A 2ª Delegacia de Homicídios de Porto Alegre indiciou seis pessoas pela morte após espancamento de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, no dia 19 de novembro, no estacionamento do supermercado Carrefour, na Zona Norte. No inquérito concluído nesta quinta-feira (10), foi acrescentado um quarto autor ao homicídio triplamente qualificado, além de dois indiciados por participação no crime. A investigação atribui motivo torpe ao crime pelo racismo estrutural existente na sociedade.
Além do ex-PM temporário Giovane Gaspar da Silva, do segurança da empresa terceirizada Vector Magno Braz Borges e da fiscal do Carrefour Adriana Alves Dutra - os três já presos apontados como autores do crime -, foram indiciados e tiveram a prisão solicitada mais um funcionário da empresa de vigilância Vector, Paulo Francisco da Silva, por autoria do crime, e outros dois funcionários do Carrefour por participação: Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende. Todos respondem por homicídio doloso (com intenção) triplamente qualificado.
Após análise de imagens gravadas por outras pessoas que estavam no local e de câmeras de segurança, 33 depoimentos colhidos e de resultado pericial, a delegada Roberta Bertoldo entendeu que as qualificadoras são asfixia, recurso que impossibilitou a defesa da vítima e motivo torpe, quando há fato reprovado moralmente e socialmente.
A polícia apontou Paulo Francisco da Silva como autor do homicídio por ter impedido que a companheira de João tentasse ajudar quando ele ainda respirava. Kleiton Silva Santos e Rafael Rezende são apontados como "participantes" na autoria do crime por terem sido flagrados com menor intensidade e tempo nas agressões. Os três tiveram prisão solicitada. O inquérito, concluído na quinta-feira (10), já foi remetido à Justiça de forma online na madrugada desta sexta-feira (11).
A chefe de Polícia, delegada Nadine Anflor, diz que a investigação apontou que não houve motivo fútil, algo do tipo aleatório, mas motivo torpe pela condição socioeconômica da vítima, entre outros fatores pré-concebidos no inconsciente das pessoas, mas que determinam condutas automáticas.
— Foi uma reação desproporcional e que, com base nas provas, envolveu um conjunto de circunstâncias sociais e comportamentais que evidenciaram o motivo torpe para o cometimento do crime. O trabalho muito bem conduzido pela delegada Roberta aponta que houve motivação repugnante, torpe, com base especialmente nos fatores que motivaram a conduta dos indiciados e a forma como abordaram a vítima, tratando-a de maneira desumana e degradante, o que resultou no indiciamento por homicídio qualificado — diz a chefe de Polícia.
A pena prevista para homicídio doloso qualificado, em caso de condenação, é de 12 a 30 anos de prisão. A polícia não encontrou provas de que o caso tenha sido motivado por injúria racial, apesar de entender que faz parte do contexto envolvendo motivo torpe por existir um racismo estrutural na sociedade com influência indireta na abordagem à vítima.
Perícia
O Instituto-Geral de Perícias (IGP), conforme a perícia no local do crime, apontou que houve ação contundente contra a cabeça da vítima, com embate somente no estacionamento. Já a necropsia destacou asfixia mecânica, uma sufocação indireta, como causa da morte de João Alberto Freitas. Houve compressão do tórax, impedindo a expansão do pulmão e obstruindo a respiração até provocar a asfixia. Não foram encontrados sinais de embriaguez ou uso de drogas.
Participações
Entre os 33 depoimentos, incluindo os dos seis indiciados, há os de três PMs, três funcionários e um supervisor da Vector, dois familiares – a companheira e a filha –, um vizinho de João Alberto, um motoboy que gravou imagens, oito clientes, alguns que pediram para as agressões pararem, além de nove funcionários, um gerente, diretor, agente fiscal e ex-funcionário do Carrefour.
Giovane Silva e Magno Borges constam como agressores diretos.
Adriana é apontada por explicações falsas sobre motivo da contenção. Alegou no ato que outra funcionária e ela foram agredidas, além de não mencionar no pedido de socorro que João Alberto havia se envolvido com seguranças e funcionários, mas apenas com clientes. Ela se manteve inerte, segundo a polícia, em prestar ajuda por quase 10 minutos, tempo em que a vítima ficou no chão do estacionamento do mercado após a contenção.
Paulo Silva, assim como Adriana, foi mencionado por não prestar socorro e por impedir gravações e que outras pessoas se aproximassem. A delegada Roberta ressalta que eles nada fizeram para evitar a morte em um descaso com a agonia da vítima.
Já os funcionários do mercado, Rezende e Santos, também impedem a aproximação de mais pessoas na cena do crime, além de Rezende ter chutado João Alberto e de Santos também ter dado chutes, mas ainda socos.
— Vinte e nove dias depois do fato, após cerca de 40 depoimentos, incluindo reinquiridos, concluímos um caso com base em provas e análises minuciosas da postura e conduta de cada um. Quatro autores e dois participantes, mas todos respondendo por homicídio doloso triplamente qualificado — disse a diretora do Departamento de Homicídios, delegada Vanessa Pitrez.
Imagens
Conforme as câmeras, João Alberto e a companheira chegam ao Carrefour às 20h32mim do dia 19 de novembro. Depois, ele se aproxima de uma fiscal, ela se afasta e ele faz vários gestos. Adriana é acionada e, posteriormente, o ex-PM e o outro segurança. Os três caminham para o estacionamento, sem indicativo de conversa, conforme movimentação corporal. Na porta, João Alberto desfere um soco no ex-PM, há tentativa de imobilizá-lo e agressões mútuas, sob acompanhamento de Adriana.
Na sequência, no estacionamento, clientes se aglomeram e chegam os outros dois funcionários do mercado, que também agridem a vítima durante a contenção. Pessoas são impedidas de tentar fazer algo, e os envolvidos pedem para que cessem as gravações.
Segundo as imagens, às 20h42mim ocorre o soco desferido por João Alberto, e às 20h44min terminam as agressões. Até as 20h48min, a vítima fica no chão, contida, sendo confirmada a chegada do socorro médico às 21h08min. Às 21h43min terminam as tentativas de reanimar a vítima.
Mensagens e depoimentos
A delegada Roberta enfatiza no inquérito os depoimentos de todas as pessoas ouvidas. Além dos indiciados, ela revela trechos de clientes. Um diz que a vítima estava sem ar, clamando por socorro. Outro ressalta que percebeu a asfixia e que não davam atenção aos pedidos de João Alberto.
Na ligação feita por Adriana ao Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), ela relata uma briga, que alguém passava mal e que os envolvidos eram clientes. Na análise das mensagens no celular dela, com amigos após a morte, ela ressalta que precisava ficar "fora da vista" e proteger pessoas ligadas a ela. Em um trecho aparece a seguinte informação: "o brigada ratiou, botou joelho em cima, fez que nem o policial americano, aquele que asfixiou o cara", em uma suposta menção ao caso de George Floyd, morto por policiais norte-americanos em maio deste ano.
Considerações
Um trecho do inquérito de 69 páginas tem o subtítulo "considerações". A delegada Roberta fala do abuso de poder dos seguranças, extrapolando o permitido pela legislação, e do fato de o hoje ex-PM temporário estar prestando serviço de segurança privada quando ainda fazia parte da corporação. Ela ainda ressalta o motivo torpe ao mencionar: "se a vítima fosse outra? Poderia ou não ser outro desfecho? Se tivesse outra vestimenta? A abordagem seria a mesma?" Assim, ela conclui que a ação decorreu da fragilidade socioeconômica de João Alberto.
Por fim, a responsável pela investigação destaca a asfixia e o fato de que cinco homens e uma mulher, conforme a participação de cada um, agrediam e continham a vítima, enquanto outros mantinham populares e companheira do agredido afastados da cena do crime.
Contrapontos
Responsável pela defesa de Magno Braz Borges, o advogado Jairo Luis Cutinski aguarda acesso ao relatório do inquérito para se manifestar.
Responsável pela defesa do ex-PM temporário Giovane Gaspar da Silva, o advogado David Leal não teve acesso a íntegra das informações, ao relatório final do indiciamento e aos laudos do IGP. "Os laudos serão avaliados pela nossa equipe de peritos, assim como todo levantamento de informações que foi feito pela polícia. Se necessário, iremos contestar."
Responsável pela defesa de Adriana Alves Dutra, o advogado Pedro Catão informa que "está acompanhando a investigação e entende que a prisão temporária a qual está submetida é absolutamente ilegal desde a sua decretação, tendo em vista que determinada de ofício pela Magistrada. Além disso, Adriana esteve em todos os momentos à inteira disposição para auxiliar no andamento do inquérito policial, não sendo verdadeira a alegação de que seu paradeiro era desconhecido. Esse fato foi comprovado por elementos de investigação colhidos e já documentados. A regra, no processo penal, é a liberdade, sendo a prisão medida extremamente excepcional e que necessita de fundamentação concreta, não se justificando no caso de Adriana, senhora primária, de 51 anos e portadora de doenças graves. Quanto ao mérito dos fatos investigados, a defesa somente irá se manifestar após ter acesso ao relatório final da Autoridade Policial."
Paulo Francisco da Silva e Kleiton Silva Santos ainda não têm advogados constituídos.
A defesa de Rafael Rezende, os advogados David Leal e Raiza Hoffmeister, destaca que ainda não teve acesso à íntegra dos autos do inquérito, e que o escritório foi procurado por Rafael na sexta-feira. Os advogados mencionam que há diversas inconsistências na investigação e serão abordadas ainda nos próximos dias em manifestação técnica perante o juízo.
Posicionamento do Carrefour
"Até o momento, o Carrefour informa que não teve acesso a conclusão do inquérito da Polícia Civil a respeito do caso ocorrido na noite do dia 19 de novembro, em Porto Alegre. Seguimos à disposição dos órgãos para contribuir com todas as informações necessárias e reforçamos nosso repúdio a qualquer tipo de violência e agressão em nossas unidades."
Posicionamento do Grupo Vector:
"O Grupo Vector manifesta seu repúdio a qualquer ato de violência e lamenta o fato ocorrido na noite de 19/11/2020. A Vector reforça que não compactua com ações de violência, independente do tipo, caráter e objeto alvo da violência. Os colaboradores envolvidos com os acontecimentos foram desligados do quadro de funcionários da Vector.
A Vector possui seus valores a fundados na Cordialidade e Empatia para desempenho de suas ações, respeitando a vida. No presente momento, a prioridade da Vector é contribuir integralmente com as investigações e ações da Justiça. Garantir que qualquer fato semelhante jamais aconteça novamente é o principal compromisso da Vector, através da transformação ao qual a empresa se encontra, mantido pelo diálogo transparente estabelecido com a sociedade."