A história da menina de 10 anos, grávida após ser estuprada pelo tio no Espírito Santo, chocou brasileiros e levantou o debate sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes. O caso, no entanto, não é raro e escancara realidade que se repete diariamente também em outros Estados. No Rio Grande do Sul, somente em 2020, em média, cinco meninos ou meninas entre zero e 14 anos foram estuprados por dia até o mês de julho.
Os dados, fornecidos pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) a GaúchaZH revelam que, entre janeiro e julho deste ano, 1.071 crianças e adolescentes de até 14 anos foram estupradas. Entre as vítimas, 70 crianças de apenas quatro anos no período.
Só no mês de julho de 2020, em Porto Alegre, 14 vítimas de zero a 14 anos foram estupradas. Uma delas tinha apenas um ano. Oito tinham entre 10 e 14, idades com desenvolvimento psicológico mais avançado e melhor condição de relatar para pessoas de confiança que foram vítimas de abuso.
Os números da violência contra a criança e adolescente analisados pela reportagem revelam que mais casos eram informados às autoridades antes da pandemia. A subnotificação, algo que para especialistas é comum nesse tipo de crime, pode ter aumentado ainda mais com o contexto de aulas remotas e menor convívio social.
Em julho de 2020, foram 112 vítimas de estupro entre zero e 14 anos no RS, enquanto no mesmo mês de 2019 foram 240 - queda de 53%. No ano passado, a média de crianças e adolescentes vítimas por dia era sete - maior do que 2020.
Titular da Delegacia de Polícia para Criança e Adolescente Vítima de Delitos de Porto Alegre, a delegada Sabrina Dóris Teixeira lembra que a maior parte dos estupros é cometido por familiares e que os ambientes em que as crianças se sentiriam seguras para contar, como na escola ou de outros familiares, não estão sendo frequentados.
— Temos inúmeros casos, tanto de abuso quanto de exploração sexual, mas pouquíssimos chegam à autoridade policial e órgãos de proteção. A realidade já é a subnotificação. Nessa época de pandemia, a gente suspeita que possa estar ocorrendo queda ainda maior nos registros — observou a delegada.
O crime de estupro de vulnerável consiste na conjunção carnal ou pratica de qualquer ato libidinoso contra menor de 14 anos. A pena, em caso de condenação, é de 8 a 15 anos e pode aumentar se o ato resultar em lesão corporal.
70% dos agressores moram com as vítimas
Em Porto Alegre, no Centro de Referência no Atendimento à Infância e Juventude (Crai), 70% dos atendimentos envolvem violência intrafamiliar, ou seja, o suspeito do abuso é parente da criança ou alguém próximo. Cerca de 50% dos abusadores foram pais ou padrastos, enquanto os demais são outros familiares próximos, como avôs e tios, ou, em menor proporção, desconhecidos. Só cerca de 1% dos abusos atendidos no local foram cometidos por mulheres.
Parceria entre Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, SSP e Ministério Público Estadual, o centro funciona no Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas. A equipe reúne diversas linhas de atenção no mesmo atendimento: assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, pediatras, ginecologistas, advogados e policiais civis.
No Crai, muitos dos casos só vêm à tona anos após o abuso, quando a vítima se sente segura e confortável para quebrar a cadeia do silêncio que envolve muitos desses crimes. Para isso, o Instituto-Geral de Perícias tem equipe especializada em perícia psíquica, com o objetivo de avaliar a credibilidade e o nexo do relato, produzindo relatório que pode servir de prova em investigações criminais. Em outra frente, o caso é encaminhado à Promotoria de Justiça da Infância e a Juventude, que atua na proteção da criança ou adolescente vítima de violência.
Segundo a coordenadora de perícias do Crai, Angelita Maria Ferreira Machado Rios, só em 2019, foram feitas 2,5 mil perícias em crianças e adolescentes vítimas de violência.
— A perícia psíquica colhe o testemunho se a vítima é criança ou adolescente e vai avaliar o estado mental. Depois fazemos um nexo causal, se aquela sintomatologia, aquele relato, passa pelos critérios de credibilidade. Fornecemos o laudo dizendo se existe, ou não, a hipótese de ter ocorrido o abuso sexual — explicou a médica.
De acordo com ela, a melhor forma para os pais perceberem se os filhos foram vítimas passa pela constatação de diversas alterações no comportamento e no diálogo constante entre adultos e crianças (leia abaixo os comportamentos que precisam ser observados).
Plano e prevenção
Em 2019, o governo do RS revisou o Plano Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. O documento estabelece metas de políticas públicas a serem adotadas para reduzir esse tipo de crime nos próximos 10 anos. Entre as quais, a interiorização de centros de atendimento para vítimas. Atualmente, só Porto Alegre e Canoas têm centros de referência em atendimento.
Precisamos ensinar as crianças a se conhecerem, se protegerem, para que saibam diferenciar o que é um toque ruim de um toque bom, os nomes dos órgãos do corpo, que nenhum carinho pode ser segredo
SABRINA DORIS TEIXEIRA
Delegada de Polícia para Criança e Adolescente Vítima de Delitos de Porto Alegre
A assistente social Mariele Diotti, da Coordenadoria de Políticas para a Criança e o Adolescente da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, explica que a pasta é responsável por coordenar e fiscalizar as políticas públicas para prevenir esse tipo de crime. Além disso, capacitar tralhadores da rede de proteção para um atendimento mais capacitado às vítimas.
Na avaliação de Mariele, uma iniciativa que poderia prevenir o crime de abuso é o ensino sexual para crianças e adolescentes em escolas públicas.
— São muitos os desafios e entendo que perpassa a conscientização da sociedade e a educação sexual, do próprio corpo, para crianças e adolescentes para que eles saibam que estão sendo vítimas de uma violência e consigam acionar os responsáveis. Além disso, acredito que deve haver a ampliação das estruturas de atendimento — comenta a assistente social.
A delegada Sabrina, que atende diariamente crianças vítimas, também afirma que um dos principais meios para prevenção passa pela educação.
— Precisamos ensinar as crianças a se conhecerem, se protegerem, para que saibam diferenciar o que é um toque ruim de um toque bom, os nomes dos órgãos do corpo, que nenhum carinho pode ser segredo. Começar a trabalhar isso de uma forma que a criança entenda, de acordo com a fase de desenvolvimento dela, desde pequena, talvez nos ajude que a criança não guarde segredo e saiba pedir socorro — argumentou a delegada.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) disse que possui parcerias com universidades, outras secretarias e ONGs nas quais "o tema é abordado sempre que emerge nas situações educacionais". De acordo com a pasta, as questões de gênero, sexualidade, diversidade aceitação e preconceito são abordadas no Novo Ensino Médio.
A Seduc informou que conta, também, com a atuação do programa CIPAVE+ (Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar) na "prevenção das mais diversas situações de risco que possam ocorrer no ambiente escolar e na vida dos estudantes".
COMPORTAMENTO
Uma das principais orientações para quem está perto da criança é ficar atento ao comportamento dela. Confira algumas possíveis alterações:
- O isolamento da criança deve ser fator de preocupação. O movimento natural nesse período é ela ficar mais agitada, feliz, e querer aproveitar ao máximo o tempo com a família.
- Crianças que estão começando a andar ou falar podem apresentar retrocesso nessa etapa quando são vítimas de algum tipo de violência.
- Mudanças de humor, como irritabilidade, agressividade, choro aparentemente sem motivo ou mesmo a utilização de gestos sexualizados podem indicar que ela está sendo alvo de algum tipo de abuso.
- Outros quadros que precisam ser acompanhados são os depressivos e de ansiedade. É também necessário estar atento aos sintomas destrutivos, como automutilação e pensamentos suicidas. Isso pode se agravar especialmente entre os adolescentes nesse momento, onde eles não têm acesso à escuta.
COMO DENUNCIAR
- Brigada Militar - pode ser acionada pelo 190 em qualquer cidade do RS
- Polícia Civil - Basta ir à delegacia mais próxima ou repassar a informação pelo telefone. É possível utilizar o Disque Denúncia pelo 181. O Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre atende pelo telefone 0800-642-6400
- Disque 100 - recebe denúncias sobre violência contra criança e adolescente em todo o país
- Conselho Tutelar - as denúncias continuam sendo verificadas. Em Porto Alegre, as 10 microrregiões atendem das 8h às 18h. É possível consultar o endereço e telefone de cada uma nesse link. Entre 18h e 8h, o atendimento é realizado no plantão centralizado (Rua Giordano Bruno, 335). Da mesma forma, aos sábados e domingos, o serviço atende das 8h às 20h e das 20h às 8h, também no plantão centralizado. Em casos de emergência é possível ligar para os telefones (51) 3289-8485 ou 3289-2020