Superfaturamento em compras, dispensa de licitação sem os devidos trâmites, aquisição de material ineficiente e pagamento adiantado a empresários são algumas das suspeitas que pairam sobre os atos de dois gaúchos que atuam em funções públicas no Pará, Alberto Beltrame e Peter Cassol Silveira. A dupla, que tem histórico de gestão em hospitais e repartições públicas no RS, é alvo de inquérito aberto pela Polícia Federal (PF).
Beltrame é o atual secretário estadual de Saúde no Pará, Cassol é seu ordenador de despesas e secretário adjunto. Os dois se conhecem há décadas, sempre em gerenciamento de hospitais ou em cargos que ocuparam no poder público, na área de saúde.
As suspeitas de irregularidades vieram à tona após a compra de 400 respiradores pulmonares integrados para uso em pacientes com covid-19, feita pela Secretaria de Saúde do Pará. A aquisição dos aparelhos Aeonmed, modelo Shangrilá 510S, fabricados na China, foi marcada por uma sucessão de problemas. Primeiro, na dispensa de licitação, feita de forma apressada e sem correta tomada de preços, segundo a PF. Depois, no pagamento adiantado pelos equipamentos. Em terceiro lugar, a compra foi superfaturada, conforme apontam peritos federais. Por último, os equipamentos não funcionaram.
Beltrame e o governador paraense, Helder Barbalho, argumentam que o poder público não teve prejuízo, porque ingressou na Justiça e conseguiu devolução do dinheiro aplicado na compra antes mesmo do inquérito policial (embora o Ministério Público já tivesse questionado a compra).
Aqui, principais apontamentos da investigação da PF:
Empresa não habilitada a negociar: não foi exigida da empresa vendedora dos respiradores (SKN Brasil Import e Export de Eletro Ltda) capacidade de contratar com o poder público. Ela não possui licença para isso, nem autorização da Anvisa para distribuir ou importar os equipamentos adquiridos.
Pagamento antecipado: apesar de não estar autorizada a importar, distribuir os equipamentos ou contratar com a administração pública, a SKN recebeu R$ 25,2 milhões de forma antecipada do governo estadual do Pará. Sem qualquer formalização do procedimento de dispensa de licitação, a justificar o preço pago, a escolha do fornecedor, a qualidade e a adequação do produto, ressalta a PF.
Etapas puladas no processo de compra: o contrato foi aprovado pelo gabinete do governador e encaminhado à Secretaria Estadual de Saúde do Pará (chefiada por Alberto Beltrame) com orientação de formalização “imediata” da compra dos respiradores. A PF considera que deveria ser o contrário: fala em "inversão total e ilícita do processo administrativo, a começar pelo pagamento antecipado, sem exigência de qualquer garantia".
Compra antes de papéis assinados: ao receber orientação da Casa Civil, o secretário adjunto e ordenador de despesas da Secretaria de Saúde paraense, o gaúcho Peter Cassol Silveira, determinou que a compra fosse formalizada. O processo deveria ter sido o contrário, da Saúde para a Casa Civil, salienta a PF. E o pagamento ocorreu em 27 de março, antes da formalização do negócio por parte da Secretaria de Saúde.
Respiradores inadequados: mesmo com o pagamento feito em 27 de março, só em 4 de maio os respiradores chegaram ao Pará. E eram de modelo totalmente diferente do contratado, o que foi constatado até pela foto anexada ao contrato (que mostra um tipo de aparelho diverso do recebido). Mesmo com a discrepância, “o governador Barbalho recebeu com solenidade a carga dos equipamentos”, que foram imediatamente enviados a municípios do Interior, salienta a PF. Os aparelhos entregues se mostraram ineficazes para o tratamento de pacientes com covid-19. Eram do modelo ZBX B-50 e não do modelo 510S, apropriado para pacientes de covid-19.
Sobrepreço na compra: laudo pericial da PF indica que os respiradores, mesmo sendo de modelo ineficaz para a proposta contratada, foram pagos com sobrepreço de 86% em relação ao custo médio.
Terceirização na importação: a PF descobriu que a importação original dos respiradores chineses foi feita por outra empresa e não pela SKN. A importadora foi a Santa Fé Trading Importação e Exportação Eirelli, cujo dono foi preso por fraude, por ordem da Justiça do RJ. A Santa Fé terceirizou o processo de importação para a SKN, uma possível irregularidade.
Documentos assinados retroativamente: rumores de que a PF investigava o contrato fizeram o secretário Beltrame assinar documentos em que justificava a dispensa de licitação. Ele fez isso com data de 30 de abril, pouco antes da chegada dos aparelhos. Ele teria, inclusive, assinado documentos de forma retroativa, o que pode indicar fraude, segundo a PF.
Ação entre amigos: ao analisar o aparelho celular apreendido com o dono da SKN, André Felipe de Oliveira da Silva, a PF constatou que ele e o governador Barbalho mantinham contatos há 10 anos. Eles inclusive tinham firmado outra contratação milionária (R$ 4,2 milhões repassados pelo governo paraense à SKN para distribuir equipamentos médicos). Os dois trocaram mensagens ríspidas ante o atraso na entrega de respiradores.
Empresa de fachada: uma empresa de um filho de André Felipe de Oliveira recebeu mais de R$ 1 milhão no dia em que o governo estadual do Pará pagou os R$ 25 milhões pelos respiradores. A PF suspeita que pode ser uma firma de fachada "usada para canalizar pagamentos a agentes públicos, já que ela não tem qualquer papel formal na compra dos equipamentos".
Mais de R$ 700 mil não explicados: buscas em imóveis dos envolvidos na compra dos 400 respiradores no Pará resultaram na apreensão de R$ 748 mil em espécie numa caixa térmica na casa de Peter Cassol, o gaúcho que foi trabalhar na saúde do Pará com Beltrame. Ele foi exonerado no dia seguinte e calou diante do pedido de explicação sobre o dinheiro.
Essas são as principais conclusões da Operação Para Bellum, da PF, deflagrada dia 10 por suspeitas de irregularidades na aquisição dos equipamentos. Os federais realizaram dia 23 uma segunda operação derivada da compra de respiradores, a Matinta Perera. Os alvos foram bens de Alberto Beltrame no Rio Grande do Sul. Em apartamento do gaúcho, situado na Avenida Duque de Caxias, em Porto Alegre, foram encontrados 300 obras de arte avaliadas em mais de R$ 20 milhões. Foram também apreendidos R$ 70 mil num imóvel em Xangri-lá.
Contrapontos
O que diz a SKN
Em nota, a SKN afirma que assumiu sozinha a responsabilidade e já ressarciu 90% do valor ao governo do Pará. "Inclusive informando a Justiça em tempo real, o que demonstra a boa-fé e transparência da empresa. A empresa aguarda a devolução da totalidade dos equipamentos para a dissolução do negócio com o fornecedor chinês e o acerto dos valores pendentes". A nota também reflete a posição do dono da empresa, André Felipe de Oliveira da Silva, que está preso.
O que dizem o governador Helder Barbalho e Alberto Beltrame
Em nota, tanto o governador quanto Beltrame falaram que "o recurso pago na entrada da compra dos respiradores foi ressarcido aos cofres públicos por ação do governo do Pará. Além disso, o governo entrou na Justiça com pedido de indenização por danos morais coletivos contra os vendedores dos equipamentos".
Com relação aos quadros apreendidos em sua residência, Beltrame diz que "são fruto de 35 anos de trabalho" e que "foram adquiridas antes de minha gestão como secretário de Saúde no Pará".
O que diz Peter Cassol
Ele não foi localizado pela reportagem.