Tão poucas vozes no mundo do Direito se levantaram para protestar contra a vilania que envolve a absolvição do empresário André Aranha, acusado de estuprar a modelo Mariana Ferrer, que a terça-feira (3) termina com a sensação de que juízes, promotores e advogados entraram na máquina do tempo e estão de volta ao século 19. Essa viagem tem uma escala no século 20, em que a Justiça absolvia criminosos que matavam “por amor” ou em legítima defesa da honra .
A figura do “estupro culposo”, inventada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, sem usar essa expressão, mas endossada pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira e aceita pelo juiz Rudson Marcos já seria suficiente para exigir uma manifestação das entidades que reúnem os operadores do Direito.
O conjunto da obra é pior do que a sentença: o vídeo do advogado humilhando a vítima, divulgado pelo site The Intercept e que correu o mundo neste início de novembro, embora o julgamento tenha ocorrido em setembro, expõe a Justiça brasileira aos olhos do mundo civilizado.
A tática do advogado, de culpar a vítima, é mais velha que o rascunho do primeiro Código Penal. Historicamente, vítimas de estupro são tratadas como culpadas. Ora é porque usava uma roupa decotada ou curta demais, ora porque estava bêbada, ora porque provocou o coitado do agressor, ora porque posou nua para um site ou revista.
Onde estão as associações de magistrados e de promotores de Justiça? O Conselho Nacional de Justiça, criado para ser o órgão de controle externo do Judiciário? O Conselho Nacional do Ministério Público, que acompanha o CNJ quando se trata de alguma vantagem corporativa? Por onde andam as entidades de defesa dos direitos humanos? Sim, uma moça bonita humilhada num tribunal é desrespeito aos direitos humanos, senhoras e senhores.
Pior do que o silêncio é a manifestação da Associação dos Magistrados Catarinenses, pérola do corporativismo. Torna-se ainda mais chocante porque assinada por uma mulher, a juíza Jussara Schittler dos Santos Wansscheer. Em defesa do colega que absolveu o empresário, a doutora diz que a sentença foi “amplamente fundamentada pelo magistrado, com base nas provas produzidas nos autos e, também, em razão da manifestação do Ministério Público de Santa Catarina, que considerou as provas do processo insuficientes para amparar a condenação”.
O Ministério Público sustenta que Aranha "não tinha como saber que Mariana estava em situação de vulnerabilidade, ou seja, sem condições de aceitar ou negar o ato sexual". A palavra da vítima, claro, não conta.
No vídeo, o advogado humilha Mariana sem que o juiz faça qualquer coisa para parar o circo dos horrores, mesmo com a moça aos prantos. O advogado diz que "graças a Deus" não tem uma filha do nível da modelo. E acrescenta: “Peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher como você". Silêncio no tribunal, mesmo com a vítima em prantos. O máximo que o juiz propõe é suspender a audiência para que ela se recomponha. Ao que Mariana responde:
— Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados de assassinato são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?
Justiça se faça ao ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e ao presidente da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ricardo Breier, que não se calaram.
Em seu perfil no Twitter, Gilmar escreveu: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram.”
Breier, também no Twitter descreveu o caso como "aberração jurídica". "Em 20 anos estudando a matéria de crimes sexuais, nunca vi tamanha aberração Jurídica. Não existe estupro culposo!", afirmou.
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