A Polícia Federal (PF) investigou, em seis meses, desvios em contratos que somam R$ 2 bilhões em verbas destinadas ao combate da covid-19. A imagem de um senador com dinheiro na cueca e entre as nádegas para tentar escapar de um flagrante pode até ser a mais comentada nos últimos dias, mas é só mais um elemento na lista de operações deflagradas pela PF e que envolvem verbas destinadas a conter a pandemia.
Conforme balanço obtido por GZH, foram 51 operações entre abril e outubro, partindo de 18 Estados, com 131 prisões e 922 mandados de busca e apreensão. As ações com tema covid-19 representaram um terço de todo o trabalho da PF contra a corrupção no período.
A primeira ocorreu em 23 de abril, faltando dois dias para completar dois meses do primeiro caso de infecção pelo coronavírus registrado no Brasil. Depois disso, foi uma avalanche de notícias sobre o mau uso de verbas para a compra de respiradores, ventiladores, testes, máscaras, toucas, aventais, álcool gel, para erguer hospitais de campanha, enfim, qualquer item necessário para o trabalho na saúde ganhou contornos de matéria-prima para fraudes.
Para o coordenador-geral de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro da PF, delegado Thiago Machado Delabary, a ganância dos criminosos não chega a surpreender, mas se destaca pelo que representa em tempos de pandemia:
– Não deixa de chamar a atenção a falta de humanidade dessas pessoas, o desprezo pela gravidade do momento.
Os nomes das operações traduzem parte do sentimento de indignação de quem vê o dinheiro destinado a salvar vidas sendo embolsado por criminosos: Cobiça Fatal, Máscara de Ferro, Desumano e Falsa Esperança são alguns exemplos.
Das 51 operações, duas foram no Rio Grande do Sul: Camilo e Camilo 2ª Fase. Uma organização social (OS) foi contratada para administrar serviços para o Hospital Regional do Vale do Rio Pardo. A apuração revelou que a OS subcontratou empresas que serviriam para concretizar o desvio de dinheiro público. O prejuízo estimado é de cerca de R$ 15 milhões. O Estado campeão em operações foi Pernambuco (oito), seguido por Amapá (sete), Rio de Janeiro (seis), Pará (cinco) e Rondônia (quatro).
O trabalho no Pará teve conexão com o Rio Grande do Sul, já que envolveu o então secretário estadual de saúde daquele Estado, o gaúcho Alberto Beltrame, e o principal assessor dele, Peter Cassol Silveira. A Operação Para Bellum, de junho, investigou irregularidades na compra de respiradores pulmonares por R$ 50 milhões no Pará. Como desdobramento, houve buscas em imóvel de Beltrame em Porto Alegre. Em setembro, novo trabalho: a operação SOS. Nesta, Beltrame chegou a ter a prisão solicitada, mas a Justiça negou. Cassol foi preso. Ambos negam ter cometido crimes.
Nas mais de cinco dezenas de operações, a PF teve como alvos gestores e ex-gestores da área de saúde, governadores, servidores públicos e empresários.
Entrevista: delegado federal Thiago Machado Delabary
Coordenador-Geral de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro
Foram 51 operações em seis meses. É uma quantidade maior do que em relação a outros assuntos apurados pela PF no mesmo período?
De fato, os recursos destinados à pandemia tiveram tratamento prioritário na Polícia Federal, pela necessidade inadiável de que tais verbas chegassem aos destinatários. Foram 51 operações em curto espaço de tempo, o que representa cerca de um terço das operações realizadas pela Polícia Federal na área da corrupção neste ano de 2020.
Uma característica dos trabalhos da PF é, muitas vezes, o tempo maior de investigação até que uma operação seja deflagrada. Nos casos relacionados a desvios de verbas destinadas a conter a pandemia, foram ações mais rápidas. O que muda nestes casos?
Há muitas notícias sobre a suposta ocorrência de crimes que chegam à Polícia Federal quando já decorrido algum tempo, o que dificulta a coleta probatória. As relacionadas a recursos destinados à pandemia, ao contrário, versam sobre fatos contemporâneos e isso favorece a nossa atividade, oportunizando melhores resultados.
A corrupção aumentou neste período de pandemia?
A corrupção é um fenômeno perene e multifatorial. Mas, no caso específico, as circunstâncias impuseram uma quantidade anormal de compras urgentes e, para muitos, isso se traduziu em oportunidade de ganhos ilícitos. Houve uma demanda emergencial muito expressiva, fazendo com que muitos aventureiros se apresentassem num mercado bastante especializado. Foram identificados muitos fornecedores e seus representantes sem qualificação, sem qualquer afinidade com a área médica, o que gerou um certo mercado de ocasião.
As fraudes foram possibilitadas principalmente pela flexibilização para compras?
Os rigores foram flexibilizados pela necessidade de aquisição rápida. Não era exigível, pelas circunstâncias, o mesmo procedimento habitual de licitação, sob pena de não permitir a aquisição a tempo de materiais, equipamentos e a contratação de serviços. Mas isso não compreende, de forma alguma, autorização para as práticas criminosas evidenciadas nas operações, como pagamento de propina, a compra de produtos sem qualquer perspectiva de entrega ou até mesmo inservíveis, pela péssima qualidade.
A PF segue com foco em contratos com verbas para a pandemia?
O tema continua sendo prioridade da Polícia Federal e, por isso, apesar das restrições e inquietações do momento, que afetam também os policiais e seus familiares, manteremos o máximo esforço para coibir desvios de verbas na área da saúde, especialmente as destinadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19, contando com o apoio de outras instituições, como a Controladoria-Geral da União (CGU), que tem sido decisivo nessas ações.