Por conta da violência, o aplicativo de transporte Uber tem deixado de operar em vários bairros de Porto Alegre das 22h às 6h. Às 22h, em diferentes regiões da Capital, o aplicativo passa a exibir a mensagem "Infelizmente, a Uber não está disponível na sua área nesse momento". O jeito encontrado pelo dono de um mercado no Rubem Berta é recorrer aos motoristas que ele conhece e que residem no bairro. São eles que atendem, pelo telefone, os chamados do comerciante. Um dos condutores que mora no Rubem Berta trabalha para o aplicativo há três semanas. E já está acostumado a ouvir reclamações dos vizinhos.
— A gente sabe que tem pessoas de bem, que precisam. Mas tem casos em que os caras roubam o celular da pessoa e tentar usar o aplicativo com ele. As pessoas reclamam bastante. Mas entendem também que tem risco — diz.
Outro motorista de aplicativo que trabalhou 18 anos como taxista, boa parte desse período voltado ao atendimento dos bairros, discorda da medida adotada pela empresa. Há pouco mais de um mês trabalhando para a Uber, o condutor, de 52 anos, acredita que as pessoas que residem nas áreas com restrição não podem ser prejudicadas pelos que cometem crimes.
— As pessoas são julgadas porque moram nesses bairros. O Uber trouxe um público que não usava táxi, que são pessoas simples, e elas moram nesses locais. Noventa e cinco por cento são pessoas boas, que precisam do serviço.
Para se prevenir, o condutor adota algumas medidas de segurança especialmente durante a noite. Verifica a nota do passageiro (os clientes são avaliados a cada corrida em uma escala de um a cinco estrelas) e se aproxima com cautela.
— Tem de tomar alguns cuidados. Fui buscar uma mulher na Vila Coreia (entre o Campo da Tuca e o Morro da Cruz) e ela me disse que vários tinham recusado a corrida. Fui chegando perto e vi que era uma senhora, com uma criança. São essas pessoas que precisam que a gente atenda.
O medo da violência faz com que muitos motoristas evitem aceitar corridas no bairro Restinga, na zona sul de Porto Alegre. Apesar disso, a região não apresenta restrições de pedidos para corridas pelo Uber, como ocorre em pelo menos 11 bairros de Porto Alegre. Um condutor relata que "chega com pé atrás" na região.
— Eu sempre acho que vou ser assaltado. O aplicativo manda para qualquer lugar, mas eu evito vir para cá (Restinga). A gente sabe como é difícil, perigoso andar de noite. Teve uma vez que peguei dois rapazes no Centro. Os dois estavam de capuz e sentaram atrás. Fiquei com o coração na mão durante toda a viagem.
Apesar de não haver restrições para Restinga, muitos condutores cancelam as viagens ao verem o ponto de encontro da corrida. É o que relata o caixa de um supermercado Pitinga, de 17 anos, que identifica o problema aos finais de semana, quando vai para outros pontos da cidade aproveitar a folga.
— A gente até consegue chamar, mas não vem nenhum carro — conta o rapaz.
A mesma situação ocorre no bairro Glória. Uma estudante, de 25 anos, identificou a situação pelo menos duas vezes, quando amigas estavam em sua casa na Rua Manduca Nunes.
— Era por volta das 21h. Elas chamavam para voltar para casa e ninguém aparecia. Chamava, chamava e não vinha nenhum carro.
As regras do tráfico
Para um motorista, que trabalha há um ano e oito meses para o Uber, a restrição poderia ser ainda mais rígida.
— A restrição é só depois das 22h e só para ir buscar o passageiro. Tu pode deixar a pessoa no local, sem restrição. Ela sai de onde está, te leva para o bairro e lá comete o assalto — diz, referindo-se que as corridas deveriam restritas para áreas conflagradas.
Por conta do ingresso nessas áreas o motorista diz que se habituou a adotar alguns cuidados. Por proteção, decidiu não colocar película no carro. Em um dos ingressos, na Vila Cruzeiro, na Zona Sul, deparou com homens armados no meio da rua. Depois de baixar o vidro e se identificar, pode passar com o passageiro, sob a escolta de uma motocicleta.
Em alguns pontos, como no Campo da Tuca, a gente entra, mas com janela aberta e luz interna ligada. Aí eles sabem que é aplicativo.
MOTORISTA DO UBER
— É uma situação tensa. Mandam que tu baixe o vidro, ligue a luz interna e deixe o farol baixo. A gente sabe que uma minoria acaba limitando para a maioria. Os bons pagam pelos maus.
A mesma realidade é relatada por outro motorista que trabalha há um ano para a Uber.
— Em alguns pontos, como no Campo da Tuca, a gente entra mas com janela aberta e luz interna ligada. Aí eles sabem que é aplicativo. Os moradores precisam entrar e sair. E a boca também precisa rodar. Lá eles (traficantes) deram ordem para deixar rodar.
Outro motorista relata que foi orientado sobre as "regras da comunidade" pelas próprias passageiras, ao entrar na Vila dos Sargentos, no bairro Serraria. O caso ocorreu no início do ano.
— Elas falaram para abaixar os vidros, ligar a luz interna e baixar os faróis. Na hora que entrei foi tranquilo, pois elas estavam comigo. Já na saída, fui abordado duas vezes. Na segunda vez, um cara me pediu dinheiro. Disse que não tinha e ele me perguntou como elas tinham pago a corrida. Daí falei que foi no cartão. Em seguida, ele me liberou.
Passada a situação, agora, evita aceitar corridas para aquela região.
Apesar de saber que a noite o risco de estar no volante é maior, um motorista, de 31 anos, prefere o horário noturno para percorrer as ruas de Porto Alegre, por conta do menor fluxo no trânsito. Há cinco meses, trocou a profissão de segurança pela de condutor da Uber. Desde então, garante que circula em todas as áreas da cidade, embora considere algumas mais tensas.
— Pra mim o lugar mais perigoso é a Cruzeiro. Ali perto do Postão. Dois já tentaram me assaltar ali, mas eu fugi.
A experiência como segurança dá ao motorista maior confiança para o novo trabalho. Para se proteger adota algumas medidas como não aceitar corridas de pessoas que estão na rua e analisar o perfil do passageiro.
— Prefiro pegar corrida de quem está saindo de prédio ou de casa. Mas claro que tem exceções. Às vezes a pessoa tá na rua porque tá voltando pra casa, do trabalho.
Como funciona a restrição
A partir das 22h os usuários não conseguem mais solicitar uma corrida nas áreas consideradas de risco pela Uber. Os clientes só conseguem pedir novas corridas a partir das 6h, portanto essas áreas permanecem oito horas por dia sem atendimento do aplicativo. A reportagem constatou a restrição em ruas dos bairros Sarandi, Rubem Berta, Mario Quintana, na Zona Norte, Bom Jesus, Jardim do Salso, Jardim Carvalho, São José, Lomba do Pinheiro, na Zona Leste e Santa Tereza, Medianeira e Coronel Aparício Borges, na Zona Sul.
A restrição pode não abranger todo o bairro e sim as áreas que foram elencadas pela empresa como de maior risco. A Uber não esclarece os critérios específicos utilizados para definir essas restrições. Nesses locais, mesmo quando não há restrição, os moradores também relatam dificuldades para que os motoristas aceitem as corridas. Não há restrição para os usuários que solicitam a corrida em outro ponto da cidade e tem como destino algum desses locais, mesmo após as 22h.
O que diz a Uber
Procurada pela reportagem, confirmou, por meio de nota da assessoria de imprensa, que aplica a medida como forma de "proporcionar mais segurança a motoristas parceiros e usuários". Segundo a empresa, o aplicativo está programado para "impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específicos". A nota não esclarece quais os critérios específicos adotados pela empresa para definir os locais com restrições.
Conforme a Uber, o aplicativo utiliza outros processos de segurança como a verificação de antecedentes criminais do motorista e o rastreamento via GPS de cada viagem. Os usuários da plataforma também são verificados, por meio de dados do cartão do crédito e pelo CPF, solicitado dos que fazem o pagamento de suas viagens somente em dinheiro. A Uber afirma que conta com 500 mil motoristas parceiros e 20 milhões de usuários no país, sem especificar quantos atuam no RS. Confira a nota na íntegra:
"Nossa missão é conectar pessoas a um transporte acessível e confiável, ao toque de um botão. Todavia, infelizmente a violência permeia nossa sociedade. Para proporcionar mais segurança a motoristas parceiros e usuários, nosso aplicativo pode impedir solicitações de viagens de áreas com desafios de segurança pública em alguns dias e horários específicos. Mas a Uber está permanentemente buscando aprimorar seus serviços. Como anunciado recentemente, a empresa passou a adotar, também no Rio Grande do Sul, a tecnologia de machine learning para identificar riscos com base na análise, em tempo real, dos dados das milhões de viagens realizadas diariamente por meio do aplicativo. A ferramenta, que usa algoritmos que aprendem de forma automatizada a partir dos dados, bloqueia as viagens consideradas potencialmente mais arriscadas, a menos que o usuário forneça detalhes adicionais de identificação. Essa tecnologia foi desenvolvida por uma equipe de cientistas de dados, engenheiros e especialistas para ajudar a antecipar e reduzir a probabilidade de incidentes de segurança."
Recomendações aos motoristas:
— Evitar ruas desertas
— Ao chegar no ponto de encontro, analisar o local e desconfiar de pessoas suspeitas nas ruas
— Não aguardar por muito tempo no carro, caso o passageiro não chegue
— Ao aceitar a corrida, buscar informações com o passageiro do destino e da região do desembarque. A intenção, segundo a BM, é detectar possíveis "situações de risco"
— Caso o motorista desconfie da situação, recomenda-se dar sinal de luz para alguma viatura que esteja passando pelo trajeto. Com isso, o carro pode ser abordado pelos policiais
Fontes: Polícia Civil e BM