Marcada para 8 de novembro, a reprodução simulada do caso do jovem Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, encontrado morto após abordagem da Brigada Militar (BM) em São Gabriel, em agosto, pretende recontar os acontecimentos daquela noite no município da Fronteira Oeste. O trabalho do Instituto-Geral de Perícias (IGP) irá simular o ocorrido, reproduzindo as mesmas condições daquela ocasião, com o objetivo de confrontar as versões trazidas por testemunhas do caso e verificar se elas são plausíveis com a perícia. A reconstituição deve ser acompanhada pelas partes envolvidas. A presença dos réus, no entanto, ainda é avaliada pelas defesas, já que eles não são obrigados a integrar a dinâmica.
Respondem pelo crime os três policiais que realizaram a abordagem naquele dia: os soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima, e o segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen. Eles estão presos desde 19 de agosto no Presídio Militar de Porto Alegre. Os três foram denunciados pelo Ministério Público e viraram réus tanto na Justiça comum como na militar.
Ainda não foi confirmado quantas testemunhas serão intimadas para participar da simulação — são chamadas pessoas que acompanharam ao menos um dos momentos que levaram à morte de Gabriel.
A reprodução simulada se divide em dois momentos. No primeiro, as testemunhas são ouvidas individualmente na delegacia do município pela equipe do IGP. Elas poderão dar sua versão do que presenciaram naquela noite. Depois, os participantes são levados ao local dos fatos para demonstrar como e onde se deram os acontecimentos narrados, o que também ocorre de forma individual.
Conforme o IGP, o trabalho é complexo e minucioso, e depende do estudo de todos os depoimentos e laudos elaborados até agora, que serão confrontados com a reconstituição. O trabalho será feito por duas peritas criminais e um fotógrafo criminalístico do instituto. A equipe fará anotações e fotos ao longo do procedimento. Depois, em um laudo pericial, darão sua análise técnica sobre o material colhido. Esse documento será anexado ao processo que corre na Justiça.
O tempo de duração da reprodução simulada vai depender de quantas pessoas vão participar da dinâmica no dia. A estimativa inicial é de que o trabalho se encerre, no máximo, na madrugada do dia 9.
Um boneco, para simular o corpo da vítima, pode ser usado durante a perícia. O IGP também deve solicitar à BM que a viatura usada pelos PMs durante a abordagem seja disponibilizada para a reconstituição. Se não for possível, deve ser usado um veículo da corporação que seja de modelo similar.
Tanto o Ministério Público quanto a Polícia Civil e as defesas podem solicitar ao IGP que alguns quesitos sejam esclarecidos durante a reconstituição. Também é direito das defesas pedir que um assistente técnico, como um perito particular, acompanhe o trabalho, o que precisa ser autorizado pela Justiça. A ação é comandada pelos peritos do IGP.
Como o trabalho se dará com base nos relatos apresentados, não é possível saber, até o momento, se as equipes irão até o açude onde Gabriel foi encontrado morto, por exemplo, uma vez que os três PMs negam ter deixado o jovem no local. Eles afirmam que o jovem foi deixado em uma estrada na localidade de Lava Pé, vivo.
Esse é um dos pontos que ainda não foram esclarecidos até o momento: como Gabriel teve o corpo levado até o açude, já que a viatura onde estavam os PMs que abordaram o jovem fez uma parada de cerca de apenas um minuto e 50 segundos perto desse rio, o que não seria suficiente para que a ação fosse realizada. Sobre essa questão, o Ministério Público afirmou, no dia da denúncia, que existem provas no inquérito que comprovam a participação dos denunciados nesse crime, mas não detalhou que elementos são esses, em razão do sigilo do caso.
O laudo de necropsia, feito pelo IGP, apontou que o jovem morreu por hemorragia interna causada por uma agressão na coluna cervical. Ele também tinha um hematoma na cabeça. O documento diz que não havia sinal de afogamento no corpo, sugerindo que a morte ocorreu antes da submersão.
Presença de réus ainda é incerta
As defesas dos três acusados pelo crime ainda decidem se irão participar do reconstituição. Por lei, réus de casos não são obrigados a estarem presentes.
Conforme o advogado Ivandro Bitencourt Feijó, que atende o segundo-sargento Jacobsen, o PM "faz questão de auxiliar a Justiça", mas o prazo apresentado é prejudicial para a defesa.
"Tomado conhecimento pela imprensa do agendamento da perícia de reconstituição. Pretendemos estar presentes, todavia o prazo apresentado pelo autoridade policial impede e cerceia a defesa da elaboração de quesitos e apresentação de assistente técnico à diligência. Nós acreditamos que o processo penal deve ser pautado pela participação de todas partes para a elucidação dos pontos controversos nas narrativas. Nos esforçaremos ao máximo para auxiliar o IGP neste momento", disse Feijó em nota.
O advogado Jean Severo, que atende os soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima, disse que a defesa avalia se os policiais irão participar da perícia, o que deve ser definido nos próximos dias.
Reconstituição foi pedida pela polícia
O trabalho foi solicitado pela Polícia Civil de São Gabriel, que investigou o caso. O delegado regional que atende o município, Luís Eduardo Sandim Benites, preferiu não comentar sobre o crime para "não prejudicar o trabalho que agora é feito pelo Ministério Público", uma vez que o inquérito policial foi concluído e remetido à Justiça.
O delegado afirmou, no entanto, que a Polícia Civil deve acompanhar a ação no dia 8:
— É uma parte importante do processo no sentido de aclarar fatos que eventualmente tenham deixado alguma dúvida ou contradição. A partir desse exame técnico feito pelos peritos, a gente pode confrontar se há verossimilhança, ou seja, se há veracidade naquilo que foi informado em depoimentos tomados. O objetivo é justamente esse, confrontar fatos e situações com as versões oferecidas, e verificar se há veracidade nas afirmações e constatações realizadas.
Benites acredita que a reconstituição, no entanto, não deve trazer alterações significativas ao que já foi concluído pela polícia durante a investigação.
— Não é algo definitivo, que vá mudar o rumo do inquérito, mas é um trabalho complementar que faz parte do processo investigatório — finaliza.
Por meio de nota, o Ministério Público em São Gabriel afirmou entender que "a reprodução simulada trata-se de mais um instrumento que reforçará a convicção da promotoria, que já está convencida de que a prova produzida até o momento é robusta em relação à responsabilidade dos réus".
Para que o trabalho do IGP possa ocorrer com tranquilidade, foi solicitado apoio logístico da Brigada Militar, que planeja um esquema de segurança e de isolamento do local. A BM de São Gabriel informou que, no dia da simulação, as equipes terão apoio de policiais de Santa Maria e de Livramento.
Pai de jovem deve depor na terça-feira
O processo sobre o caso está em andamento em duas esferas diferentes: na Justiça comum (que tem competência para julgar casos de crime doloso contra a vida de civis) e na militar (que julga crimes praticados por militares em serviço).
Na Justiça comum, os três policiais respondem por homicídio doloso triplamente qualificado (motivo fútil, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima). Na denúncia do Ministério Público, a promotora de Justiça Lisiane Villagrande Veríssimo da Fonseca descreve que os policiais militares em serviço, durante patrulhamento ostensivo, abordaram a vítima, "que foi algemada e brutalmente agredida com golpes de cassetete na região cervical". Na sequência, conforme o órgão, os denunciados colocaram o jovem no interior da viatura e se deslocaram até a localidade de Lava Pé, local em que ocultaram o corpo de Gabriel. Essa denúncia foi feita com base no indiciamento da Polícia Civil.
Na Justiça Militar, os PMs respondem por ocultação de cadáver e falsidade ideológica (em razão de informações falsas que teriam sido inseridas no boletim de ocorrência). A denúncia foi feita pelo promotor de Justiça Diego Corrêa de Barros, do MP, que tem atribuições junto à Justiça Militar. Segundo ele, após a morte da vítima, o trio de policiais ocultou o corpo de Gabriel, levando-o até o interior do município e escondendo-o dentro de um açude.
Além disso, para o MP, os acusados fizeram constar no boletim de ocorrência declaração falsa de que "a guarnição abordou o Sr. Gabriel, que consultado estava sem novidades, sendo então orientado e liberado", quando, na verdade, havia sido agredido, algemado, preso e posto no interior da viatura pelos denunciados, diz a acusação.
Na Justiça Militar, a oitiva do pai de Gabriel está marcada para 1º de novembro, em Porto Alegre. Depois, no dia 4, serão ouvidas demais testemunhas em São Gabriel, onde estão previstas 10 oitivas. Em nenhuma das esferas há, ainda, previsão de data para o julgamento dos PMs.