O laudo pericial que deverá indicar a causa da morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, é considerado peça chave para a conclusão da investigação, que deve ocorrer nos próximos dias. Em 19 de novembro, o cliente, um homem negro, foi espancado e morreu no estacionamento do Carrefour no bairro Passo D’Areia, na zona norte de Porto Alegre. Três pessoas estão presas, mas a Polícia Civil analisa ainda se outras também devem responder pelo crime.
Os depoimentos foram encerrados nesta semana — cerca de 40 pessoas foram ouvidas. Entre elas, funcionários do hipermercado, clientes, testemunhas e os próprios investigados – somente um deles preferiu se manter em silêncio.
Estão presos Giovane Gaspar da Silva, Magno Braz Borges e Adriana Alves Dutra. Os dois eram contratados por empresa terceirizada que atendia o mercado e aparecem nos vídeos agredindo e imobilizando a vítima no chão. Giovane atuava como policial militar temporário, mas estava fora do horário de serviço na Brigada Militar. A mulher trabalhava como fiscal no supermercado e também foi registrada em vídeos por testemunhas.
Diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), a delegada Vanessa Pitrez explica que o laudo de necropsia é fundamental, por ser considerado prova da materialidade do crime. A perícia deve indicar, entre outras análises, o que causou a morte de João Alberto. A conclusão inicial apontou asfixia como a provável causa, mas outros exames complementares são realizados.
— Não podemos remeter o inquérito sem isso para confirmar se realmente foi asfixia (a causa da morte) — explica.
Segundo o Instituto-Geral de Perícias (IGP), foram necessárias mais análises e o laudo está em fase final de elaboração. A previsão é de que a entrega ocorra na próxima semana. Após receber o laudo, a polícia produzirá o relatório final. Conforme a delegada, também são analisadas imagens de câmeras de segurança para ajudar a definir quantas pessoas devem ser indiciadas. Não está descartado que, além dos três, outros sejam responsabilizados.
Nas imagens de vídeos, além do trio que está preso, aparecerem mais funcionários no momento em que João Alberto era mantido imobilizado no chão. Nos vídeos gravados no estacionamento há momentos em que a vítima disse que não conseguia respirar.
— Estamos analisando bem as imagens e a postura de cada um na cena — descreve a delegada.
Questão racial
Além de como aconteceu a morte, o inquérito também apura o que motivou o crime e se houve motivação racial, pelo fato de a vítima ser negra. Por isso, além dos depoimentos, a polícia analisa imagens de câmeras de dias anteriores ao crime. Testemunhas relataram que João Alberto teria se envolvido em confusões anteriores e abordagens a clientes dentro do Carrefour.
A morte de João Alberto gerou uma série de protestos contra o racismo no Brasil. Uma comissão externa da Câmara dos Deputados foi criada para acompanhar o caso. Nesta semana, os representantes estiveram reunidos em Porto Alegre. O crime de racismo, de acordo com a legislação brasileira, só seria configurado caso houvesse a constatação de que João Alberto teve algum direito impedido pelo fato de ser negro e a injúria racial se daria se ele fosse ofendido por motivos raciais. Mas o que a polícia apura no momento é se o homicídio teve alguma motivação racial.
Chefe da Polícia Civil, a delegada Nadine Anflor explica que o relatório final da investigação deve levar todo o contexto do fato em consideração. Caso a polícia entenda que houve motivação racial, os indiciados poderão responder pelo homicídio com a qualificadora de motivo torpe. Mas se o entendimento for de que o crime foi motivado por outra razão, poderá ser enquadrado como motivo fútil.
— Nunca desconsideramos essa possibilidade, reconhecemos a existência do racismo estrutural. E até mesmo da condição socioeconômica da vítima. Mas o trabalho da polícia tem que ser técnico e jurídico, apresentando o que existe de provas. Seja por motivo torpe ou fútil, é um homicídio qualificado, como foi tratado desde o início, triplamente qualificado — afirma.
O advogado Gustavo Nagelstein, que representa a companheira de João Alberto, Milena Borges Alves, como assistente de acusação no caso, diz que a família espera que o inquérito seja concluído em breve e que processo aconteça de forma célere.
— Que se faça justiça e que o processo não se arraste. Com certeza, a Milena sofre muito com a perda. Vejo que as pessoas fazem relação da vida pregressa do João com o fato. O que buscamos é que seja julgado o fato, a morte dele. No dia que aconteceu isso, ninguém tinha conhecimento do modo como ele vivia, nem os antecedentes dele — afirma.
Sobre os antecedentes criminais, a delegada Nadine afirma que não são considerados relevantes para a apuração do fato em si — ele tinha registros por violência doméstica e porte ilegal de arma de fogo, em 2010.
— Em nenhum momento, a polícia divulgou os antecedentes dele. Neste caso, ele é vítima. Assim tem que ser tratado. É preciso trabalhar com imparcialidade. Investigar com isenção e observar neste caso que ele é uma vítima — diz.
Segundo a chefe da Polícia Civil, foram identificados os servidores que acessaram esse conteúdo pelo sistema de consultas integradas e elas terão que justificar o motivo.
O que dizem as defesas
O advogado David Leal, que atua na defesa de Giovane, informou que a equipe ingressou com pedido de liberdade provisória nesta quinta-feira (3). Entre os argumentos apresentados pela defesa, está o fato de que não há mais motivos para manter a prisão preventiva e que não havia intenção de matar João Alberto. Em depoimento, Giovane afirmou que pretendia imobilizar a vítima. Nos vídeos, ele aparece desferindo uma série de socos no rosto e na cabeça de João Alberto. Ele alega que isso aconteceu após ser atingido primeiro por um soco dado pelo cliente — isso foi confirmado por imagens de câmeras.
— É um rapaz bom, trabalhador, que teria que aguardar em liberdade — afirma o advogado.
A defesa alega também que Giovane está preso no Batalhão de Polícia e Guarda (BPG) da Brigada Militar, mas que com o processo de desligamento poderá ser encaminhado para uma casa prisional comum. O advogado argumenta que, neste caso, a integridade física do PM estará em risco. Nesta sexta-feira (4), a defesa enviou um novo pedido à Justiça, onde afirma que recebeu a informação da Corregedoria Geral da BM sobre o desligamento de Giovane e pede que a integridade do cliente seja resguardada.
A defesa de Adriana, realizada pelos advogados Felipe Faoro Bertoni e Pedro Catão, enviou nota na qual informa que a cliente tentou interceder no conflito e que ela não fez gravações. Pelas imagens, era possível ver a fiscal com um objeto na mão, mas a defesa alega que era um rádio comunicador. O telefone celular de Adriana foi apreendido para ser analisado.
Confira a nota na íntegra:
"A defesa de Adriana Alves Dutra composta pelos advogados Felipe Faoro Bertoni e Pedro Catão informa que está acompanhando a investigação realizada pela Polícia Civil e que existem elementos demonstrando ter ela tentado separar o conflito, bem como ter chamado a Polícia Militar e a SAMU para atender a ocorrência. Além disso, importa esclarecer que em nenhum momento Adriana filmou o ocorrido, mas portava em sua mão um rádio comunicador por meio do qual incessantemente chamava socorro."
Carrefour
Nota à Imprensa
Após ouvir as proposições do Comitê Externo e Independente originadas de demandas históricas de organizações negras, o Carrefour, a partir do dia 14 de dezembro, inicia a internalização dos serviços de segurança. O processo de internalização começará pelos quatro hipermercados no Rio Grande do Sul, em um projeto piloto, incluindo a loja Passo D’Areia, em Porto Alegre. O novo modelo é o ponto inicial para transformação do seu modelo de segurança e faz parte dos compromissos anunciados pela rede. O processo de recrutamento e o treinamento dos profissionais para as lojas contará com associação que reúne empreendedores negros da região de Porto Alegre. Todo o processo de internalização da segurança terá como foco a implementação de práticas antirracistas e de uma cultura de respeito aos direitos humanos, além de considerar a representatividade da população brasileira (50% de mulheres e 56% de negros) como um compromisso. A data de admissão dos novos colaboradores está prevista para o dia 14 de dezembro em todas as lojas Carrefour da região, seguindo as etapas de contratação.
GZH procurou a defesa de Magno, mas ainda não obteve retorno. Segundo a Polícia Civil, o advogado orientou o cliente a permanecer em silêncio, por isso, ele não prestou depoimento ao longo do inquérito.