O que fazer com os presos que apresentam distúrbios psíquicos? A questão surge após decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determina o fechamento gradual dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), específicos para acusados de crimes. A resolução 487 do CNJ estabelece que a extinção desses estabelecimentos comece a ser implantada neste mês e aconteça, em etapas, até maio de 2024.
Atualmente existem 32 unidades desse tipo no Brasil. São os chamados manicômios judiciários — um deles em Porto Alegre, o Instituto Psiquiátrico Forense (IPF). A decisão gera preocupação entre operadores do Direito e da Saúde, por não saber qual o destino desses pacientes.
Conforme o CNJ, são 1,9 mil sentenciados com medida de segurança (condenados, com diagnóstico de doença mental) no país. Só que o total de abrigados nos manicômios judiciários do país é de 3.346 presos, porque além dos sentenciados, alguns são detidos provisórios e outros esperam avaliação clínica para verificar se podem ou não conviver com a massa carcerária. O crime mais recorrente entre esses presos é o roubo, seguido de homicídio e tráfico de drogas.
Nessas unidades, os inimputáveis não recebem pena fixa. Em tese, eles são avaliados, anualmente, por equipe que decide se eles têm condições de ser ressocializados, até receberem alta. São observados o nível de periculosidade e a condição clínica do paciente. A maioria cometeu crimes num momento de dissociação da realidade, cuja duração precisa ser dimensionada.
A ideia do CNJ é de que essas pessoas sejam remanejadas, recebam tratamento ambulatorial ou transferência para hospitais gerais, em áreas específicas para cuidar de seus transtornos. A partir de agosto, esses 32 hospitais já não deverão mais receber presos. Dali em diante, a intenção é transferir os detentos para outros locais de tratamento.
A resolução regulamenta a Lei da Reforma Psiquiátrica (2001), que já previa o atendimento desses pacientes na rede pública de saúde, por meio da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), criada para atender a política antimanicomial, apoiada pela entidade judicial. Ela é integrada por unidades que vão dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) a hospitais gerais com leito psiquiátrico.
O CNJ estabelece que juntas médicas terão um ano para avaliar a situação de cada paciente internado. Caberá a cada equipe decidir quem ganhará a liberdade (para ser tratado pelo SUS) e quem permanecerá sob custódia do Estado, recebendo tratamento médico, mas longe do convívio social. O paciente poderá, em alguns casos, ficar com a família, ou então continuar recluso. Se o laudo médico recomendar a reintegração social, a família do paciente poderá acolhê-lo ou buscar a Defensoria Pública ou o Ministério Público para pedir que ele continue longe das ruas.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB) emitiram notas contrárias à decisão do CNJ. As três entidades ressaltam que inexistem no SUS vagas suficientes para tratamento psiquiátrico em geral (mesmo de pacientes livres), quanto menos ambulatórios para cuidar de doentes do sistema penitenciário.
Nesta segunda-feira (15), foram conseguidas assinaturas de deputados federais para um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que revoga a resolução. Agora, o texto precisa passar pelas comissões ou tramitar em regime de urgência se for aprovado requerimento com esse fim.
Os manicômios judiciários foram criados para internar e tratar pessoas com transtorno mental, presas (em grande parte, condenadas) por cometer crimes. Elas foram consideradas, em exames, inaptas ao convívio coletivo no sistema penitenciário.
"Se alguém está em medida de segurança é porque cometeu um crime e a perícia determinou que essa pessoa tem periculosidade alta. Sem condições de viver em sociedade. Agora vão soltar essas pessoas, sem ouvir os psiquiatras forenses?", questiona o presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva, na nota.
As três entidades temem que ocorra "abandono do tratamento médico desses presos, aumento da violência, aumento de criminosos com doenças mentais em prisões comuns, recidiva criminal, dentre outros prejuízos sociais".
A resolução do CNJ também preocupa integrantes do Ministério Público do Rio Grande do Sul. O coordenador do Centro de Apoio Operacional do MP estadual, promotor Rodrigo Brandalise, acredita que a resolução foi tomada antes de haver um debate maior com a sociedade, sobretudo psiquiatras. Ele salienta que todos os ocupantes dos manicômios judiciários estão lá porque cometeram crimes, "na maioria com gravidade que justifica serem apartados temporariamente do convívio social". O promotor considera que é preciso verificar como será a absorção desses pacientes pela rede pública.
CNJ ressalta que não haverá soltura automática de pessoas perigosas
O CNJ rebate o que considera "alarmismo". Enfatiza que não haverá abertura de portas e soltura automática de pessoas perigosas. Isso porque o fim dos manicômios judiciários será gradual e complementado por medidas alternativas. Todos continuarão com atendimento de saúde, sem liberdade automática.
Cada paciente será avaliado e os que precisarem permanecer internados, ficarão numa entidade de saúde e não carcerária, ressalta a instituição, quando questionada pela reportagem (veja abaixo o que prevê a resolução). O conselho lembra também que a iniciativa não é nova e já estava prevista na Reforma Psiquiátrica de 2001.
O primeiro passo é a revisão dos processos que determinaram a internação dos presos. Veja outros pontos da resolução:
- Avaliar a possibilidade de progressão do preso para tratamento ambulatorial em meio aberto ou transferência para estabelecimento de saúde adequado, nos casos relativos. Isso vale para medidas de segurança em Hospitais de Custódia de Tratamento Psiquiátrico, com sentença condenatória ou não, além das presas em delegacias de polícia. O CNJ também determina que seja assegurada à pessoa com indícios de transtorno mental oportunidade de manifestar a vontade de ter em sua companhia pessoa por ela indicada, integrante de seu círculo pessoal ou das redes de serviços públicos com as quais tenha vínculo, ou seja, referenciada, para o fim de assisti-la durante o ato judicial.
- Nos casos em que a autoridade judicial entender que a pessoa apresentada à audiência de custódia está em situação de crise em saúde mental e sem condições de participar do ato, solicitará tentativas de manejo de crise pela equipe qualificada.
- No caso de pessoa presa, reavaliará a necessidade e adequação da prisão processual em vigor ante a necessidade de atenção à saúde. A continuidade de tratamento será via serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), ouvidos a equipe multidisciplinar, o Ministério Público e a defesa.
- Na sentença criminal que imponha medida de segurança, a autoridade judicial determinará a modalidade mais indicada ao tratamento de saúde da pessoa acusada, considerados a avaliação biopsicossocial, outros exames eventualmente realizados na fase instrutória e os cuidados a serem prestados em meio aberto.
- A imposição de medida de segurança de internação ou de internação provisória ocorrerá em hipóteses absolutamente excepcionais, quando não cabíveis ou suficientes outras medidas cautelares diversas da prisão e quando compreendidas como recurso terapêutico momentaneamente adequado.
- A internação será cumprida em leito de saúde mental em hospital geral ou outro equipamento de saúde referenciado pelo Caps da Raps, cabendo ao Poder Judiciário atuar para que nenhuma pessoa com transtorno mental seja colocada ou mantida em unidade prisional (ainda que em enfermaria) ou seja submetida à internação em instituições com características asilares, como os hospitais psiquiátricos ou equipamentos congêneres.
No Judiciário gaúcho há simpatia com a reforma antimanicomial, mas ela embute ressalvas. O presidente do Fórum Interinstitucional Carcerário, desembargador Sergio Miguel Achutti Blattes, ressalta que entende a resolução do CNJ, mas diz que as providências posteriores não podem ficar só no discurso.
— É falácia dizer que os internos nos manicômios são todos intratáveis e perigosos. Mas há um descompasso entre o que preconiza a legislação e a realidade. É preciso reforçar as unidades terapêuticas do SUS — recomenda o desembargador.
No RS, há um manicômio judiciário e 206 pacientes
O Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) é o único manicômio judiciário do RS. A instituição acolhe hoje 206 pacientes, incluindo nesse total 11 mulheres. Todos cometeram delitos e têm transtornos mentais. São atendidos por apenas dois psiquiatras. No local, já foram 600 pacientes e 22 médicos.
O maior problema no IPF é carência de servidores. Isso motivou audiência recente na Assembleia Legislativa, por parte da Comissão de Segurança e Serviços Públicos. Foi relatada também falta de medicamentos para os pacientes.
O IPF não serve apenas para contenção de presos com doenças mentais. Ele também faz perícia médica de pessoas que podem ter problemas psiquiátricos (ou cujos advogados alegam que têm). Em alguns casos, o diagnóstico recomenda que fiquem no instituto. Em outros, os profissionais concluem que o paciente não tem distúrbios dessa natureza e remetem o detento para uma prisão convencional.
A reportagem falou com psiquiatras que atuaram no IPF. Em condição de anonimato, por temer represálias, um deles sintetizou a opinião dos que lidam cotidianamente com presos que apresentam distúrbios mentais:
— Acabar com a doença mental por decreto, fechando hospitais psiquiátricos, é o mesmo que querer acabar com os homicídios fechando prisões. Pode ser poético e bonito, mas, na prática, as pessoas ainda vão ficar doentes e continuar matando umas às outras por décadas, nunca termina em um ano — resume o médico.
Governo do Estado prevê residenciais terapêuticos e volta às famílias
As secretarias de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS) e de Saúde (SES) consideram complexa a desativação dos manicômios judiciários, mas concordam que é preciso ressocializar os presos com problemas mentais. A ideia é acompanhá-los por meio de uma rede intersetorial de cuidados e resgatar seus vínculos familiares.
Naqueles casos em que o retorno para a família não for possível, as duas secretarias preconizam a adoção de Serviço Residencial Terapêutico (SRT), criado em alguns municípios com objetivo de resgate da autonomia e a reabilitação psicossocial. Algo similar ao dispensado a antigos ocupantes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que já teve 5 mil internos e hoje não tem mais moradores, só trata da pacientes em quadro agudo de dissociação da realidade.
"A avaliação das condições de saúde mental dos usuários deve ser realizada por uma equipe multidisciplinar e intersetorial, que poderá indicar o melhor dispositivo de acompanhamento do usuário. Como o trabalho para o fechamento dos hospitais de custódia envolve também o Poder Judiciário, a SSPS permanece em constante diálogo a fim de garantir que esse processo ocorra de forma transparente, respeitando todos os trâmites previstos na resolução", informa a SSPS, em nota.
O que levou à resolução para extinção dos manicômios judiciários
O CNJ justifica a gradual extinção dos manicômios judiciários pela necessidade de proteger os direitos fundamentais das pessoas em sofrimento mental ou com deficiência psicossocial. É o que diz o relator do ato normativo que deu origem à determinação, conselheiro Mauro Martins.
O estopim foi a morte de Damião Ximenes Lopes, aos 30 anos, em 1999 em decorrência de maus-tratos sofridos na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral, no Ceará. Pessoa com deficiência mental, ele foi internado à força numa clínica psiquiátrica, após uma crise, e morreu três dias depois.
O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por negligência, neste episódio. Foi determinado que o Estado brasileiro se adeque a procedimentos antimanicomiais.