Erguida em paralelo à Rua Tobago, na Restinga, na zona sul de Porto Alegre, a Escola Estadual de Ensino Médio José do Patrocínio não passa incólume à violência. Situada em área limite entre dois grupos vinculados ao tráfico de drogas, é a única opção para parte das crianças do bairro. Em caso de falta de vagas, quem tem medo de cruzar a linha invisível delimitada pelo crime prefere atrasar o ingresso na escola.
— Cansa de vir mãe aqui e dizer (quando não tem vaga): "então minha criança vai ficar sem estudar. Não posso atravessar para o lado de lá." E, ao mesmo tempo, a gente não pode dar vaga se não tem — conta a professora Klymeia Nobre, que cursou o Ensino Fundamental na escola e hoje é vice-diretora da instituição.
A José do Patrocínio é uma das 169 selecionadas pelo RS Seguro. O programa do governo do Estado elencou as 18 cidades que concentram maior parte dos casos de violência e prevê ações para buscar reduzir a criminalidade nestes municípios.
No segundo dos quatro eixos do programa (leia quadro abaixo), são pensadas políticas sociais, preventivas e transversais. No Estado, 80 instituições estaduais e 89 municipais, localizadas nos bairros mais violentos, passaram a receber iniciativas para tentar prevenir o crime. A meta é evitar que crianças e adolescentes sejam cooptados pela engenharia do tráfico.
— As ações nas escolas são um recorte importante do RS Seguro e não são engessadas. Adequamos de acordo com cada instituição, porque não necessariamente o que funciona em um local terá o mesmo impacto em outro — explica o secretário-executivo do RS Seguro, Antônio Carlos Pacheco Padilha.
Na Capital, cinco bairros fazem parte do programa: Lomba do Pinheiro, Restinga, Rubem Berta, Santa Tereza e Sarandi. Nestes locais, foram selecionadas 38 escolas. A escolha se deu a partir de alguns critérios, como distorção de idade-série e taxas de abandono e reprovação.
Padilha destaca que trata-se de um trabalho transversal, ou seja, inclui outras secretarias e instituições. A missão do programa é direcionar as ações que serão desenvolvidas para as escolas que fazem parte do RS Seguro. Entre as iniciativas que já estão sendo postas em prática em 21 das instituições da Capital está o projeto da Secretaria Estadual de Educação Jovem RS, que promove o empreendedorismo e a inovação nas escolas, em parceria com parques tecnológicos e universidades.
Ações que vêm sendo desenvolvidas há anos por outras instituições, como o Programa Educacional de Resistência às Drogas, da Brigada Militar, ou o Papo de Responsa, da Polícia Civil, também passaram a ser direcionadas para as escolas selecionadas pelo RS Seguro.
— Sentamos e conversamos para centralizar as ações nestas escolas — explica Padilha.
Quanto aos custos, o secretário-executivo destaca que estão diluídos nos orçamentos anuais de cada secretaria e de instituições que executam os projetos.
A área que concentra a maior parte das escolas é a Restinga, com 10 instituições. O bairro da Capital é historicamente marcado pela disputa entre grupos criminosos, que loteiam as ruas para explorar o tráfico. Em abril deste ano, o acirramento entre duas quadrilhas gerou clima de guerra. Escolas e posto de saúde fecharam as portas após tiroteios à luz do dia. Na José do Patrocínio, ao contrário da orientação dos professores, pais correram para buscar os filhos.
— Saiu do controle — recorda a diretora Carla Costa Machado.
O cenário agora é outro: instituições têm funcionado normalmente, sem episódios de guerra nas ruas. Neste ano, conforme o delegado Rodrigo Pohlmann, da 4ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, foram 31 assassinatos na Restinga. Em um deles, em 17 de novembro, uma grávida e um jovem de 18 anos foram mortos. A hipótese é de que quadrilha tenha ordenado o ataque aos rivais.
Os jovens são os que mais estão morrendo. O desafio é evitar que sejam cooptados pelo crime. Implantar iniciativas de esporte, lazer, cultura, saúde. Dar alternativa para essa gurizada.
ANTÔNIO CARLOS PADILHA
Secretário-executivo RS Seguro
— Há aquela referência ruim do traficante empoderado. É preciso tirar a criança daquele meio e integrar numa atividade que possa afastar daquela realidade e permitir que ela tenha outras referências, outros heróis — avalia o delegado Pohlmann.
No RS, entre os anos de 2016 e 2017, os jovens com idade entre 15 e 29 anos representaram metade das vítimas de homicídios, conforme o Atlas da Violência (3.247 de um total de 6.541).
— Os jovens são os que mais estão morrendo. O desafio é evitar que sejam cooptados pelo crime. Implantar iniciativas de esporte, lazer, cultura, saúde. Dar alternativa para essa gurizada. Precisamos criar um escudo para proteção desses jovens — finaliza Padilha.
Reduzir o abandono e a distorção de idade-série são considerados os principais desafios. Na Capital, as 38 instituições escolhidas somam 27,6 mil alunos. Em 2018, 10,2 mil tinham dois anos ou mais acima da idade ideal para a série e 572 abandonaram os estudos. Mantê-los em sala de aula, na visão de quem convive com esta realidade, passa por ter profissionais para áreas como monitoria, biblioteca e supervisão, resolver questões estruturais e aumentar a participação da família.
— A gente consegue ver direitinho aquele aluno que é orientado pela família e aquele desestruturado. Também há a desmotivação. Os problemas que estamos enfrentando enquanto professores, como a questão salarial. Há série de fatores que comprometem a qualidade e acabam na evasão — afirma a supervisora Carla Marcus, que atua na Escola José do Patrocínio.
Um dos programas para tentar reduzir a distorção idade-série e que vem sendo aplicado na José do Patrocínio é o Acelera, pelo qual os alunos conseguem adiantar os estudos, de modo a corrigir a defasagem de idade dos estudantes do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental.
Ter um profissional para atender na biblioteca é uma das demandas na José do Patrocínio. Além disso, a escola tentou implantar em 2019 mais uma turma de 1º ano para receber quem buscava vagas. Segundo a diretora Carla Costa Machado, havia profissional e sala disponíveis para atender 25 novos alunos. Mas diz que a Secretaria de Educação não autorizou (leia abaixo o que diz a Seduc).
— Mães vinham aqui, desesperadas. Se o aluno não vier para cá, não vai para outra escola por essa questão da violência. A duas quadras daqui tem outro colégio, mas eles não podem passar, porque tem tiroteio — reclama a diretora.
Iniciativas
Com 1.750 estudantes, o Colégio Estadual Engenheiro Ildo Meneghetti, também na Restinga, é a escola do RS Seguro com maior número de alunos. A banda marcial é uma das iniciativas que busca mantê-los em aula. Outra iniciativa implantada é o projeto Reunir, Criar e Revitalizar, para criação de uma horta e plantio de árvores. A primeira área revigorada pelos alunos foi o estacionamento por onde entram os professores.
— Os projetos têm objetivo de manter o aluno na escola e promover a cidadania — conta a vice-diretora substituta, Carla dos Santos.
A instituição lida com problemas, como o ginásio, que está com a cobertura esburacada, e o abastecimento de água. A estrutura da caixa d’água foi comprometida por infiltração e interditada em 2017, quando parte do reboco despencou sobre uma professora e um aluno. Faltam educadores para atender disciplinas.
Entre as iniciativas para tentar melhorar o ambiente, a escola recebeu o projeto “6º ano, Tô Chegando”, com objetivo de reduzir o impacto causado pela mudança de série – período crítico para distorção de idade-série e evasão. Nessa fase, as turmas, que antes tinham apenas um professor, passam a ter disciplinas, com educadores diferentes. Na escola, os alunos dos 5º anos foram divididas em grupos, que são levados até os 6º anos para assistir períodos com eles.
O colégio também participa do projeto estadual de diário de classe online, onde o professor faz a chamada por aplicativo. A Ildo Meneghetti fez adaptações, ao inserir a fotografia do aluno. Assim, o educador fica mais familiarizado com a fisionomia do estudante e consegue controlar a frequência.
— Adaptamos projetos de acordo com a nossa realidade — afirma a diretora, Ana Maria Batista.
Portão derrubado
Na Escola Cristóvão Colombo, que atende 720 alunos no bairro Sarandi, na Zona Norte, a falta de segurança é um dos dilemas. No início do ano, um ladrão assaltou uma professora que dava aula no pátio. O criminoso exigiu que ela entregasse o celular e fugiu pulando o muro, sem levar o telefone.
— Quem quer entrar, entra. E o aluno que quer sair, matar aula, sai. A qualquer momento alguém pode pular e vir aqui. A violência talvez seja um dos fatores da evasão, especialmente à noite — avalia a diretora Samantha Candido.
Um dos portões que permite acessar o pátio caiu em agosto. Um campo que era usado nas aulas de Educação Física está desativado devido à falta de recursos para a capina e pelo risco de expor os alunos, pois fica ao lado do portão caído. A escola não possui profissionais de orientação e de supervisão, o que gera acúmulo de funções aos professores e afeta o trabalho com estudantes infrequentes.
— O orientador seria para conversar com os adolescentes. Focar nos alunos com problema de comportamento, que faltam. Ligar para as famílias. A gente faz de tudo um pouco. Muitos veem a escola como lugar para depositar os filhos — afirma a diretora.
Contraponto
A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa da Seduc. Sobre a falta de bibliotecários, a Seduc afirmou a GaúchaZH que docentes que atuavam nas bibliotecas assumiram "atividades de regência de classe" devido aos afastamentos de professores por licenças. Sobre a não autorização para nova turma de 1º ano na José do Patrocínio, a Seduc informa que não recebeu a solicitação.
A reforma da caixa d'água na Ildo Meneghetti está em fase de contratação, conforme a secretaria. A previsão é de que os trabalhos se iniciem em 60 dias.
Para reverter o quadro de evasão e distorção de idade-série nas escolas da Capital, a Seduc informou que lançou, no ano de 2019, três novos programas que irão atuar diretamente no Ensino Fundamental. São eles: RS Alfabetizado, Aceleração RS e 6º ano Tô Chegando.
O primeiro, trabalha a alfabetização com os alunos do 1º ao 3º ano e promove a formação continuada de professores. O segundo visa enfrentar os impactos causados pela transição dos alunos do 5º para o 6º ano e diminuir os índices de reprovação. O terceiro, por fim, tem o objetivo de criar turmas específicas para a correção de fluxo para estudantes do 6º ao 9ª ano. Ao todo, cerca de 10 mil estudantes já estão sendo atendidos na fase de implantação dos três programas.
Além destes três projetos, criados pelo Governo do Estado, ocorrem na Capital e região, mais dois projetos: o Acelera Brasil, em parceria com o Instituto Ayrton Senna, e o Trajetórias Criativas, em parceria com a UFGRS.
O Acelera Brasil atende crianças do 3ª ao 5º ano em sete escolas da Capital. São mais de 150 alunos atendidos. O Trajetórias Criativas atende 600 alunos do 6º ao 9º ano de 17 instituições de ensino da região metropolitana.