esposa do primo de Priscila: R$ 95,7 mil, em oito operações com cheque
Total para a prima de Priscila: R$ 72 mil, em quatro operações com cheque
Total retirado, em cheques, da conta de Ildo Leonardi: R$ 167,7 mil
4 de maio de 2020, 14 dias após o saque da maior parte do valor: morreu Ildo Leonardi, pai de Priscila — ela estava morando na Europa quando isto aconteceu.
Contraponto
A advogada Jo Ellen Silva da Luz diz que está reunindo toda a documentação comprobatória da legalidade das operações para entregar à Polícia Civil.
"O senhor Ildo fez as doações em vida para pessoas que cuidaram dele. Nada foi feito sem documentos e as movimentações serão juntadas ao inquérito. A conta era conjunta e Priscila sabia das movimentações. Nada foi doado à revelia dela. Logicamente, a Priscila não ficaria cinco anos (entre as movimentações e o desaparecimento seriam três anos) sem saber", afirma Jo Ellen.