Pela segunda vez, a comunidade de Três Passos condenou Leandro Boldrini pela morte do próprio filho, o menino Bernardo, aos 11 anos, em 2014. Ele e outros três réus já haviam sido condenados em 2019, mas o médico teve o julgamento anulado e foi encaminhado a novo júri, que se encerrou nesta quinta-feira (23), no fórum no centro da cidade, com Boldrini sentenciado a 31 anos e oito meses de prisão por homicídio quadruplamente qualificado (motivo torpe, motivo fútil, dissimulação e emprego de veneno) e falsidade ideológica. Ele foi absolvido do crime de ocultação de cadáver.
Ao final do júri, promotora Lúcia Helena Callegari se disse satisfeita pela sociedade de Três Passos ter entendido a participação de Boldrini no caso:
— Estamos tratando de um fato que jamais poderia ter acontecido. Jamais aqueles que têm o dever de proteção podem matar. Bernardo era um órfao vivo. Agora, está morto e vai deixar uma marca nessa cidade. Nos fazem ver que precisamos estar atentos. Quando a gente observar que as coisas estão erradas na família do lado, a gente tem de denunciar, não podemos silenciar. Não podemos ter outros Bernardos.
O promotor Miguel Germano Podanosche acrescentou que o MP tinha "convicção" de que a cidade não faltaria com a Justiça:
— A comunidade atendeu ao chamado, não decepcionou, honrou a memória de Bernardo.
Ao longo do novo julgamento, a defesa do réu sustentou que não havia "prova cabal" que ligasse Boldrini ao planejamento e execução da morte do filho. Admitiram que ele não foi um bom pai para o garoto, mas que o médico não sabia que a companheira ia assassinar a criança.
A defesa de Boldrini é feita por Rodrigo Grecellé Vares e Ezequiel Vetoretti. Ao fim do júri, Grecellé afirmou que os advogados deixariam o caso depois de nove anos de atuação, desde 2014, e dos dois juris.
Pouco depois, Vetoretti afirmou que precisa antes conversar com Boldrini para tomarem "juntos essa decisão".
— Não sei se ele vai querer recorrer ou se vai querer encerrar essa luta em busca da comprovação da sua inocência. Creio que ele esteja cansado dessa batalha — disse Vetoretti.
Testemunhos marcados por emoção
A morte de Bernardo, que sofreu uma série de negligências e violações por parte da família, chocou o município de 24 mil habitantes no Noroeste e comoveu o Estado e o país. O júri começou na segunda-feira (20), no fórum do município, com a exibição de vídeos e áudios em que Bernardo grita e pede por socorro repetidas vezes, dentro de casa. O material foi gravado por Boldrini e apagado do aparelho, mas recuperados pela perícia. O conteúdo foi apresentado pela acusação, a cargo pelo Ministério Público (MP), e embasa outro processo que o Boldrini e a mulher, Graciele Ugulini (condenada no primeiro julgamento como executora do homicídio), respondem, por tortura. No material, a madrasta e o pai de Bernardo dispensam xingamentos ao menino, o chamam de "cagão" e dizem que a mãe dele (Odilaine Uglione, que se suicidou em 2010) o havia abandonado.
Entre narrativas marcantes e emocionadas, a etapa de depoimentos de testemunhas teve relatos de duas delegadas envolvidas nas investigações, Caroline Bamberg e Cristiane de Moura e Silva Braucks, que falaram por horas seguidas sobre por que acreditam que Boldrini foi o mentor intelectual da morte do filho. Para elas, Bernardo morreu porque não cabia mais na nova configuração familiar, com a chegada da madrasta. As delegadas também apontaram motivação financeira, para que Boldrini ficasse com a herança deixada por Odilaine. Cristiane elencou as razões que levaram ao indiciamento do médico — do tratamento dispensado ao menino, que andava com roupas inadequadas e pedia comida na casa das pessoas, por exemplo, à cumplicidade com Graciele, até o desprezo e falta de interesse pala criança.
Também falou em plenário, em um dos momentos mais marcantes do júri, Juçara Petry, vizinha dos Boldrini, a quem Bernardo se referia como "tia Ju" e chamava de "mãe emprestada". Ao lado do marido, Carlos Petry, acolhida o menino em casa com frequência, oferecendo a ele roupas e comida — na última vez que diz ter visto Bernardo vivo, inclusive, Juçara havia dado dinheiro para que ele se alimentasse, pois havia passado o dia sem comer. Era com os Petry que Bernardo passava datas como Dia dos Pais e Páscoa. Foram eles quem organizaram uma festa de Primeira Comunhão para a criança, que não contou com a presença do pai e da madrasta. Juçara foi às lágrimas várias vezes durante deu depoimento, e em uima dessas ocasiões a sessão precisou ser interrompida para que ela se recompusesse.
Outro relato forte foi o de uma psicóloga que atendeu Bernardo e afirmou, entre outras coisas, que o menino "era órfão de pai vivo, órfão de uma família ausente", além de "louco pelo pai" e que queria ser médico como ele.
Depuseram ainda testemunhas da defesa, como uma babá do menino, pessoas que trabalharam com Leandro Boldrini e um primo dele. Em geral, todas ressaltaram o comportamento profissional exemplar do médico, afirmam que ele tinha boa relação com o filho e pontuaram a conturbada rotina da criança com Graciele.
Réu esteve apenas um dia no plenário
Leandro Boldrini esteve no plenário apenas no primeiro dia de julgamento, na segunda-feira (20), e se retirou quando vídeos de Bernardo foram exibidos. Nos dias seguintes, ele se deslocou até o fórum, mas não permaneceu na sessão por questões de saúde.
Conforme seus advogados, ele teve um surto psicótico em razão de estresse e não tinha condições de ficar em plenário. Boldrini foi atendido por uma médica no fórum e depois encaminhado para o presídio de Ijuí, onde seguiu recebendo atendimento. Pelo mesmo motivo, não prestou depoimento no júri.
Os advogados Rodrigo Grecellé Vares e Ezequiel Vetoretti respoderam pela defesa do médico desde 2014. Ao longo do novo julgamento, sustentaram que não havia "prova cabal" que ligasse Boldrini ao planejamento e execução da morte do filho. Admitiram que ele não foi um bom pai para o garoto, mas que ele não sabia que a companheira iria assassinar a criança.
O assassinato
O caso gerou revolta e indignação em abril de 2014, quando o menino de 11 anos foi dopado e morto pela madrasta. Após 10 dias de desaparecimento, o corpo foi encontrado dentro de uma cova vertical, com cerca de um metro de profundidade. Estava de cócoras, levemente inclinado para o lado direito e envolto por um saco plástico. O matagal onde ele foi enterrado fica na localidade de Linha São Francisco, em Frederico Westphalen.
O menino morava com o pai, a madrasta e uma meia-irmã. Bernardo teria sido morto por Graciele, com a ajuda da amiga, Edelvania Wirganovicz, e do irmão dela, Evandro Wirganovicz. Boldrini foi apontado como mentor intelectual do crime. Os quatro foram condenados em 2019. No entanto, o médico teve o julgamento anulado porque o Tribunal de Justiça do Estado entendeu que o Ministério Público violou o direito do médico de ficar em silêncio em parte do interrogatório.
A situação dos demais condenados
- Graciele Ugulini (madrasta) — condenada a 34 anos e sete meses de reclusão em regime inicial fechado, está presa no Presídio Feminino Madre Pelletier com previsão de progressão para o semiaberto em 2026;
- Edelvania Wirganovicz (amiga de Graciele) — condenada a 22 anos e 10 meses de reclusão em regime inicial fechado, cumpre pena no regime semiaberto no Instituto Penal Feminino de Porto Alegre;
- Evandro Wirganovicz (irmão de Edelvania) — condenado a nove anos e seis meses em regime semiaberto e atualmente em liberdade condicional.