Fabiano de Oliveira Poswar (*) e Roberto Giugliani (**)
Estima-se que a cada ano mais de 100 brasileiros nasçam com fenilcetonúria, uma doença genética rara que, sem tratamento, resulta em deficiência intelectual e em várias outras complicações. Felizmente, hoje a imensa maioria desses bebês poderá viver livre das sequelas da enfermidade, graças à realização de um teste que permite identificá-la ainda no primeiro mês de vida. Trata-se do teste do pezinho, ou triagem neonatal biológica, termo que engloba um conjunto de exames laboratoriais realizados nos recém-nascidos. Esses exames têm por objetivo identificar crianças com risco aumentado de terem doenças potencialmente graves, mas que podem ser tratadas de modo eficiente, desde que o diagnóstico seja feito bem cedo.
Para integrar o teste do pezinho, é necessário que a condição e o exame atendam aos critérios estabelecidos por Wilson e Jüngner em 1968. De forma resumida, é necessário que o fato do diagnóstico ser precoce seja vantajoso em relação ao diagnóstico realizado tardiamente, quando a doença já está claramente manifesta. Além disso, deve haver tratamento efetivo, amplamente aceito, disponível e com indicações claras. O método laboratorial precisa ser aplicável em larga escala e ser custo-efetivo.
A fenilcetonúria, que foi a primeira doença alvo do teste do pezinho, atende a esses critérios e faz parte de praticamente todos os programas de triagem neonatal. Paulatinamente, outras condições foram incluídas, mas com grande variação entre países (por exemplo, são mais de 60 nos Estados Unidos e menos de 10 na Inglaterra). No Brasil, o teste da rede pública inclui pelo menos seis condições (fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, síndromes falciformes, fibrose cística, hiperplasia adrenal congênita e deficiência de biotinidase). Uma lei federal de 2021 determinou a expansão gradual do Programa Nacional de Triagem Neonatal para quase 60 doenças, assim beneficiando milhares de brasileiros a cada ano. Essa lei ainda está pendente de implementação em escala nacional.
Como é feita a coleta
No teste do pezinho, gotas de sangue são coletadas do calcanhar do bebê na unidade de saúde em um papel-filtro, que depois de secar é enviado ao laboratório. A amostra de sangue seco é bastante estável e permite o transporte por longas distâncias e o armazenamento por tempo prolongado. Para garantir a acurácia de alguns dos exames laboratoriais, a coleta do sangue precisa ser realizada após um período mínimo de 48 horas do nascimento, mas preferencialmente ainda dentro da primeira semana de vida.
Um resultado alterado no teste do pezinho não leva automaticamente a um diagnóstico, mas sinaliza a necessidade de uma avaliação adicional. Frequentemente, o diagnóstico é descartado após novos testes. Quando a doença é confirmada, o bebê é encaminhado para manejo especializado, o qual deve estar prontamente disponível. A precisão na triagem e o planejamento cuidadoso são fundamentais para garantir um diagnóstico e tratamento eficazes, minimizando a ansiedade e melhorando os cuidados de saúde da criança.
E o "Teste da Bochechinha"?
No caso das doenças de origem genética, uma alternativa possível é procurar alterações diretamente no DNA. Essa avaliação pode ser feita por uma espécie de cotonete esfregado na parte interna da bochecha (daí o termo "teste da bochechinha", empregado por alguns laboratórios comerciais). O teste, que pode também ser realizado no sangue em papel filtro, avalia simultaneamente centenas de doenças genéticas tratáveis. Esse método, que poderá ser o futuro da triagem neonatal e que vem sendo experimentado em alguns países, não está nos planos imediatos do SUS.
(*) Médico geneticista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e membro do Programa Jovens Talentos da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina
(**) Fundador e diretor da Casa dos Raros e membro titular da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina
Parceria com a Academia
Este artigo faz parte da parceria firmada entre Zero Hora e a Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM) em março de 2022. Uma vez por mês, o caderno Vida publica conteúdos produzidos (ou feitos em colaboração) por médicos da entidade, que completou 30 anos em 2020, conta com cerca de 90 membros de diversas especialidades (oncologia, psiquiatria, oftalmologia, endocrinologia, otorrinolaringologia etc.) e atualmente é presidida pela endocrinologista Miriam da Costa Oliveira, professora e ex-reitora da UFCSPA. Os textos são assinados por um profissional integrante do Programa Novos Talentos da ASRM, que tem coordenação do eletrofisiologista Leandro Zimerman, e por um tutor com larga experiência na área.