Autor do registro de ocorrência sobre o desaparecimento da enfermeira Priscila Ferreira Leonardi no dia 20 de junho, em Alegrete, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, o primo dela recebeu a reportagem de GZH acompanhado da advogada criminalista Jo Ellen Silva da Luz, a quem coube responder as perguntas. A conversa ocorreu nessa terça-feira (11), no escritório da profissional.
No dia que antecedeu o comunicado do sumiço, Priscila, 40 anos, teria deixado a casa em que vive o primo, após recolher alguns pertences, quando já passava das 23h. Gaúcha radicada em Dublin, na Irlanda, ela teria embarcado em um veículo Duster preto para ir até a casa de outra prima, onde estava posando em Alegrete, mas jamais chegou ao local. A vítima foi encontrada somente no dia 6 de julho, com sinais de espancamento e estrangulada, com uma espécie de esparadrapo grosso e branco enrolado no pescoço, em várias voltas. O cadáver estava em estágio avançado de decomposição, boiando no Rio Ibirapuitã.
Em 45 minutos de entrevista, a advogada negou qualquer relação do primo com a tragédia, refutou a hipótese de eles terem relação conflituosa, o que foi manifestado por amigas da enfermeira que vivem na Europa, e apresentou a sua versão para o processo judicial movido por Priscila para cobrar uma dívida do familiar. A criminalista argumentou sobre outros bens do falecido pai de Priscila, Ildo Leonardi, que ficaram com os primos. Também comentou sobre a Duster preta que teria buscado Priscila na noite de 19 de junho, quando ela desapareceu, e voltado na manhã seguinte para fazer ameaças ao primo e cobrar uma suposta dívida da enfermeira. Confira, a seguir, os principais trechos.
Sobre o processo de cobrança movido por Priscila contra o primo
A enfermeira ingressou, em 2023, na 2ª Vara Cível da Comarca de Alegrete para cobrar uma dívida do primo por conta de uma posse. A decisão de buscar o Judiciário teria ocorrido depois de um acordo extrajudicial entre eles, no ano passado, em que o primo se comprometeu a fazer um pagamento até dezembro de 2022, o que não ocorreu.
A defesa diz que o bem em questão é uma casa no bairro Vila Nova, em Alegrete, que era propriedade do pai de Priscila e onde o primo mora atualmente com a família. Essa é a residência da qual Priscila saiu da última vez em que foi vista com vida, na noite de 19 de junho. É uma casa simples, de alvenaria, em um bairro popular.
— O processo judicial da Priscila é uma cobrança de parcela atrasada da casa. Ele (primo) comprou essa casa e pagou uma parcela de R$ 30 mil de entrada e, depois, algumas parcelas menores, de R$ 2 mil e R$ 2,5 mil. Uma parcela maior dependeria da venda de um campo (porção de terra) dele. Ele não conseguiu vender e atrasou a parcela. E aí foi ingressado com a ação de cobrança — diz a advogada.
Ela conta que o primo fez benfeitorias no imóvel e menciona uma conversa de WhatsApp em que ele teria mostrado, com surpresa, a citação judicial. Priscila teria respondido que não sabia da ação de cobrança e que resolveria tudo ao chegar ao Brasil. A defensora assegura que o tom da conversa foi normal, sem ofensas ou ameaças. Ela diz que o pai de Priscila, Ildo, colocou a casa integralmente em nome da enfermeira antes de falecer, em maio de 2020. Ela estaria, agora, vendendo a residência ao primo em um “contrato extrajudicial”.
Há, no entanto, uma lacuna neste ponto: enquanto a defesa afirma que 100% da casa já era de Priscila, uma fração deste mesmo imóvel fazia parte do inventário judicial da herança do pai à enfermeira. Ou seja, no processo de espólio, Ildo mantinha um percentual e havia deixado ele como herança para Priscila e uma outra irmã descoberta tardiamente, em 2019.
Outra versão conflitante é a de que Priscila não assinou nenhum contrato de compra e venda da casa, mas que o primo teria feito uma confissão de dívida extrajudicialmente em 2022. Como não pagou, o caso parou em cobrança judicial. Sobre as divergências de versões, a advogada afirmou:
— Essa questão, infelizmente, tu não podes perguntar para mim. Futuramente vai ser esclarecido.
Sobre posses do pai de Priscila doadas aos primos
A advogada confirmou que posses que eram de Ildo, pai de Priscila, acabaram com os primos que permaneceram em Alegrete por doação. A profissional disse que a prima, onde a enfermeira estava posando, recebeu uma quantia em dinheiro que ela não sabe informar o valor. Já o primo recebeu um veículo Gol e 15 hectares de terra. A defesa afirma que os 15 hectares dados ao primo não são os mesmos que constam no inventário da herança deixada por Ildo para Priscila e a irmã paterna. A advogada comentou que os dois primos foram chamados a prestar esclarecimentos sobre as posses no processo judicial de inventário.
— O pai da Priscila, ainda em vida, doou. Isso foi colocado no papel. Tem atestado da capacidade intelectual do Ildo, de que ele tinha pleno gozo das faculdades mentais. Foi feita transação bancária e tem documento de cartório. Nada foi verbal. Toda essa documentação estou preparando para entregar. (...) Ninguém se apoderou de bem nenhum — afirma Jo Ellen.
Sobre conflitos
A defensora nega que Priscila e o primo tivessem uma relação conturbada. A suposta animosidade entre eles foi relatada por amigas brasileiras que vivem em Dublin, na Irlanda, onde a enfermeira residia desde 2019. Em conversas de WhatsApp, Priscila teria relatado receber provocações do familiar e um ambiente tenso. A advogada diz que eles se viram duas vezes em Alegrete. Em ambas, Priscila esteve na moradia do primo para buscar antigos pertences de valor sentimental que haviam ficado lá, como livros e roupas.
— Se ela tivesse problemas, não viria da Irlanda ao Brasil para posar na casa da prima e visitar o primo, conhecer a filha pequena dele e levar presentinhos para a família. Por que ela viria ao Brasil ter contato com quem tem problema?— questiona a advogada.
Priscila estava de férias do trabalho de enfermeira em Dublin e tinha vindo ao Rio Grande do Sul para resolver pendências do inventário da herança do seu pai.
19 de junho
Neste dia, último em que foi vista com vida, Priscila foi até a casa em que o primo vive para buscar objetos pessoais. A defesa diz que a enfermeira, quando já passava das 23h daquela segunda-feira, tentou fazer três ligações para chamar um motorista, mas não conseguiu. O primo tentou uma chamada, já que o telefone da enfermeira estaria com pouca bateria, mas também falhou. O primo, então, atendendo a pedido de Priscila, teria contatado o número de telefone fornecido no WhatsApp e pedido a corrida no endereço. O motorista teria confirmado e, nas palavras da defesa, passava a sensação de já conhecer a enfermeira. O primo diz que o condutor, ao chegar, estava de máscara respiratória e de boné, de forma que não era possível ver seu rosto. O veículo seria uma Duster preta. Priscila teria agido como se conhecesse o homem, afirmaram, e ainda teria enviado uma mensagem de áudio para a prima dizendo que estava a caminho. Mas ela jamais chegou.
— Agora a gente não tem mais certeza de nada, de quem seria, o que era, se era conhecido dela e fazia algum trabalho como motorista — diz a advogada.
Na ocorrência policial, o primo registrou que Priscila embarcou na Duster preta imaginando ser um Uber. Na entrevista, ele disse que chamou o transporte direto pelo WhatsApp, sem o uso de aplicativo.
— O uso da expressão Uber é uma coisa coloquial aqui (em Alegrete), não quer dizer que seja o aplicativo do Uber — comenta a advogada.
Dia da ocorrência
No dia 20 de junho, antes das 8h, o primo narra que a Duster preta voltou ao seu endereço, desta vez com quatro ocupantes. O motorista da noite anterior não faria parte do grupo. Um dos homens teria descido do carro e intimado o primo a “abrir o jogo” e dizer o que Priscila tinha, aparentemente falando de posses. Os homens teriam mostrado uma arma longa e ameaçado o primo caso ele fosse à polícia naquela manhã. Teriam mencionado rotinas da família dele em tom de intimidação. Por fim, teriam dito que bastaria acertar uma dívida com um homem para que as coisas ficassem resolvidas. No registro de ocorrência, o primo disse que esse indivíduo seria um pai de santo que já tinha feito “vários trabalhos religiosos para Priscila”.
— Isso foi falado, parece que esse menino é de religião, mas entra uma questão que não me pronuncio para não ser tachado de intolerância religiosa. A gente não sabe o que seria essa dívida — diz a advogada.
Ela afirma que esse suposto religioso, que seria o mandante das ameaças naquela manhã, tinha sido o primeiro cuidador de Ildo, o pai de Priscila, já na fase idosa da vida.
— O pai da Priscila não gostou da forma como ele trabalhava. Ele passava mais tempo fora, não cuidava, às vezes trazia pessoas estranhas para dentro de casa. E a mãe da prima retirou ele do trabalho de cuidador do Ildo. (...) Ele perdeu uma grana de salário que, para ele, era boa. Não sabemos até que ponto a pessoa guardava raiva ou até que ponto poderia pressionar a Priscila — avalia Jo Ellen.
Após o alegado retorno da Duster preta, somadas às ameaças e da constatação de que a enfermeira não havia dormido na casa onde estava posando, os dois primos decidiram fazer o registro de ocorrência na Polícia Civil.
Posição do primo diante dos fatos
Na avaliação da advogada, “a situação é muito delicada”.
—É um crime complexo, violento, que envolve pessoas da família. Como a Priscila era uma pessoa que viajava por vários países, morava na Irlanda, a gente não tem aquele acompanhamento que teria se fosse aqui em Alegrete, de saber mais coisas da vida dela. Muita coisa a gente não tem como saber. Então respinga no primeiro que possa ter algum desentendimento com ela — avaliou a defensora.
Linhas de investigação
O laudo pericial não apontou lesões na região vaginal, mas o estado de decomposição do corpo não permitiu a coleta de material genético, o que garantiria exame mais apurado. Dentre todas as testemunhas ouvidas pela Polícia Civil até segunda-feira (10), nenhuma tinha apontado a existência de relacionamentos atuais de Priscila em Alegrete ou de ex-namorados que pudessem a estar perseguindo na cidade. O inquérito policial, contudo, mantém o feminicídio como uma das linhas de investigação.
— Estão verificando se ela tinha algum ficante, algum relacionamento aqui. A Priscila era uma moça do mundo. Ela vivia na Irlanda, veio ao Brasil, passeava, tinha vida normal. Como era uma pessoa que andava bastante, conhecia bastante gente, tudo está sendo verificado —pondera Jo Ellen.