Mariana é a única filha de Márcio André Machado Marques, 45 anos, e Viviane Canofe Silva, 43. Aos quatro anos, mudou-se com eles para a Rua Cinco, em Guaíba, na Grande Porto Alegre. Foi ali que a menina fez as primeiras amizades com as outras crianças do bairro. Era também dali que saía todos os dias para ir à escola. Foi onde cresceu, passou pela adolescência e comemorou o primeiro emprego. Foi onde inúmeras vezes surpreendeu os pais durante aniversários ou outras comemorações. Carinhosa, não esquecia uma data importante e gostava de organizar tudo.
Desde que perderam a filha de 21 anos, no fim de novembro – quando ela foi encontrada morta dentro de casa, em um caso de suspeita de feminicídio –, os pais se apegam às lembranças. Cuidam do cãozinho que a jovem tratava como filho. Ao mesmo tempo, buscam que a tragédia que lhes atingiu não se repita com outras famílias. É com esse intuito, de alertar para os casos de violência contra as mulheres, que a rua onde a jovem vivia ganhará novo nome. Um projeto de lei votado na noite desta terça-feira (14) na Câmara de Vereadores de Guaíba foi aprovado por unanimidade, e, com isso, a Rua Cinco passará a se chamar Rua Mariana Canofe Marques.
Às 20h08min, o vereador Dr. João Collares (PDT), proponente do projeto de lei, tomou a tribuna para justificar a proposta:
— Nós fizemos essa homenagem para a Mariana para que ela seja um símbolo e um marco inicial para a luta contra o que aconteceu com ela. A partir do momento em que as pessoas olharem para o nome dela, vão lembrar que ela foi brutalmente assassinada e que é preciso lutar contra a violência contra as mulheres.
Na sequência, ocorreu a votação que aprovou o projeto por 13 votos favoráveis e nenhum contra. Os demais parlamentares também fizeram uso da palavra para homenagear e prestar solidariedade aos familiares e amigos de Mariana presentes na sessão.
Nos últimos meses, como se repetissem a tentativa de mantê-la por perto, os pais optaram por viver na moradia que tinham improvisado para Mariana, numa antiga garagem, reformada no ano passado para que ela voltasse a morar pertinho deles e conseguisse forças para interromper a relação que mantinha com Jonatan da Rosa Ildebrand, 26 anos. A jovem se mudou inicialmente sozinha, mas depois retomou o relacionamento, e os dois passaram a morar no local.
Foi nesta mesma casa que Mariana foi encontrada sem vida em 26 de novembro. O policial militar narrou aos familiares que havia se deparado com a companheira morta, após uma briga. Alguns pontos levaram a polícia a suspeitar da versão. Mais tarde, ele acabou preso, por suspeita de ter assassinado Mariana por asfixia e tentado forjar seu suicídio.
— Ela morreu no cantinho dela. Estava tão feliz, arrumando tudo. Estava gostando de ter esse lugar dela. Não abandonamos ela, ficamos aqui — conforta-se a mãe.
Dentro de casa, o quarto colorido de Mariana está intacto, com fotos nas paredes e os enfeites de que ela gostava. A avó materna, Tereza de Oliveira Canofe, 64 anos, conta que a jovem era sua única neta mulher. Agora, envolve a filha Viviane nos braços, repetindo o gesto que Mariana costumava fazer.
— As duas viviam abraçadas — diz a avó.
Família engajada
A iniciativa proposta por Collares, que é médico da família e atendia Mariana desde a infância, trouxe algum alento. Vice-presidente da Câmara de Vereadores de Guaíba, Collares inicialmente fez a proposta aos pais de Mariana para saber se aceitavam. Com a aprovação deles, resolveu levar a iniciativa adiante. No último domingo (12), Viviane sonhou com a filha.
— No sonho, ela pedia ao pai para que lutasse pela causa do feminicídio. Isso dois dias atrás. Agora tem essa homenagem. Fiquei bastante emocionada com isso — diz a mãe, que carrega junto ao peito um pingente de uma menininha.
O pai também acredita que este gesto pode ajudar a transformar a perda, que lhes dilacera todos os dias, em alerta à violência contra as mulheres. Desde novembro, os pais recorrem aos antidepressivos para seguir em frente.
— Este tipo de crime está aumentando, não só no Estado, como no Brasil — diz o pai.
Se conseguirmos evitar um caso, que um pai não passe pelo que estamos passando, já ficaria muito satisfeito. Sentir o que sentimos é inexplicável.
MÁRCIO ANDRÉ MACHADO MARQUES
Pai de Mariana
O Rio Grande do Sul fechou 2022 com elevação de 10,4% nos casos de feminicídios. Ao menos 106 vítimas foram assassinadas por questões de gênero, 10 a mais do que no ano anterior. Já em 2023, os dois primeiros meses do ano tiveram redução nesse indicador, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado.
Márcio acredita que a troca do nome poderá despertar a atenção de quem passar pela rua e levar as pessoas a refletirem sobre esse tipo de crime.
— Se conseguirmos evitar um caso, que um pai não passe pelo que estamos passando, já ficaria muito satisfeito. Sentir o que sentimos é inexplicável — afirma.
Na vizinhança, onde Mariana cresceu, segundo o pai, a morte dela causou perplexidade.
— Todo mundo conhecia, todo mundo ficou chocado mesmo. Uma jovem ter a vida interrompida. Todos os dias é difícil. Mas tem dias que é pior. O vilão de tudo é a saudade. Abre um celular, vê uma coisa, lembrança. Ou encontra alguém, um conhecido, abraça e toca no assunto. Hoje está sendo um dia difícil — descreve.
Márcio se refere ao cachorrinho que Mariana deixou como “neto”. A jovem sonhava em se tornar mãe de três filhos, mas não teve tempo para concretizar os planos. Antes desse, Mariana chegou a ter outros dois cães, que foram mortos por asfixia. A polícia suspeita de que tenha sido o companheiro dela que executou os animais, por ciúme, devido às semelhanças com a morte dela.
— Ele é o anjo da minha vida. Vai fazer dois aninhos. Mês que vem, ela estaria de aniversário. Aí, vem Dia das Mães, Dia dos Pais. E pela primeira vez ela não vai estar. Estou prevendo que serão dias bem difíceis — confidencia.
Em casa, era Mariana quem organizava as comemorações, como os aniversários. Foi assim em 17 de novembro, quando surpreendeu o pai com uma festa, que hoje ele vê como espécie de despedida.
— Ela nunca deixava um momento em branco. Meia-noite já felicitava. Vai ser bem difícil, essas lembranças — diz o pai.
Ato simbólico
Além da votação do projeto de lei, um ato simbólico foi realizado na noite desta terça-feira. Uma placa, com o nome de Mariana, foi entregue aos familiares da jovem.
Após a aprovação do projeto, que será transformado em lei, será definido em qual dia será realizada a instalação da placa.
Políticas públicas
Advogada e coordenadora da Área de Violência da ONG Themis, Renata Jardim vê a iniciativa como positiva, no sentido de dar visibilidade à temática. Por outro lado, alerta para o recrudescimento da violência contra as mulheres, que tem no seu ápice o crime de feminicídio.
— O conceito do feminicídio é bastante recente no Brasil, a legislação é de 2015. Temos ainda enormes desafios, tanto em relação aos dados, como pensar políticas mais amplas. Me parece que trazer o tema em algumas ações singelas, como essa, é sim necessário, mas claro que não resolve o problema. Vivemos uma epidemia de feminicídios. São mulheres que morrem de mortes evitáveis. Havendo políticas públicas, respaldo do Estado, essas mortes não ocorreriam. É fundamental a intervenção do Estado, com políticas de prevenção — alerta.
Me parece que trazer o tema em algumas ações singelas, como essa, é sim necessário, mas claro que não resolve o problema. Vivemos uma epidemia de feminicídios. Havendo políticas públicas, respaldo do Estado, essas mortes não ocorreriam.
RENATA JARDIM
Advogada e coordenadora da Área de Violência da ONG Themis
Renata defende que, além da responsabilização do agressor e de debater o tema, há necessidade de implantar políticas públicas articuladas tanto para prevenir essas mortes, como para dar suporte às famílias, como os filhos órfãos. Cita, por exemplo, a aprovação recente da Câmara de Deputados para o pagamento de pensão especial de um salário mínimo mensal para os filhos órfãos de feminicídio. O texto ainda passará pelo Senado.
— Há necessidade de intervenção mais forte. Boa parte das mulheres nem chegam a acessar o serviço e, pior ainda, há aquelas que chegam, mas não encontram a proteção adequada. No RS, a SSP mantém a divulgação dos dados, mas ainda nos questionamos se todas as mortes de mulheres estão sendo enquadradas corretamente. Nas situações que envolvem ex, namorado, violência doméstica, isso fica muito evidente. Mas quando há outras situações de ódios ainda se tem dificuldade no enquadramento do crime de feminicídio — afirma.
O caso
Mariana foi encontrada morta ao amanhecer do dia 26 de novembro de 2022. Inicialmente, Ildebrand contou que havia arrombado uma janela para entrar em casa, e que deparou com ela já sem vida. A polícia passou a suspeitar de que o crime pudesse ter acontecido de outra forma.
A investigação elencou indicativos de que a morte de Mariana não teria acontecido como narrou o companheiro. Um deles foi a janela que ele dizia ter arrombado, onde não foram encontrados sinais disso. A polícia também suspeitou sobre o local onde estava o corpo e uma mancha de sangue no sofá. O suspeito foi preso em flagrante e teve a prisão convertida em preventiva.
Em dezembro, Ildebrand sofreu um aneurisma enquanto estava detido, chegou a permanecer hospitalizado e não resistiu. GZH entrou em contato com o advogado Carlo Velho Masi, que representa a família de Ildebrand. Em nota, o advogado disse que os familiares lamentam "ambas as mortes", mas que "não se pode afirmar" que Ildebrand tenha sido o responsável pela morte de Mariana. (Confira abaixo)
"Os familiares de Jonatan da Rosa Ildebrand lamentam profundamente ambas as mortes e estão empenhados em preservar as filhas do soldado com sua ex-esposa. Ressalta-se que, com o falecimento, foi extinta sua punibilidade e não se pode afirmar que tenha sido responsável pela morte de Mariana Canofe Marques. Sequer processo houve, ou seja, o investigado nem mesmo conseguiu se defender das suspeitas que sobre ele recaíam."
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone - 190
- Horário - 24 horas
- Serviço - atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
- Endereço - Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone - (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário - 24 horas
- Serviço - registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode solicitar a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública, entre outros serviços)