— Já chegou?
A pergunta insistente feita todas as noites pela mãe da estudante de Medicina Veterinária Júlia Raupp, 20 anos, revela a preocupação de quem mora longe da filha. Há três anos a jovem, de Tramandaí, no Litoral, mudou-se para Porto Alegre. O apartamento escolhido fica a três minutos de carro da faculdade. Mas as aulas noturnas trouxeram um dilema.
Por conta da insegurança, entre 22h e 6h, a área onde a universitária reside, no bairro Rubem Berta, na Zona Norte, tem o atendimento bloqueado pela Uber. Conseguir corridas por outros aplicativos também é maratona. Júlia insiste. E espera.
Do outro lado, motoristas temem a violência e rejeitam as chamadas repetidas vezes. Com muita persistência, até uma hora depois, a estudante consegue um carro. Só então pode responder à mãe e dar fim ao ciclo de aflição.
A realidade enfrentada pela jovem atinge, pelo menos, 11 bairros de Porto Alegre, onde residem 390 mil habitantes.
— O jeito é pedir carona para os colegas — conta, logo após desembarcar do carro de outra estudante.
Ter a ajuda dos amigos é a forma encontrada pela universitária para driblar os percalços. Mas Júlia espera que o problema seja temporário.
A rotina de tensão fez a universitária decidir que irá se mudar para a Avenida Manoel Elias, a poucas quadras de onde mora atualmente. Por lá, os aplicativos funcionam e a faculdade fica mais perto.
— Toda noite a mãe fica me ligando para saber se cheguei. Já esperei mais de uma hora para conseguir voltar para casa. Cinco carros do 99Pop cancelaram naquela noite. Eles não querem vir porque acham perigoso. E também não me arrisco a voltar caminhando — conta Júlia.
A Estrada Martim Félix Berta, onde a jovem reside, também passa pelo bairro Mario Quintana. Por ali, uma comerciante de 37 anos enfrenta o mesmo dilema.
Dona de uma pequena confeitaria, planejava ir até a igreja, no bairro Sarandi e retornar para casa. O trajeto se transformou em um teste de paciência. Tentou chamar os motoristas pelo Uber.
Depois que as corridas foram canceladas três vezes, optou pelo táxi. Pagou R$ 58 por uma corrida que custaria R$ 22 pelo aplicativo. Na volta, com os aplicativos bloqueados, pensou que retornaria de táxi.
— A gente não entra nesse horário. Fica perigoso — respondiam.
A comerciante não conseguiu nenhum motorista que aceitasse ingressar no bairro. Sua última tentativa foi apelar para a carona de um vizinho. Assim conseguiu retornar.
— É muito complicado. A gente trabalha e precisa do serviço. Mas aí não funciona.
É também com a boa vontade de um comerciante, de 38 anos, que os clientes de uma lancheria, no bairro Sarandi, precisam contar a partir das 22h. Quem quer voltar para casa, precisa ir até a Avenida Assis Brasil, onde a Uber funciona.
Para facilitar o percurso, em seu carro, o dono da lancheria transporta os clientes até que eles consigam contato com o aplicativo.
— Trazer eles trazem, mas eles não vêm. Às vezes, quero sair, ir em algum lugar e não quero ir de carro, porque vou beber, mas o aplicativo não funciona — reclama.
No bairro Bom Jesus, os moradores ficam receosos em comentar sobre o impacto da violência no dia a dia. Mas um morador, de 26 anos, relata a mesma situação.
Os motoristas de aplicativo temem ingressar no bairro, até mesmo durante o dia.
— Aqui eles entram. E quando entram vêm só até um trecho e voltam.
Quadrilha mira condutores de apps
Quando chegavam para buscar, vinham rapazes e assaltavam. Na maioria dos casos, pegavam dinheiro e rodavam com o carro, que era abandonado
ADRIANO NONNENMACHER
Titular da Delegacia de Furto e Roubo de Veículos
A Polícia Civil investiga um grupo de ladrões que assaltaria especificamente motoristas de aplicativos. Os casos ocorreram entre 2016 e 2017, na Zona Leste, com predominância nos bairros Bom Jesus e Jardim Carvalho.
As duas regiões estão entre as que têm restrição do aplicativo. Conforme o titular da Delegacia de Furto e Roubo de Veículos, Adriano Nonnenmacher, os condutores eram chamados por mulheres amigas dos assaltantes:
— Quando chegavam para buscar, vinham rapazes e assaltavam. Na maioria dos casos, pegavam dinheiro e rodavam com o carro, depois abandonado. Em um dos crimes, o veículo foi vendido para um desmanche — conta o delegado.
Cinco suspeitos de envolvimento nesses casos foram presos.
— Nos últimos meses, não registramos casos — observa o delegado.
Responsável pelo policiamento ostensivo, a BM afirma que faz operações rotineiras em regiões conflagradas da Capital, que contam com o apoio da Força Nacional e Batalhão de Operações Especiais e Guarda Municipal.
Conforme o comandante do 1º Batalhão de Polícia Militar (BPM), tenente-coronel Mario Augusto da Silva Ferreira, a corporação recorre às estatísticas para direcionar as ações.
Na última quinta-feira (3), os policiais foram para as ruas em mais uma fase da Operação Avante para combater roubo e furto de veículos e assaltos a pedestres, entre as 14h às 22h.
Apesar das operações, Ferreira admite que o receio dos motoristas de aplicativos também se deve porque o patrulhamento não é rotineiro em algumas regiões.
— Não são locais com policiamento diário. Há policiamento sistemático, mas não a todo momento. Também não dá para entrar uma viatura qualquer, tem de ser uma viatura mais reforçada e com mais agentes. A gente procura fazer isso para evitar riscos — observa o oficial.
Com patrulhamento limitado e criminalidade em alta, os motoristas acabam não aceitando corridas nesses locais.
— Os motoristas do Uber não têm controle de quando a viatura estará e lá e, por isso, procuram não ir — reforça o tenente-coronel.
"É um direito fundamental", diz especialista
— É um direito fundamental as pessoas poderem circular. Mas acabou se naturalizando no Brasil, por conta do crescimento da violência, que, ou a pessoa tem condição de garantir sua própria integridade física e patrimonial, ou não tem condição de ter isso, na medida em que o Estado não tem condição de garantir a segurança — afirma o sociólogo e professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.
Para o especialista, o caso é um sintoma de uma situação considerada crítica, por conta do recrudescimento da criminalidade.
— Se há certas áreas em que uma empresa como a Uber não presta o serviço é porque situações estão ocorrendo com os motoristas, que fazem com que esses locais sejam considerados de risco. Mas onde está o policiamento? Onde está a identificação dessas áreas pelo poder público? As pessoas que não tem nada a ver com isso e precisam do transporte mais barato acabam impedidas de utilizar um serviço que poderia estar disponível. O Estado não tem controle e está se eximindo da sua responsabilidade.
A professora o departamento de Sociologia da UFRGS e integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania Letícia Maria Schabbach acredita que algumas ações, como a melhoria da iluminação pública, poderia ajudar a reduzir a incidência de crime nesses locais.
— Se o Estado não está conseguindo garantir a segurança nesses locais e tem esse risco do trabalhador sofrer violência é compreensível que se adote essa medida. Mas por outro lado tem os moradores que precisam do serviço. Entendo que é necessária uma intervenção da prefeitura, por exemplo, para garantir melhor visibilidade ao menos nas ruas principais. São possibilidade que tem que ser pensadas porque é muito ruim para os moradores que isso permaneça.
Como funciona a restrição
A partir das 22h os usuários não conseguem mais solicitar uma corrida nas áreas consideradas de risco pela Uber.
Os clientes só conseguem pedir novas corridas a partir das 6h, portanto essas áreas permanecem oito horas por dia sem atendimento do aplicativo.
A reportagem constatou a restrição em ruas dos bairros Sarandi, Rubem Berta, Mario Quintana, na Zona Norte, Bom Jesus, Jardim do Salso, Jardim Carvalho, São José, Lomba do Pinheiro, na Zona Leste e Santa Tereza, Medianeira e Coronel Aparício Borges, na Zona Sul.
A restrição pode não abranger todo o bairro e sim as áreas que foram elencadas pela empresa como de maior risco. A Uber não esclarece os critérios específicos utilizados para definir essas restrições.
Nesses locais, mesmo quando não há restrição, os moradores também relatam dificuldades para que os motoristas aceitem as corridas.
Não há restrição para os usuários que solicitam a corrida em outro ponto da cidade e tem como destino algum desses locais, mesmo após as 22h.
O que diz a Uber
Procurada pela reportagem, confirmou, por meio de nota da assessoria de imprensa, que aplica a medida como forma de "proporcionar mais segurança a motoristas parceiros e usuários".
Segundo a empresa, o aplicativo está programado para "impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específicos". A nota não esclarece quais os critérios específicos adotados pela empresa para definir os locais com restrições.
Conforme a Uber, o aplicativo utiliza outros processos de segurança como a verificação de antecedentes criminais do motorista e o rastreamento via GPS de cada viagem.
Os usuários da plataforma também são verificados, por meio de dados do cartão do crédito e pelo CPF, solicitado dos que fazem o pagamento de suas viagens somente em dinheiro.
A Uber afirma que conta com 500 mil motoristas parceiros e 20 milhões de usuários no país, sem especificar quantos atuam no RS. Confira a nota na íntegra:
"Nossa missão é conectar pessoas a um transporte acessível e confiável, ao toque de um botão. Todavia, infelizmente a violência permeia nossa sociedade. Para proporcionar mais segurança a motoristas parceiros e usuários, nosso aplicativo pode impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específicos. Mas a Uber está permanentemente buscando aprimorar seus serviços. Como anunciado recentemente, a empresa passou a adotar, também no Rio Grande do Sul, a tecnologia de machine learning para identificar riscos com base na análise, em tempo real, dos dados das milhões de viagens realizadas diariamente por meio do aplicativo. A ferramenta, que usa algoritmos que aprendem de forma automatizada a partir dos dados, bloqueia as viagens consideradas potencialmente mais arriscadas, a menos que o usuário forneça detalhes adicionais de identificação. Essa tecnologia foi desenvolvida por uma equipe de cientistas de dados, engenheiros e especialistas para ajudar a antecipar e reduzir a probabilidade de incidentes de segurança."
Recomendações aos motoristas:
— Evitar ruas desertas
— Ao chegar no ponto de encontro, analisar o local e desconfiar de pessoas suspeitas nas ruas
— Não aguardar por muito tempo no carro, caso o passageiro não chegue
— Ao aceitar a corrida, buscar informações com o passageiro do destino e da região do desembarque. A intenção, segundo a BM, é detectar possíveis "situações de risco"
— Caso o motorista desconfie da situação, recomenda-se dar sinal de luz para alguma viatura que esteja passando pelo trajeto. Com isso, o carro pode ser abordado pelos policiais
Fontes: Polícia Civil e BM