Por Fernanda Bastos
Jornalista e CEO da editora Figura de Linguagem
Em um dos vídeos da campanha para a Câmara do agora vereador eleito Matheus Gomes, um jovem negro, o cantor Tuiio Nunes, narra o desconforto e a revolta de ter sido abordado por seguranças durante uma ida ao súper para comprar itens para a sua ceia de Natal. Ser perseguido em um supermercado é rotina para qualquer pessoa negra, uma rotina de constrangimento e de medo. Para nós, o desfecho de uma saída para compras pode acabar em acusações e violência, onde pouco importa se somos trabalhadores ou desempregados, se temos diploma ou dinheiro, se temos ou não antecedentes.
É esse vídeo que estou tentando colar nos meus olhos nesse momento, enquanto sou agredida pelas imagens da agressão bárbara que resultou na morte de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, morador do IAPI, com afetos e sonhos, como eu e você que me lê agora. Para o ordenamento jurídico, esse caso será de homicídio, com investigação sobre a eventual motivação. Mas, para a comunidade negra, a motivação é racial, resultado da naturalização da morte de pessoas negras e de nosso apagamento nos espaços, sobretudo os de poder, que precisam criar ações e políticas contra o racismo (que parte da nossa sociedade ainda nega, ou só vê acontecer no Rio de Janeiro ou nos Estados Unidos). Com relação ao caso específico de João Alberto, o problema é que todos os espaços de poder possuem mais pessoas despreparadas do que pessoas negras, em um sintoma do racismo que corrói competências técnicas.
Se você ouve rádio, lê jornal ou vê TV, já deve ter ouvido por aí a frase da filósofa afro-americana Angela Davis, porque “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. E essa frase serve justamente para as nossas instituições. Hoje, Dia da Consciência Negra, nosso luto aumenta com a notícia da morte de Beto, embora a data em si nunca tenha sido exclusivamente de comemoração, uma vez que o racismo continua vivo, mas a maioria das pessoas não negras só quer falar disso quando há uma morte.
A peça de campanha a que me referi no início desse texto foi criada coletivamente e anunciava um sonho, o de que na Porto Alegre de 2021 todo o porto-alegrense negro pudesse ser confundido com um vereador. A nossa mensagem era simples: precisamos naturalizar a nossa presença nos espaços de poder. E um enorme avanço foi obtido com a eleição de Matheus Gomes, Bruna Rodrigues, Daiana Santos, Karen Santos e Laura Sito, uma bancada negra porto-alegrense, cheia de diversidade. Menos de uma semana depois de sua eleição, no entanto, essa bancada negra da Capital teve de se reunir para responder à acusação de que é desqualificada, mesmo tendo toda a legitimidade da soberania do voto em uma democracia representativa. Quem minimizou esse ataque deve sentir vergonha e arrependimento agora. Deve também se somar aos atos convocados em Porto Alegre e outras cidades do país para combater a violência racial e honrar a memória de Beto. E se você não se sente arrependido, saiba que chegamos inconformados e apoiados por uma comunidade aliada que também quer justiça para que o assassinato de Beto e toda a violência cessem. Lembrando Sueli Carneiro: queremos um novo pacto racial e atuamos em legítima defesa.