Poucos dias após o Judiciário admitir que presos vinculados a facções criminosas estão ocupando vagas no Complexo Penitenciário de Canoas, frustrando expectativa inicial de que isso não aconteceria, um detento foi morto na cela dentro do módulo 3. Os dois fatos não necessariamente estão interligados, mas acendem sinal de alerta sobre as condições das quatro penitenciárias, construídas ao custo total de R$ 117 milhões – na média, R$ 42 mil por vaga –, para servirem de modelo em meio ao caótico sistema prisional gaúcho.
Vencedora do Prêmio Inovare, o mais importante da Justiça brasileira, em 2017, por trabalho desenvolvido na Penitenciária de Canoas 1 (Pecan 1), a procuradora do Estado Roberta Arabiane Siqueira demonstra, mais do que preocupação, certa irritação quando analisa a situação das Pecan 2, 3 e 4. As críticas atingem a Secretaria da Segurança Pública (SSP), a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) e a prefeitura de Canoas.
— A Pecan 1 representou a quebra de paradigma para todos os setores. Agora, em vez de expandir para os demais módulos o que está dando certo, estão fazendo mais do mesmo — afirma Roberta, que até maio do ano passado atuou como agente setorial na Susepe.
De acordo com a procuradora, diferentemente do que ocorreu na Pecan 1, nos módulos 2, 3 e 4 não há a triagem necessária para a ocupação das prisões.
— É necessário fazer pesquisa, incluindo entrevistas, para verificar o perfil dos presos. Familiares já disseram que há até prefeitos (líderes) em galerias, indicando a presença de facções. E facções estão acostumadas a mandar — afirma.
Outra questão relatada por Roberta diz respeito ao acesso à saúde. Ao contrário do que ocorreu na Pecan 1, nos módulos 2, 3 e 4, a ocupação foi feita sem a parceria com a prefeitura de Canoas. Nas unidades, não há equipes com médicos, enfermeiros, dentistas e outros profissionais da área, obrigando os agentes a realizarem escoltas de presos até um posto de saúde no bairro Guajuviras.
Além disso, a atual gestão municipal já teria comunicado à 10ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre o encerramento dos trabalhos também no módulo 1. Por conta disso, a promotora substituta da Promotoria de Justiça de Execução Criminal de Porto Alegre, Gislaine Rossi Luckmann, ingressou com ação judicial para reverter a decisão.
— A questão principal é que, sem líderes de galerias, que geralmente são de facções, cada preso encaminha suas próprias demandas. Então, há trabalho para os agentes penitenciários o tempo inteiro. Isso demanda equipes maiores, com mais servidores e mais investimentos do Estado, o que não está ocorrendo — afirma Roberta.
O que deu certo
Na Pecan 1, a situação ainda é diferenciada em relação aos demais módulos. Com capacidade para 393 presos, a unidade começou a ser ocupada em março de 2016. O funcionamento foi tema de diversas reuniões e deliberações intersetoriais entre a Susepe, o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Procuradoria do Estado.
—Houve ênfase na seleção dos presos, para evitar que integrantes de facções tomassem conta, na alimentação e na higiene, com o Estado suprindo satisfatoriamente essa necessidade, no uso de uniforme, no acesso aos atendimentos de saúde e jurídico e em preparação para a forma diferente de trabalhar dos servidores (na comparação com outras casas prisionais) — diz a procuradora.
Roberta ainda destaca como ponto positivo o fato de quase totalidade dos presos estar envolvida com atividades laborais e educacionais.
— Os detentos ficam ocupados quase que o dia inteiro e os resultados são muito claros. No levantamento que fizemos, o índice de retorno (dos presos, após deixarem a prisão) na Pecan 1 foi de 19%, enquanto que no Presídio Central, é de 70%. Meses depois, na Pecan 1 caiu para 17% e no Central continuava em 70%. Isso, por si só, já justifica o investimento —afirma.
Executivo e Judiciário garantem controle
O secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer, admite a possibilidade de presos ligados a facções estarem ocupando celas nos módulos 2, 3 e 4 do Complexo Penitenciário de Canoas.
— Essa informações tem que ser esclarecida. O Presídio Central tem galerias de uma facção, outra galeria de outra, mas lá na Pecan pode eventualmente ter presos faccionados, porque nós não sabemos a orientação de cada preso. O que está ocorrendo é que lá temos absoluto controle da prisão, com os presos inclusive sendo enquadrados a usar uniformes. Diga-se de passagem, temos uma ótima parceria com a juíza Patrícia.
Responsável pela fiscalização do Complexo Penitenciário de Canoas, a magistrada citada por Schirmer, Patrícia Fraga Martins, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, confirma a presença de presos ligados a grupos criminosos nos módulos 3 e 4, principalmente. Mas também não observa que isso esteja ocorrendo de forma acintosa ou que o Estado tenha perdido o controle da prisão.
—O homicídio desta semana é típico de um lugar onde não há facção, porque onde há os líderes não costumam deixar isso ocorrer. Não sei ainda as circunstâncias da morte, se houve alguma desavença, mas acho que foi um fato isolado — avalia a juíza.
Segundo Patrícia, o homicídio não alterou a rotina da prisão.
— A penitenciária está calma. Inclusive, teve visitação normal ontem (quarta-feira).
Por volta das 6h30min de quarta-feira, um preso foi encontrado morto dentro de uma das celas do módulo 3. O corpo de Cláudio Luiz Oliveira dos Santos, 48 anos, estava pendurado em uma das grades por um fio enrolado no pescoço. Foi a primeira morte dentro do complexo penitenciário desde sua inauguração, em março de 2016.
O caso está sendo investigado pela Delegacia de Homicídios. O titular, Luís Antônio Firmino, começou a ouvir os outros seis presos que estavam na mesma cela.
Município alega dificuldades financeiras
A secretária municipal de Saúde de Canoas, Rosa Maria Groenwald, nega que o município não esteja prestando atendimento aos presos do Complexo Penitenciário e fala em dificuldades.
— É uma questão que nos preocupa muito devido às grandes proporções da penitenciária. Atualmente, são 1.750 presos, a capacidade é para 2,8 mil, e enfrentamos problemas financeiros na área da saúde, com R$ 21 mil em atrasos de repasses do Estado.
De acordo com a secretária, para esse fim, o município recebe R$ 10 mil do Estado e R$ 35 mil da União, enquanto cada uma das duas equipes que atuam no complexo custam R$ 66 mil por mês.
— Para a medicação, recebemos R$ 1,2 mil por ano. Muitos presos apresentam situação de precariedade em relação à saúde, com doenças crônicas, como tuberculose, HIV, hepatite. Com isso, gastamos em medicação e insumos cerca de R$ 15 mil a cada mês. A gente entende toda a situação nas prisões, mas o município não tem como arcar com tudo isso.
Segundo a secretária, atualmente uma equipe de saúde do município atende as Pecan 1 e 2, e outra, as 3 e 4.
O QUE DIZ A SUSEPE
A Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), por meio de sua assessoria de imprensa, comunicou que não se manifestaria em relação ao assunto.