Giane faz de seu trabalho um tributo às suas origens e à sua raça. Doris, 80 anos, lança voo solo para valorizar a moda gaúcha. Madgéli conscientiza homens que agrediram suas mulheres. São elas as vencedoras da 3ª edição do Prêmio Donna Mulheres que Inspiram, escolhidas pela equipe Donna entre 10 indicadas por jornalistas e profissionais de diferentes áreas. Conheça suas histórias e seu exemplo.
Anoitece, e o Foro Central já é um ambiente de corredores esvaziados. Salvo em um deles, onde seis homens cercam uma mesinha de biscoitos enquanto aguardam a abertura de uma das salas. Conforme mais deles chegam, finalizando um grupo de 10, acentuam-se as diferenças. Há desde garotos de 20 e poucos anos até homens de meia-idade. Nas roupas, há de camisas de botões a chinelos de dedo. O estado de espírito também difere: alguns conversam com desenvoltura, outros sorriem, tímidos. O que seria impossível adivinhar, olhando de fora, é que todos foram parar ali em razão de episódios de violência doméstica.
O que aconteceria naquela noite era mais um encontro do Grupo Reflexivo de Gênero, iniciativa pioneira em Porto Alegre que nasceu da necessidade de trazer os próprios agressores para um espaço de reflexão. Os números falam por si. Dos mais de 500 homens encaminhados ao grupo via medidas protetivas desde 2011, apenas 3% dos que completaram o ciclo de 12 encontros reincidiram. O índice levou a iniciativa a ser estudada e replicada em outros municípios.
– A violência doméstica é cíclica. Se quer cessar um ciclo, é preciso cuidar de todos os envolvidos. Os grupos surgiram quando percebemos que, desde quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, em 2006, a rede de atendimento nada tinha feito para acolher os homens. Muitas vezes os relacionamentos não se extinguem com um episódio de violência. Podemos e devemos agir para que eles não se repitam – avalia a juíza Madgéli Frantz Machado, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Há um significado mais profundo nesse “podemos e devemos agir” na fala de Madgéli. Natural de Dom Pedrito, a magistrada de 46 anos – que embora jovem, acumula 21 anos de magistratura em quatro comarcas – segue uma corrente de pensamento de que o Poder Judiciário não deve se limitar a um papel de frio intérprete da lei e de suas violações, e sim de ator importante para o bem-estar da sociedade. Por isso, todo o juizado – dos vidros fumê que protegem mulheres dispostas a fazer denúncias aos bichos de pelúcia nas estantes – exala acolhimento.
Uma das percepções de Madgéli, ao julgar inúmeros casos de violência no lar, era de que os homens invariavelmente se sentiam injustiçados. Não entendiam o que estava errado nos seus comportamentos. Limitar-se a condenar e punir só aumentava a revolta deles contra o sistema e piorava a situação no seio das famílias.
– Muitos diálogos se repetem nas audiências. Eu pergunto: “O senhor agrediu ela?”. E eles respondem algo como: “Eu não bati. Eu só xinguei ela de vagabunda, empurrei e quebrei o celular dela”. Pouco adianta simplesmente condenar se ele não sabe onde errou. A ideia é provocar uma reflexão responsabilizante – define a magistrada, sempre com uma voz pausada e macia, imutável em palavrões e outras barbaridades comuns no seu dia a dia.
Nos grupos, dificilmente os homens falam abertamente sobre os casos que os levaram até ali. A reflexão se dá por um caminho bem mais sinuoso. A sessão testemunhada pelo repórter começou com a psicóloga Ivete Vargas, braço direito de Madgéli no projeto, desenhando à mão livre uma cena no quadro branco: um bebê negro vigiado por caçadores e assediado por um jacaré. Depois de algumas risadas da plateia sobre o jacaré parecer um dinossauro, Ivete comenta que, nos Estados Unidos, aquilo de fato acontecia. Caçadores usavam filhos de escravos como iscas para atrair crocodilos e, destes, tirar o couro. O grupo é convidado a refletir e opinar sobre a cena. O silêncio impera por alguns minutos até um jovem negro de aparentes 25 anos pedir a palavra.
– Na semana passada, eu fui vítima de racismo.
O episódio aconteceu no condomínio de um familiar, quando uma moradora questionou a presença dele no espaço. O rapaz narra o fato em detalhes e faz uma observação: a filha ter presenciado a cena foi seu maior motivo de raiva, mas também a razão de ele ter controlado os nervos naquele momento. O papo engrena, e, sutilmente, Ivete questiona por que aquele mesmo respeito à presença de uma criança não impede um comportamento violento dentro de casa.
Então, todo aquele papo de jacaré e caçador começa a fazer sentido. Mas não sem resistência. Incisivo e bem articulado, um homem na casa dos 40 anos dá voltas na metáfora:
– E se essa mulher aí do condomínio é o caçador? Não respeitou tua filha e te agrediu. Que culpa tu teria de ser o jacaré?
Não é daquela mulher que ele está falando, obviamente. Olhando os demais nos olhos, ele vai ganhando simpatizantes à tese de que muitas vezes o homem é levado pela mulher a ter um comportamento violento. A psicóloga não intervém. Até que outro homem, de idade e eloquência semelhante, rebate. Homens não são feras como jacarés, portanto não podem justificar seus atos como tais. E mulheres não estão armadas e dispostas a abatê-los. Ao final, pede que o colega se acalme, pois o comportamento virulento dele e o monopólio da palavra já está incomodando.
Quando a sessão se encerra, os ombros de todos ainda estão retesados. Enquanto os outros se despedem, um rapaz tímido e grandalhão, de uns 30 anos, pede para conversar em particular com a psicóloga. Conta que a situação na sua casa ainda é difícil, e talvez pior depois que a mulher também passou a frequentar um grupo de apoio do Juizado. Há poucos dias, ela ameaçou chamar a polícia durante uma discussão entre ele e a filha. No seu entendimento, ele está fazendo esforço, enquanto ela apenas “canta, dança e faz amigas no grupo dela”. A psicóloga sorri de canto:
– Acontece que a tua mulher se empoderou.
Ela explica que faz parte do processo de entendimento do casal a mulher não admitir mais episódios que descambem para a violência. Ao final, ensina um truque para casos extremos em que o marido achar que pode perder a cabeça: segurar uma pedra de gelo na mão até que o pensamento acalme. Só depois, conversar com a esposa. Tudo normal, segundo Madgéli:
– Não é um processo fácil de mudança. E os grupos são curiosos. Muitas vezes aquele mesmo homem que chegou raivoso, se sentindo injustiçado, lá pelo décimo encontro está ajudando os iniciantes a refletir – conta.
Provavelmente, é o que aconteceu na discussão presenciada pelo repórter. Soube, depois da sessão, que o mais agressivo do grupo era também um dos poucos naquele dia que fora condenado. Se não comparecer aos encontros, pode voltar à prisão. A maioria é encaminhada ao grupo ainda em audiências preliminares, como medida protetiva. Alguns já pareciam confortáveis entre um grupo de amigos.
– Com o tempo, eles desenvolvem uma sensação de pertencimento. Pedem para continuar participando de alguma forma. Outro dia, um deles veio me contar que ouviu a briga entre um casal na praia e, no dia seguinte, chamou o vizinho para conversar. Então, eu digo: tudo isso (e Madgéli aponta para o Juizado de Violência Doméstica em torno de si) é fruto de uma construção histórica e cultural muito forte. Se foi possível construir esses comportamentos de dominação, de violência, e estamos tratando de seres humanos, é absolutamente possível desconstruir também.
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