Depois de espalhar-se pelo interior do Estado, a facção Os Manos, com base no Vale dos Sinos, avança também para Santa Catarina. A presença de integrantes da organização criminosa que busca a ampliação do tráfico de drogas para o Estado vizinho foi identificada pela polícia em pelo menos oito cidades do sul-catarinense: Sombrio, Balneário Gaivota, Santa Rosa do Sul, Araranguá, Balneário Arroio do Silva, São João do Sul, Praia Grande e Passo de Torres.
Na maioria delas, além do comércio de narcótico, os criminosos gaúchos praticaram homicídios incomuns para os pequenos municípios que fazem margem à BR-101. A reportagem ouviu quase uma dezena de delegados. Todos acreditam que o movimento não se trata de fuga dos criminosos, mas estratégia de expansão para além do Mampituba.
Filiado à organização criminosa, um adolescente gaúcho de 16 anos foi apreendido em Sombrio na última quarta-feira (16) com uma pistola 9mm, no mesmo dia em que GaúchaZH estava no município para entender a presença do grupo criminoso. A Polícia Militar catarinense abordou o garoto quando estava em um táxi, munido de uma arma de difícil acesso, incomum de encontrar na cidade de 30 mil habitantes até a chegada da facção.
Em depoimento, admitiu ser integrante da facção gaúcha e disse que, por estar jurado de morte em Cachoeirinha, na Região Metropolitana, migrou para o sul de Santa Catarina. Em Sombrio, havia recebido uma área da cidade pela qual seria o responsável pelo tráfico de drogas. A apreensão evidencia como células do grupo permanecem espalhadas pelo estado vizinho apesar da repressão policial.
O flagrante aconteceu cinco dias após a organização criminosa ter sofrido o primeiro golpe em sua estrutura. Uma operação da Polícia Civil catarinense na sexta-feira (10) prendeu 19 pessoas que teriam envolvimento com a facção gaúcha no estado vizinho. Foram cumpridas prisões em Sombrio, Balneário Gaivota, Santa Rosa do Sul e Araranguá. No RS, foram capturados integrantes da facção em Torres, Osório, Montenegro e Santa Maria.
A facção teria começado a se estabelecer em Sombrio a partir de março de 2018. Na época, operação da Polícia Civil resultou na prisão de 38 pessoas de uma organização criminosa catarinense. A ação desmantelou a participação do grupo na cidade de 30 mil habitantes e deixou o mercado local livre:
— A partir dessas prisões, entendemos que essa facção gaúcha aproveitou o furo de mercado e começou a angariar espaço no Sul de Santa Catarina, com ideia de expansão. Aproveitaram a retirada de outra organização como oportunidade de crescimento — explica o delegado de Sombrio, Luís Otávio Pohlmann.
O alerta
Nas últimas horas do ano de 2018, um homicídio acendeu o alerta da polícia. Por volta das 22h do dia 31 de dezembro, um homem foi baleado na cabeça enquanto andava de bicicleta na Rua Álvaro Silveira, no bairro Nova Brasilia, em Sombrio. O assassinato, segundo a polícia, de autoria de um criminoso gaúcho, seria para cobrar dívida do tráfico.
— A casa estava cheia, ouvimos três tiros. Achamos que haviam acertado as vacas que estavam no terreno da frente, quando olhamos na janela, tinha um corpo na frente de casa — recorda um morador que diz jamais ter visto um assassinato.
No bairro, na tarde da última quarta-feira era possível ver famílias tomando chimarrão sob a sombra das árvores. Com portas e janelas das casas abertas. Tudo parecia tranquilo. Mas não é mais, admite o senhor, que, como outros vizinhos, contratou segurança privada para fazer ronda na sua moradia a casa 40 minutos.
Começou ficar muito claro que eram execuções. Mostravam crueldade, eram diversos disparos de arma de fogo, com calibres mais potentes e principalmente em via pública, de cara limpa, total despreocupação em ser visto, para intimidar mesmo. Tu percebes no semblante da população a horrorização a partir dos homicídios mais violentos que ocorreram nos últimos meses.
LUÍS OTÁVIO POHLMANN
Delegado de Sombrio
Outro assassinato assustou a cidade em 24 de agosto do ano passado. Um homem foi executado ao caminhar pela Avenida Prefeito José João Scheffer, no bairro Januário, uma das principais da cidade, por volta das 13h30min. Executor e vítima teriam ligação com grupo criminoso gaúcho. Uma moradora diz que a rua estava vazia no momento do crime. Era a hora da sesta da maioria dos vizinhos:
— Achamos que era uma bombinha, um rojão. Nunca tinha visto uma cena daquelas _ conta a idosa de 65 anos que vive há 26 anos na avenida.
— Começou ficar muito claro que eram execuções. Mostravam crueldade, eram diversos disparos de arma de fogo, com calibres mais potentes e principalmente em via pública, de cara limpa, total despreocupação em ser visto, para intimidar mesmo. Tivermos homicídios às 10h e às 13h. Tu percebes no semblante da população a horrorização a partir dos homicídios mais violentos que ocorreram nos últimos meses — relata o delegado Pohlmann.
Entre Sombrio e Balneário Gaivota, a Polícia Civil conseguiu comprovar a participação da facção em cinco assassinatos com o mesmo perfil ao longo de 2019. Durante a investigação, a polícia descobriu que havia uma lista de jurados de morte com 12 nomes.
— Temos elementos que nos levam a crer que eles tiveram participação em outros homicídios em cidades vizinhas, como Balneário Arroio do Silva e Santa Rosa do Sul.
Delegado há nove anos em Sombrio, Pohlmann afirma que a organização criminosa de SC estabelecida na cidade não atuava de forma tão violenta.
— Não se via homicídio dessa forma, havia muita ameaça.
Redução de homicídios em Torres reflete no aumento de mortes no sul de SC
A chegada do facção gaúcha em Sombrio coincidiu com a queda na criminalidade em Torres, no Litoral Norte do RS, a 40 quilômetros do município catarinense. Entre 2018 e 2019, o número de homicídios na cidade caiu 60%: foram oito vítimas em 2019 contra 20 de 2018.
Segundo o delegado de Torres, Juliano Aguiar de Carvalho em 2018 a organização que hoje avança para SC estava em plena disputa de território com outros grupos menores da cidade. Um trabalho conjunto entre a Polícia Civil e a Brigada Militar, com prisão de 20 pessoas e apreensão de armas e drogas, sufocou a ação dos criminosos na cidade e refletiu nos números.
— Conseguimos fazer com que os homicídios por tráfico quase zerassem na cidade. Chegamos aos líderes e ao ponto onde eram guardadas as drogas Ao mesmo tempo, passamos a ter notícia que o grupo havia se mudado para Passo de Torres, Balneário Gaivota e Sombrio. É uma área que é geograficamente própria para isso, tem praias isoladas. Foram em busca da oportunidade de ampliar o negócio e fugir da repressão — avalia o delegado.
O tenente-coronel Luigi Gustavo Pereira, do setor de inteligência da Brigada Militar, afirma que já foi possível identificar essa movimentação dos criminosos para o Estado vizinho. Na avaliação dele, o movimento pode estar ligado ao fato dos setores da segurança pública estarem sufocando sua atuação no Rio Grande do Sul.
Líder preso em Montenegro e intercâmbio de crimes entre RS e SC
A investigação liderada por Pohlmann identificou 20 membros, dos quais 19 já estão presos, da organização gaúcha atuando na região, 90% deles estavam na cidade de Sombrio. Entre os alvos, está um preso na penitenciária de Montenegro, cidade onde, segundo o delegado Paulo Ricardo Costa, a facção também controla a venda drogas. A apuração mostrou que o homem era responsável por coordenar as ações do grupo em Santa Catarina com a ajuda da esposa, que vivia em Sombrio e foi presa durante a operação.
— Quem deveria morrer, quem tinha de cobrar, todas as ordens eram dadas por meio da esposa dele, que estava em liberdade e morava aqui. Era uma espécie de gerente de Sombrio. Tudo era coordenado da penitenciária de Montenegro — explica o delegado.
Algo que facilitou a expansão do grupo, no entendimento da polícia, é o fato desse líder ter nascido em Sombrio, possuir parentes na cidade e conhecer a região. Chegou a se filiar à facção catarinense, foi preso, deixou o grupo e passou a integrar a organização criminosa do Vale dos Sinos.
Conforme Pohlman, outros cinco "subgerentes" atuavam em Sombrio, além de homens de ponta, que trabalhavam no varejo de drogas e executavam os assassinatos. A investigação também permitiu que a polícia identificasse um intercâmbio de crimes em que traficantes gaúchos vão para Santa Catarina, cometem delitos e retornam para o Rio Grande do Sul, o que dificulta o trabalho policial.
Um caso emblemático para a Polícia Civil de SC é do homem que foi preso em Santa Maria. Segundo investigações, ele teria participação em dois crimes em Sombrio e foi o mandante de um duplo homicídio que ocorreu em outubro de 2019 na Rodovia José Tiscoski, em Balneário Gaivotas. Após os assassinatos, fugiu para o interior do Rio Grande do Sul. Dentro da facção, era um dos principais aliados do líder do grupo em Santa Catarina, que está preso em Montenegro.
De acordo com o delegado regional de Santa Maria, Sandro Luis Meinerz, a facção está presente na cidade da Região Central, onde o criminoso acabou ganhando guarida.
Outro integrante, preso em Osório, havia participado de homicídio em Santa Catarina e se refugiado no interior do Rio Grande do Sul. Um terceiro exemplo é um suspeito, preso na Vila São João, em Torres, que, segundo a investigação, traficava drogas no estado vizinho.
Agora, a polícia de Sombrio pretende verificar como a organização vai se comportar com a retirada desses indivíduos e se os crimes irão continuar na cidade.
Facilidade logística e interesse econômico: o que torna o estado vizinho atraente
Formada inicialmente por dissidentes do roubo a banco, os Manos começam a buscar mercado no Estado vizinho, na avaliação do diretor de investigações do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc), Carlos Wendt, para estreitar laços comerciais e facilitar a logística de distribuição de narcótico:
Tem muita droga que entra no RS vinda de Santa Catarina, muito carregamento vindo via rodovia. Da mesma forma, tem muita droga saindo desse Estado para o Exterior pelos portos de Santa Catarina. É um meio de entrada e saída de droga que fica mais longe dos olhos das autoridades gaúchas
CARLOS WENDT
Diretor de investigações do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc)
— Tem muita droga que entra no RS vinda de Santa Catarina, muito carregamento vindo via rodovia. Da mesma forma, tem muita droga saindo desse Estado para o Exterior pelos portos de Santa Catarina. É um meio de entrada e saída de droga que fica mais longe dos olhos das autoridades gaúchas.
Em julho, a polícia apreendeu 4,6 toneladas de maconha no bairro Humaitá, na zona norte da Capital. De acordo com Wendt, as seis pessoas presas no depósito onde estava a droga eram de Santa Catarina e parte da quantia tinha como destino o Estado vizinho.
— Aquele carregamento foi comprado em um consórcio entre facções e a maior parte da droga era para Os Manos — afirma o delegado.
Santa Catarina também tem sido usada por este grupo para lavar dinheiro. A facção tem comprado imóveis de luxo em praias como Garopaba, Florianópolis e Balneário Camboriú. Em setembro, durante a Operação Borgata, o Denarc apreendeu uma casa em Garopaba avaliada em R$ 1 milhão. A investigação revelou que o imóvel, com móveis de alto padrão, era usado por um dos líderes da facção como casa de veraneio.
— Tanto o litoral catarinenses, quanto o do RS, está infestado de traficantes. Temos informações que assim como criminosos gaúchos estão indo pra lá, traficantes catarinenses também estão vindo se esconder no RS. Eles estão se unindo e trabalhando juntos. Não iriam se esconder aqui se não tivessem uma conivência das facções.
À frente da Delegacia de Repressão a Organizações Criminosas (Draco) em Santa Catarina, o delegado Antônio Claudio Joca afirma que da mesma forma em que a facção gaúcha ingressa em Santa Catarina pelo Sul, o Primeiro Comando da Capital (PCC), considerado o maior grupo criminoso do país, chegou no estado catarinense pelo Norte.
— O PCC entrou por Joinville, eles já são bem fortes no Paraná. A gente vem fazendo um trabalho incessante em cima deles e calcula que não chegam a 500 indivíduos no Estado.
Avanço teria apoio do maior grupo criminoso do país
Um delegado gaúcho que prefere não se identificar afirma que a facção gaúcha tem apoio do PCC para avançar em Santa Catarina:
— Pode ser interesse do PCC que este grupo esteja em crescimento por esta região em SC. Até para que juntos possam enfrentar a facção de origem catarinense — frisa.
Há uma orientação do PCC para que haja uma pacificação entre facções aqui no Estado. Na medida que diminui o número de mortes, eles começam a trabalhar de forma mais objetiva, o que inclui a expansão para outros Estados. É uma orientação que vem de cima pra baixo: não matar e se expandir.
CHARLES KIELING
Professor de Tecnologia em Segurança e Gestão Pública da Feevale
Cientista social Charles Kieling, professor de Tecnologia em Segurança e Gestão Pública da Feevale e coordenador do Observatório de Segurança de Novo Hamburgo, responsável por pesquisas junto a grupos criminosos gaúchos, afirma que o interesse da facção se expandir para Santa Catarina não é de agora. Segundo ele, o comando para a ampliação do mercado veio do grupo criminoso que nasceu em São Paulo, que estreitou laços com líderes de facções após a transferência de presos para penitenciárias federais, em 2017.
— Há uma orientação do PCC para que haja uma pacificação entre facções aqui no Estado. Na medida que diminui o número de mortes, eles começam a trabalhar de forma mais objetiva, o que inclui a expansão para outros Estados. É uma orientação que vem de cima pra baixo: não matar e se expandir.
Além de não ter divisão exata das cidades em facções, como já ocorre em muitas regiões do Rio Grande do Sul, Santa Catarina possui o fator econômico que a torna alvo preferencial do grupo criminoso:
— O Estado gera interesse em especial porque tem economia muito forte e organizada. Tem espaço bom para se articular. É um conceito empresarial mesmo. No entendimento deles, Santa Catarina tem um "mercado" mais garantido e lucrativo — avalia.