O assassinato da menina Flávia Silva de Almeida, 12 anos, na zona leste de Porto Alegre, no último dia 17, pode ter reacendido e acirrado a disputa entre facções na Capital. O crime também expõe mais uma vez o elo entre o que ocorre dentro do sistema prisional e a violência nas ruas. Flávia foi morta a tiros no bairro Lomba do Pinheiro. A garota foi alvejada repetidas vezes nas costas e na cabeça.
A Polícia Civil investiga o vínculo desse crime com tentativas de homicídio e o incêndio de um ônibus no bairro Serraria, Zona Sul, na noite de segunda-feira.
A Brigada Militar (BM) relaciona também atentados na Zona Sul – o ônibus incendiado e a morte de duas pessoas são os casos mais recentes – ao ataque a tiros que deixou três mortos e três feridos na Cidade Baixa, na madrugada do último sábado. Foram seis ocorrências em intervalo de 11 dias na Capital.
O delegado Eibert Moreira, da Divisão de Inteligência Policial e Análise Criminal (Dipac), diz que são investigados todos os fatos ocorridos após a morte da menina e verifica relação dos crimes com o caso da Cidade Baixa.
– Sabemos que houve acirramento entre facções. Estamos procurando o motivo. Houve aumento depois do caso da Cidade Baixa. Ali, foi o divisor de águas nesse mês de janeiro. Porém, como no fato cometido contra a menina houve participação do filho de um dos líderes da Vila dos Sargentos, não descartamos a possibilidade de ser sequência – explica.
Mesmo sem vínculo direto com o tráfico, Flávia acabou sendo vítima dele. Um dos motivos para a execução da adolescente foi troca de galeria dentro do Presídio Central. O irmão dela, que está preso, deixou espaço controlado pela facção com origem no bairro Bom Jesus e foi para outro dominado pelos maiores rivais, do bairro Santa Tereza. Os dois grupos protagonizaram sangrenta disputa, com esquartejamentos e decapitações, em 2016 e 2017.
– Ela também havia frequentado uma festa poucos dias antes na região da facção rival. A menina passou a ser considerada uma traidora, porque eventualmente poderia estar passando informações privilegiadas aos rivais – detalha o delegado Rodrigo Reis, da 1ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
Dois dias depois da morte da adolescente, no início da madrugada, um táxi foi atingido por pelo menos 20 tiros, no bairro Serraria, na Zona Sul. O passageiro, funcionário de uma pizzaria, foi baleado, mas sobreviveu. Segundo a polícia, o alvo era um traficante rival, integrante do grupo criado no bairro Bom Jesus, que também domina o tráfico na Vila dos Sargentos.
– O funcionário da pizzaria teve o azar de estar na hora e lugar errados. Eles sabiam que não se tratava do alvo deles, mas desconfiaram da movimentação do táxi e acreditavam que no veículo poderia estar um integrante de facção rival – disse a delegada Roberta Bertoldo, da 2ª DHPP, que estava de plantão naquele fim de semana no Departamento de Homicídios.
Horas depois do ataque ao táxi, dois suspeitos de participação na morte da menina foram presos na Vila Tamanca, no bairro Agronomia, na Zona Leste. Um adolescente de 17 anos, filho de um dos líderes do grupo da Bom Jesus, conseguiu escapar.
No ataque a tiros da Cidade Baixa, que causou pânico entre os frequentadores da boêmia Rua João Alfredo, foram mortos Salmeron Bartz Costa, 28 anos, e Róger Abreu de Oliveira, 24 anos, com extensa ficha criminal e identificados com facção baseada no Vale do Sinos. Além deles, foi assassinada Cassiane Alves Rocha, 21 anos, sem antecedentes.
– Trata-se de desavenças entre dois grupos criminosos que atuam no tráfico. Não tem a ver com disputa de grupos da Zona Sul – diz a delegada Roberta.
Veículo incendiado e rotina alterada
Na segunda-feira, pouco depois de a Polícia Civil anunciar em coletiva que dois jovens e o adolescente, filho de líder do tráfico, seriam autores da morte de Flávia, um ônibus foi incendiado na Vila dos Sargentos. Os criminosos teriam gritado frases de provocação à facção que domina a região enquanto ateavam fogo no coletivo.
Mais tarde, dois homens foram mortos a tiros próximo ao Hospital Vila Nova, também na Zona Sul. As vítimas foram identificadas como Gerson Júnior Bussolo de Fraga, 29 anos, e José Augusto Freitas da Silva, 43 anos. Para o delegado Rodrigo Pohlmann, da 4ª DHPP, foi um caso isolado. Fraga já estaria recebendo ameaças.
– A outra pessoa (Silva), aparentemente, não tinha relação direta com o crime. Pode ter sido morta por estar no local – esclarece o policial.
A violência traz reflexos também para a rotina das comunidades. Após o incêndio do ônibus, na Vila dos Sargentos, a empresa alterou nesta terça-feira (29) o percurso da linha 283 Ipanema-Cavalhada, desviando do trecho onde aconteceu o crime. Assim, moradores tiveram de se deslocar a pé, sob elevadas temperaturas, até o ponto mais próximo. A empresa Trevo afirmou que não há previsão de normalização no atendimento.
– É o mal do pobre – lamentou a doméstica Vilma Terezinha de Souza, 64 anos.
Na manhã desta terça-feira (29), por quase quatro horas, a reportagem não avistou viatura da BM na Vila dos Sargentos. A Brigada havia prometido patrulhamento especial após o ataque. O tenente-coronel Mário Augusto Ferreira admitiu que faltam viaturas. Durante a tarde, barreiras foram feitas.
– Tudo que eu queria era uma viatura em cada vila. É uma questão estrutural. Não tem efetivo para ficar em todo trajeto que o cidadão percorre – ressaltou.
BM vê conexão entre casos na Cidade Baixa e Zona Sul
Para BM, há possível conexão entre as três execuções na Cidade Baixa e os crimes na Zona Sul.
– A queima do ônibus foi, provavelmente, retaliação pelas mortes na Cidade Baixa. Estamos trabalhando com nível de inteligência – afirmou o tenente-coronel André Luiz Córdova, do Comando de Policiamento da Capital.
Os atiradores na Cidade Baixa teriam chegado gritando o nome de facção do Bom Jesus. No ataque ao ônibus, testemunhas contaram que os criminosos fizeram provocações a esse mesmo grupo.
– É uma mensagem bem clara de intimidação de uma facção para a outra – disse o comandante.
O oficial afirmou que a BM intensificou o policiamento nas regiões onde poderia haver revide após o crime na Cidade Baixa. A estratégia é a forma de tentar reduzir execuções vinculadas ao tráfico. Para a Vila dos Sargentos, foram remanejados agentes da Força Nacional para atuar junto ao policiamento local.
– Vamos fazer mais abordagens, até que se tenha o restabelecimento da ordem – disse Córdova. Sobre a redução do policiamento na Capital, durante o período da Operação Verão, o oficial argumenta que isso não teria impactos no aumento da criminalidade, já que também há deslocamento da população para o Litoral.
– É maior o deslocamento de pessoas do que de efetivo. E entre essas pessoas, há criminosos. A gente não reputa a isso o aumento de violência. E sim a uma disputa forte entre facções – disse.
Em Gravataí, na Região Metropolitana, Cristiano Nascimento da Silva, 19 anos, Jair de Moraes Feijó, 31 anos, e um adolescente, de 14 anos, foram mortos no domingo. Nenhum deles tinha antecedentes criminais.
Para o delegado Eduardo do Amaral, não há ligação entre o triplo homicídio com os crimes na Capital. As vítimas não seriam alvo dos criminosos e sim um homem vinculado ao tráfico.
*colaboraram Vítor Rosa e Tiago Boff