“Dedinho na boquinha”, “mentirosa”, “mulher que nem você”, “farsa”, “showzinho”, “choro falso”, “lágrimas de crocodilo” e “posições ginecológicas” foram palavras dirigidas a jovem Mariana Ferrer, 23 anos, durante audiência na qual era ouvida como possível vítima de estupro de vulnerável. O autor das frases é o advogado Claudio Gastão da Rosa Filho, que, no processo, atua na defesa do empresário André Camargo Aranha – absolvido da acusação. O vídeo de três horas da sessão realizada em 27 de julho de 2020, divulgado na íntegra pelo jornal Estadão, foi analisado por GZH.
Do tempo total da audiência, 45 minutos foram dedicados ao depoimento de Mariana, primeira a falar. Isso porque ela já havia começado a ser ouvida em audiência anterior – esse primeiro vídeo não foi divulgado. Nesta data, como já havia respondido na sessão anterior os questionamentos do Ministério Público, responsável pela acusação, e da Defensoria Pública, que atuava em seu nome no processo, a jovem passou a ser indagada pelo advogado de defesa do acusado.
Neste período em que a defesa faz os questionamentos, que dura cerca de meia hora, em pelo menos 13 momentos identificados por GZH, Gastão emite frases ofensivas direcionadas à vítima. Mas o primeiro embate acontece antes das perguntas se iniciarem formalmente. A sessão foi realizada por meio de videoconferência, em razão da pandemia de coronavírus.
Nos 13 minutos iniciais, a jovem explica que está no escritório de um advogado, amigo da família, presente na mesma sala. Ela é orientada a mostrar que não há mais ninguém na sala, e chega a gravar um vídeo com celular para comprovar isso. O juiz afirma que ela, ao possui defensor público, precisa optar entre a defesa dele ou do advogado. Mariana alega que o advogado não está constituído no processo e só está ali para acompanhá-la. A situação leva a um primeiro atrito com a defesa.
O advogado diz que quer o endereço de Mariana para enviar um fiscal até o local. A jovem rebate e chora – isso vai se repetir pelo menos mais três vezes no vídeo. Por fim, concorda em permanecer sozinha na sala, o advogado deixa o local e a sessão de perguntas se inicia aos 13min46seg da gravação.
Além da jovem e do advogado, participam da audiência o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, o promotor Thiago Carriço de Oliveira e o defensor público Tauser Ximenes Farias, que representou Mariana naquela sessão. O advogado inicia as perguntas exibindo uma foto sensual da jovem, sob argumento de que quer saber se houve manipulação da imagem. Neste momento, usa a expressão “dedinho na boquinha”, para se referir à pose dela. As fotos foram anexadas ao processo, segundo o advogado, pela própria defesa da jovem.
Mariana tenta mostrar uma outra imagem no celular, que teria sido manipulada, o advogado se exalta e diz algo inaudível. O juiz Rudson faz as primeiras interferências neste ponto da audiência. Ao longo desta etapa de perguntas, GZH identificou 32 momentos em que o magistrado faz alguma interrupção. Desses, 19 se dirigem a Mariana, 10 ao advogado e três aos dois (quando ele pede para que mantenham o nível na audiência, por exemplo).
A exibição das imagens de Mariana — o advogado mostra pelo menos quatro fotos sensuais dela — não é contestada por nenhum dos presentes na audiência. O juiz inclusive auxilia o advogado a buscar essas fotografias dentro do processo e questiona a jovem se as imagens foram mesmo manipuladas. Mariana acaba afirmando que disse que as fotos foram usadas fora de contexto, para descredibilizá-la, e usa a expressão “cultura do estupro”. O advogado exibe uma das imagens e Mariana rebate.
— Muito bonita por sinal o senhor disse, né? Cometendo assédio moral contra mim. O senhor tem idade para ser meu pai. Tinha que se ater aos fatos.
O advogado se exalta e ofende a jovem:
— Não tenho filha do teu nível. Graças a Deus. E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. Você falou da minha filha...
Neste momento, aos 18min36seg da gravação, o defensor público faz sua única interrupção ao longo das declarações e diz que acredita que não há condições para continuar dessa forma. O juiz concorda que terá de suspender a sessão se permanecer assim.
O advogado reclama que a jovem está fugindo de responder as perguntas. Por pelo menos nove vezes, Mariana responde de forma imprecisa aos questionamentos, com informações vagas ou rebatendo com novas perguntas. Gastão se irrita e diz que ela quer debater com ele. A jovem é repreendida mais de uma vez pelo juiz sobre o fato de que precisa responder de forma objetiva.
Os questionamentos seguem acerca de quem poderia ter sido responsável por dopar Mariana. O advogado sustenta que nenhuma testemunha afirmou que ela aparentava estar drogada ou dopada. Ela responde repetidas vezes que não sabe em que momento isso aconteceu ou quem teria sido o responsável, mas que pode ter acontecido em diversos momentos. O advogado afirma que ela acredita numa conspiração. Mariana se exalta e faz acusações.
— Isso se trata de uma organização criminosa. Todos os envolvidos são criminosos. Por isso, meu processo não anda. Se ele fosse um zé galinha, já estava preso — diz e chora novamente.
Mariana implora em determinado momento para que seja tratada com respeito. O juiz afirma que pode fazer uma pausa, para que ela se recomponha. Mas não faz nenhum alerta direto ao advogado sobre o tipo de expressões usadas. A jovem se desespera.
— Eu gostaria de respeito, doutor. Excelentíssimo, estou implorando por respeito, no mínimo. Nem os acusados são tratados da forma como estou sendo tratada. Pelo amor de Deus, gente, o que é isso? Nem os acusados de assassinatos são tratados dessa forma. Sou uma pessoa ilibada. Nunca cometi crime contra ninguém.
O advogado tenta interromper a fala dela:
— Seu crime é querer ganhar dinheiro...
O juiz interrompe e decide por determinar uma pausa na audiência. Ele alerta Mariana sobre o artigo 213 do Código de Processo Penal, que prevê que o juiz não pode permitir que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, "salvo quando inseparáveis da narrativa do fato":
— Vou pedir encarecidamente que tu observe essa regra.
Choro
O advogado critica o choro da jovem e diz que ela não apresenta as provas que alega ter: “Não adianta vir com teu choro falso, com essas lágrimas de crocodilo”. Ao longo da sessão, em pelo menos sete momentos o advogado usa o fato de a jovem chorar como forma de ataque. Em determinado momento, diz:
— Essa tua conversa pode impressionar no Instagram, mas aqui está falando com juiz, com promotor. Não tem ignorante aqui que vai acreditar no que tu está falando. No Instagram, tu pode vir com essa conversa. Aqui vais ter que responder e não adianta chorar. Não adianta chorar. Chorar para mim não é contra-argumento. (...) Excelência está vendo que não sai nenhuma resposta. Eu vou prosseguir, ela não responde. Antes que comece a choradeira.
Ao longo deste trecho da audiência, no qual Mariana é questionada pela defesa, o promotor faz somente uma intervenção dirigida à própria jovem, aos 34min36seg da gravação, na qual alerta para a necessidade de manter o esquema de pergunta e resposta (sem divagações), e argumenta que o processo dela é o único que está sendo examinado durante a pandemia, para demonstrar agilidade. O juiz reforça que o caso tem mais de 3 mil páginas e que está sendo dada atenção ao processo.
— Estamos fazendo um esforço hercúleo para teu processo chegar no final — diz o magistrado.
As questões seguem, o advogado pergunta por que ela não apresenta as provas que diz ter e um dos pontos debatidos é o vestido que Mariana usava no dia da festa – a peça não foi apresentada para perícia. O magistrado também pergunta se o vestido foi submetido à perícia, ela diz ter sido orientada a enviar a roupa para fora do Brasil, por segurança.
As perguntas continuam sobre a noite em que ela afirma ter sido estuprada. Mariana diz que não chamou a polícia porque estava dopada e não se deu conta do crime. Ela chora ao falar sobre a virgindade.
— Que mulher que guarda a virgindade por 21 anos para perder com um desconhecido nesse lugar? Pelo amor de Deus — diz.
Em pelo menos cinco momentos, o advogado afirma que Mariana usa o caso para angariar seguidores nas redes sociais. Acusa a jovem de manipular a história, e utiliza as palavras “farsa”, “showzinho” e “ganha pão”. O advogado usa a vida pessoal dela para sustentar a tese de que ela criou uma farsa. Diz que Mariana perdeu o emprego, estava com aluguel atrasado havia sete meses e era uma desconhecida:
— Ela não quer que isso termine. Ela quer curtidas no Instagram. É a fonte de renda dela.
Após ser interrompido pelo juiz, que alerta que isso deve fazer parte das alegações, e não do momento da audiência, o advogado continua com os insultos. O magistrado intervém novamente e diz que tudo será analisado na sentença. Gastão volta a exibir imagens de Mariana, que afirma ser a última foto que irá mostrar.
— Esta foto foi extraída do site de um fotógrafo, onde a única foto chupando dedinho, em posições ginecológicas, é só dela — afirma, em deboche.
Mariana, visivelmente abalada, rebate dizendo que não é freira, que não há nada demais com as imagens e que estamos em 2020. O advogado questiona por que ela apagou as imagens de suas redes sociais e acusa a jovem de vitimismo: “Só aparece essa tua carinha chorando, só falta uma auréola na cabeça”.
Ao término do depoimento, a jovem tenta se defender e repete as palavras: “cultura do estupro”, “machismo” e “patriarcado”. O advogado responde com “mentirosa” e segue dizendo frases inaudíveis.
Outros relatos
Além de Mariana, foram ouvidos na mesma audiência a mãe dela, um publicitário, sócio de beach club onde ocorreu o caso em dezembro de 2018, em Florianópolis, e o acusado. O depoimento da mãe da jovem também foi marcado por momentos de embate com o advogado. Ao longo do relato, Gastão acusa a mãe da jovem de ter deixado Santa Catarina porque estava devendo aluguel.
O advogado inicia questionando se Mariana era uma jovem tímida. A mãe diz que ela tinha vergonha de conversar, mas gostava de aparecer em fotos.
— Quando indaguei a sua filha, eu falei, para que não me chamem de preconceituoso, que as fotos são artisticamente bonitas. Por que a sua filha apagou as fotos sensuais que estavam no Instagram? — questiona.
A mãe se exalta em determinado momento e diz que a filha foi vítima de uma quadrilha, que dopa e vende mulheres. A mãe diz que deixou Florianópolis porque estava sendo ameaçada e que tudo está registrado.
— A senhora tem registrado também os sete meses de aluguel que está devendo e saiu daqui fugida ou é mentira também do cara da imobiliária? — critica Gastão.
O juiz interrompe e diz que isso não tem pertinência no processo.
Interrogatório
André Camargo Aranha também foi ouvido nesta mesma data, ao final da audiência. No interrogatório, diferente do clima tenso durante o depoimento de Mariana e da mãe, não há nenhum momento de ânimos exaltados. O empresário fala por longos períodos com poucas interrupções.
Ele acusa a jovem de ter criado uma mentira, por motivação financeira. Diz que o caso se trata de um golpe e afirma repetidas vezes que o episódio destruiu sua família. Descreve que foi julgado pelo “tribunal da internet”. Sobre o caso em si, ele diz que trocou beijos e carícias sexuais com Mariana, mas de forma consensual.
— Eu quero ser julgado por vocês, não pela inquisição da internet — afirma.
Repercussão
A postura na audiência em relação à Mariana foi revelada em reportagem do site The Intercept Brasil, que divulgou trechos do vídeo. A repercussão sobre o vídeo da audiência levou o Conselho Nacional de Justiça a informar que vai apurar a conduta do juiz. O Conselho Nacional do Ministério Público também afirmou que avalia uma representação contra o promotor de Justiça. GZH fez contato com o advogado Gastão, mas não obteve retorno.
O caso gerou onda de manifestações e levou à campanha contra o "estupro culposo", expressão que não consta no processo, mas foi usada pela reportagem do Intercept para explicar o fato de o próprio Ministério Público ter argumentado que não havia como comprovar que o empresário cometeu o crime. Em 9 de setembro, Aranha foi absolvido pela Justiça de Santa Catarina da acusação de estupro de vulnerável.