A reunião de um grupo de policiais civis às 8h se tornou rotina na delegacia de Estância Velha, em abril deste ano. A força-tarefa se encontrava todas as manhãs e traçava estratégias para tentar desvendar um crime que comoveu o município do Vale do Sinos.
Às 9h do dia 10, pai e filho haviam sido executados a tiros durante assalto a uma joalheria no centro da cidade. Numa cena brutal, a comerciante Elaine viu o marido, Leomar Canova, 59 anos, e o primogênito, Luis Fernando Canova, 35 anos, tombarem mortos ao lado do balcão da loja. Após atirarem nas vítimas, os criminosos fugiram com as joias roubadas.
A investigação, que naquele momento tentava filtrar as informações dos boatos gerados pela divulgação das imagens de câmeras, resultaria na captura da dupla identificada como autora do latrocínio (roubo com morte).
No inquérito remetido à Justiça no dia 31 de maio, a Polícia Civil reúne uma série de elementos para indiciar Rafael Santos Domingues, 19 anos, e Davi dos Santos Mello, 20 anos. Os dois foram presos ao longo das investigações e negam o crime.
O documento gerado pela investigação possui 517 páginas, divididas em três volumes. Além dos dois detidos, duas mulheres e um homem também foram indiciados no inquérito. Nesta sexta-feira (7), os cinco foram denunciados pelo Ministério Público.
As pistas que levaram à identificação
A tragédia da família, que há quase duas décadas mantém o comércio na cidade, comoveu a comunidade. As imagens do crime se espalharam por redes sociais. Nos dias seguintes, o telefone da delegacia tocava insistentemente. Do outro lado da linha, pessoas afirmavam saber quem eram os dois criminosos que apareciam no vídeo. Surgiam nomes. Foi assim que as identificações de Rafael e Davi chegaram pela primeira vez à polícia. Duas pessoas foram até a o prédio pessoalmente para apontar o segundo como autor do crime.
Rafael não era conhecido no meio policial. Residia na Vila Brás, em São Leopoldo, e não tinha antecedentes. Davi deveria estar cumprindo prisão domiciliar por roubo de veículo e trabalhando em um salão de beleza na mesma rua onde morava no bairro Santo Afonso, em Novo Hamburgo. Embora em cidades diferentes, os bairros fazem limite um com o outro. Mas até então não havia nada que os vinculasse.
O elo surgiu com a confirmação de que estiveram juntos em barbearia de São Leopoldo três dias antes do assalto. Fizeram o mesmo pedido: cortar os cabelos e pigmentar a barba em tom escuro.
Para a polícia, era mais do que mudança no visual: seria o preparativo para o roubo. Desde que depararam com as gravações, os investigadores estranharam algumas características e suspeitavam que os ladrões usavam alguma espécie de disfarce.
— A cor da barba se destacava. Cheguei a pensar que fosse postiça — recorda o delegado Márcio Niederauer, que conduziu a investigação do caso desde o dia 15 maio, quando assumiu a delegacia de Estância Velha.
Havia ainda uma diferença na cor das mãos de um deles. O assaltante de camisa rosa parecia ter a mão esquerda mais escura. Por redes sociais, os policiais viram que Rafael tinha uma rosa tatuada ali. A cor poderia ser explicada por algum tipo de maquiagem para cobrir o desenho.
Os dois deixaram os bairros onde residiam. A fuga, antecipada à identificação, intensificou as suspeitas. Sem encontrar a dupla, os policiais ouviram seus familiares. O avô de Davi reconheceu que poderia ser o neto na gravação. A mãe confirmou: "É o meu filho".
— Não tem uma mãe que não possa reconhecer o seu filho — pontuou o delegado regional Eduardo Hartz em coletiva de imprensa no dia 22 de abril.
Naquela manhã em que tiveram os nomes e fotos divulgados pela polícia, os dois já haviam sido reconhecidos por testemunhas do crime e estavam com prisão decretada pela Justiça. Após a coletiva, o volume de denúncias aumentou.
Primeira prisão e encontro de joias
Um dia depois da divulgação da identidade dos suspeitos, uma informação levou a Brigada Militar até uma casa no interior de Portão, onde residia a companheira de um traficante. A suspeita era de que Rafael estivesse escondido ali.
Era noite quando os PMs chegaram em frente à casa e viram alguém correndo pelos fundos. Arrombaram o portão e seguiram na direção do vulto. Cercado pelos policiais, Rafael desistiu da fuga. Levado à Polícia Civil, negou que tivesse cometido o crime, mas se recusou a responder parte dos questionamentos.
A prisão levaria à identificação de duas mulheres por suspeita de envolvimento no crime. Os policiais conseguiram mandado de busca para a casa onde ele foi encontrado. Quando chegaram ao local, dois dias após a prisão, o local estava vazio. A moradora havia se mudado. Revirando o lixo, os agentes encontraram uma caixa de joia. Uma pista de que parte das peças roubadas poderia ter passado por ali.
A polícia descobriu que as mercadorias roubadas poderiam estar com uma amiga da companheira do traficante. Com mandado de busca, seguiram até a casa na Vila Brás, em São Leopoldo. A moradora não estava, mas uma vizinha permitiu o acesso.
Junto a bijuterias, encontraram um pingente dourado com uma etiqueta de preço. Assim como a caixa, a proprietária da joalheria reconheceu que era uma das peças da loja. As outras joias roubadas nunca foram localizadas.
Foragido encontrado na Argentina
Os esforços se voltaram para a localização de Davi. Havia informações de que ele estaria fora do Estado. A busca foi encerrada quase um mês depois, a 550 quilômetros de Estância Velha.
A polícia argentina recebeu uma denúncia de que um foragido brasileiro tentaria passar por San Vicente, na província de Missiones. Os policiais montaram barreira e interceptaram um táxi. Sem documentos, Davi acabou detido. O taxista e familiares do foragido, que estavam com ele, foram liberados.
Informados sobre a prisão, os policiais gaúchos começaram a tentar a extradição do preso. Foi preciso incluí-lo na lista vermelha dos procurados da Interpol. Davi acabou entregue em Foz do Iguaçu, no Paraná, onde ficou sob custódia da Polícia Federal. Uma equipe da Polícia Civil aguardava para ir de helicóptero até lá. Mas o mau tempo impediu a viagem. Os agentes partiram de carro de Estância Velha até a cidade paranaense. O preso chegou ao RS na madrugada de quinta-feira, dia 23 de maio, cinco dias depois da prisão.
Assim como Rafael, Davi se negou a falar sobre o crime. Alegou que estava na Argentina há três meses, na casa dos tios. Mas não soube informar a cidade e nem o nome dos familiares com quem teria morado. A polícia acredita que ele pretendia se esconder no país vizinho.
Embora haja suspeita de que Davi tenha contado com a colaboração de familiares para a fuga, eles não foram indiciados porque a legislação prevê isenção de pena. Questionado sobre o que estava fazendo na Argentina, enquanto deveria estar em prisão domiciliar, respondeu que "estava de férias".
Ele se negou a fornecer material genético para confrontação com o que foi coletado na joalheria. Sem uma confissão, não ficou claro o que motivou os criminosos a atirarem nas vítimas e se havia mais alguém com eles no City usado na fuga. As armas usadas no assalto não foram encontradas. A polícia aguarda o recebimento das necropsias das vítimas.