Mãe de quatro filhos, Keli Greice do Amarante de Souza, 26 anos, procurou a polícia em Passo Fundo, no norte do RS, após ser agredida pelo companheiro em janeiro deste ano. O caso foi registrado como lesão corporal e ela obteve medida protetiva contra o suspeito. Dias depois, a própria vítima procurou a polícia e alegou ter agido por impulso. Pediu então que a ordem judicial fosse cessada. Em 5 de fevereiro, ela foi baleada no pescoço, chegou a ser hospitalizada e não resistiu.
O registro realizado por Keli integra as 1.989 ocorrências de janeiro deste ano de mulheres vítimas de lesão corporal no Estado. Ou seja, no primeiro mês de 2023, em média uma mulher foi agredida a cada 22 minutos. São computados nesse número somente os casos de agressões físicas dentro do contexto de violência doméstica que deixam marcas na vítima. Quando há a violência, mas sem marcas, a tipificação criminal é diferente.
O desfecho trágico para a vida de Keli é o que se busca evitar ao incentivar mulheres a buscarem ajuda antes que a violência evolua e chegue ao seu ápice, que é o feminicídio. O suspeito do crime foi preso e se negou a falar sobre o caso.
A lesão corporal, justamente por deixar marcas visíveis, é o crime que muitas vezes leva as mulheres a fazerem o primeiro registro policial, seja por iniciativa própria ou incentivava por familiares, profissionais da saúde, amigas ou vizinhas. É nesse momento que costuma se revelar uma série de violências anteriores.
— O que acontece antes da lesão corporal dificilmente é registrado. Na maioria dos casos, a violência não começa na lesão, muito menos no feminicídio. Vai começar num tipo de violência que não a física, e sim verbal, moral. Às vezes uma violência silenciosa, um controle da vida da mulher, dos instrumentos de trabalho, do salário, o isolamento. Começa com violência psicológica, o menosprezo, um trabalho mental de que a mulher tem menor valor, que não vai seguir em frente sozinha — explica a diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam), delegada Cristiane Ramos.
Para chegar até a lesão corporal, em muitos casos a mulher vivencia antes repetidas vezes o ciclo da violência doméstica. Inicia-se com a tensão, evolui para a explosão, que pode ser marcada por xingamentos e ameaças, mas ainda sem agressões, e depois vem a fase da lua de mel, que é quando o homem se mostra arrependido, pede desculpas e melhora o comportamento por um tempo. O ciclo, no entanto, vai se repetindo, com aumento da tensão e se chega na violência física.
— A fase da tensão vai aumentando e o tipo de violência vai ampliando. Do puxão de cabelo para esganadura, queimadura, atirar objetos contra a pessoa. Uma violência que é muito comum, que é material, é quebrar o celular. O celular hoje é um instrumento de proteção da mulher, se precisa chamar a polícia ou avisar um familiar. A quebra do celular tem sido muito comum. É uma forma de controle. O parceiro quer o celular para ver com quem está se comunicando, os contatos que tem ali, vigiar as redes sociais — afirma a juíza do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Porto Alegre, Madgéli Machado.
É quando chega na agressão que outras pessoas começam a perceber ou a mulher passa a se ver como vítima.
— É um divisor de águas no momento em que se dá conta do relacionamento abusivo. É quando muitas vezes elas nos procuram. Muitos homens acreditam que não são violentos porque não batem, não agridem fisicamente. Enquanto ameaçam, humilham, praticam violência psicológica, com danos muitas vezes permanentes, como estresse e depressão, não se enxergam como agressores. Mas essa lesão vai acontecer em algum momento, se não interromper o ciclo, até se chegar num possível feminicídio — alerta a delegada Cristiane.
Para que a violência seja configurada como lesão corporal, é necessário laudo pericial ou atestado médico que descreva os ferimentos que foram resultado da violência, como um arranhão, corte, hematoma. Mas isso não significa que a mulher não possa obter medida protetiva, mesmo se a violência não deixou marca, ou até antes de evoluir para a agressão física.
— Há muitos casos de empurrões, que a mulher cai, durante uma discussão. E ela ainda pensa que como não ficou com marca aparente não foi nada, ou que ele não quis machucar. É bem importante salientar que não se pode minimizar esses comportamentos. A mulher tem de ficar atenta e dizer: "Para". Ou termina o relacionamento, ou, se não consegue terminar, fazer com que ele se afaste, pede medida protetiva. É bem comum ainda nessas fases o homem não aceitar o término e a violência vai aumentando — afirma a juíza Madgéli.
Subnotificação
Os dados de janeiro de 2023 apontam aumento de 5,85% em relação ao mesmo período do ano passado. No entanto, com exceção do feminicídio, a maior parte dos crimes no contexto de violência doméstica é subnotificada. Ou seja, muitas vezes a vítima não chega a registrar o fato na polícia.
— É preciso que a gente analise, quando olha para esses números que nos trazem essa ideia de aumento das lesões corporais, para conseguir identificar se há de fato um aumento no número de agressões ou se o que acontece na verdade é um aumento da denúncia. Se as mulheres estão conseguindo acessar melhor os canais de denúncia, tendo em vista que a gente está saindo de um período crítica da pandemia, em que muitos serviços acabaram funcionando de forma remota e por vezes o acesso era dificultado — pondera Rafaela Caporal, advogada e assessora de projetos na ONG Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos.
A advogada ressalta, no entanto, que, além de incentivar a mulher a romper com o ciclo da violência e buscar ajuda, é preciso estender as ações para além do registro policial e da esfera criminal. Como forma de buscar prevenir que novos casos se repitam, defende que se invista em conscientização e educação:
— Entendemos a importância da denúncia, sabemos da eficácia das medidas protetivas de urgência, mas para além da denúncia, a gente precisa ser polvo para tratar a questão do enfrentamento à violência doméstica e familiar. Perpassa por diversas coisas, entre elas investir em prevenção e educação, em espaços que acolham essas mulheres, que lhes deixem seguras e acolham, como é o caso do centro de referência da mulher.
Iniciativas
Uma das apostas do Estado no combate à violência contra a mulher neste ano é a disponibilização de 2 mil tornozeleiras para serem usadas em agressores, como forma de monitorar a movimentação e buscar impedir que eles se aproximem das vítimas. O projeto deve começar a ser executado a partir de março em Porto Alegre e Canoas.
Somente em janeiro deste ano, 15.793 medidas protetivas foram concedidas para mulheres no RS. Casos de descumprimento podem levar o agressor à prisão. Desde o início deste ano, 2.391 suspeitos de violência doméstica foram detidos no RS.
Por parte do Judiciário, uma iniciativa que pretende fortalecer o enfrentamento a este crime é a implantação de juizados especializados. Em março, os municípios de Gravataí, Alvorada, Viamão e Santa Cruz do Sul passarão a contar com o serviço. Com isso, espera-se um fortalecimento no combate à violência.
— Naqueles municípios que ainda não tem rede estruturada, é preciso pensar em abrir portinhas dentro dos serviços que já existem para acolher a mulher. O serviço de saúde, por exemplo, é a principal porta para mulheres que sofrem violências. É importante que toda a rede faça sua parte. Há municípios que ainda não tem casa de acolhimento, mas pode fazer um consórcio regional e possibilitar isso. Na escola, esse tema precisa ser trabalhado. As empresas também podem ser integrantes dessa rede, fortalecendo essas mulheres, que vão ter dentro do espaço de trabalho um canal de apoio, orientações — opina a juíza Madgéli.
Em março, deve ser lançado no RS o selo EmFrente, Mulher, uma certificação de responsabilidade social às empresas privadas que adotem posturas em favor da valorização da mulher e do enfrentamento a este tipo de violência. Iniciativa do Comitê EmFrente, Mulher, coordenado pelo programa RS Seguro, a proposta é resultado de série de discussões sobre o papel do setor empresarial em estratégias de prevenção e combate.
A magistrada reconhece que ainda há pontos frágeis na rede, como a acessibilidade para as mulheres vítimas de violência. Há muitos casos em que as vítimas têm dificuldade até mesmo no deslocamento até a delegacia ou outros órgãos porque não tem como custear a passagem ou com quem deixar os filhos.
— Muitas precisam pedir dinheiro emprestado ou até carona para ir na delegacia. Essa é uma realidade de muitas mulheres que temos de enxergar. Algumas nem sequer têm celular para acessar a internet ou não sabem como acessar. Não é incomum termos de esquentar mamadeira de leite para as crianças porque as mães chegam com elas famintas. Temos de pensar nessas mulheres que não conseguem ter acesso, nas excluídas — afirma a juíza.
Dicas
- Se estiver sofrendo violência psicológica, moral ou mesmo física, busque ajuda imediatamente. Não espere a violência evoluir. Converse com familiares, procure unidades de saúde, centros de referência da mulher ou a polícia. É possível acessar a Delegacia Online da Mulher
- Caso saiba que alguma mulher está sofrendo violência doméstica, avise a polícia. No caso da lesão corporal, independe da vontade da vítima registrar contra o agressor, dado a gravidade desse tipo de crime
- Se estiver em risco, procure um local seguro. Em Porto Alegre, por exemplo, há três casas aptas a receberem mulheres vítimas de violência doméstica
- Siga todas as orientações repassadas pela polícia ou pelo órgão onde buscar ajuda (Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário)
- No caso da lesão corporal, o exame pericial para comprovar as agressões é essencial para dar seguimento ao processo criminal contra o agressor. Procure realizar o procedimento o mais rápido possível
- Caso passe por atendimento em alguma unidade de saúde, é possível solicitar um atestado médico que descreva as lesões provocadas
- Reúna todas as provas que tiver contra o agressor, como prints de conversas no telefone. No caso das mensagens, é importante que apareça a data do recebimento
- Se tiver medida protetiva, mantenha consigo os contatos principais para pedir ajuda. A Brigada Militar mantém em pelo menos 114 municípios unidades da Patrulha Maria da Penha que fiscalizam o cumprimento da medida
- Se tiver medida protetiva e o agressor descumprir, comunique a polícia. É possível acionar a Brigada Militar, pelo 190, ou mesmo registrar o descumprimento por meio da Delegacia Online. Descumprimento de medida pode levar o agressor à prisão
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone - 190
- Horário - 24 horas
- Serviço - atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
- Endereço - Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone - (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário - 24 horas
- Serviço - registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode solicitar a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública, entre outros serviços)