Já ouviu a comparação do cérebro com um músculo? Pode parecer curioso, mas especialistas explicam que a ideia faz sentido. Assim como a realização de exercícios físicos para a saúde como um todo, o constante desenvolvimento de atividades intelectuais ajuda a prevenir o declínio cognitivo e doenças associadas à saúde cerebral.
Na prática, funciona mesmo como se fosse um treinamento. Quando deixa de ser exercitada, a área vai atrofiando, literalmente, com o passar do tempo. Ao ficar cada vez menor, também vira um fator de risco para doenças. E é por isso que, como acontece com a musculação na academia ou com a atividade de sua preferência, o treino cognitivo deve ter espaço especial e permanente reservado na agenda.
Os alunos de idiomas da Associação Cristã de Moços do Rio Grande do Sul (ACM-RS), no Centro Histórico da Capital, levam a orientação a sério. No local, encontram-se semanalmente para fazer “ginástica cerebral”. Além de aprender inglês e espanhol, aproveitam para socializar e manter o cérebro ativo.
Também mostram que a preocupação é importante em qualquer idade: há jovens estudantes, a partir de 13 anos, até os “mestres da vida”, como são carinhosamente chamados os alunos de até 83 anos. A cada aula, descobrem uma nova palavra, uma nova dinâmica – e fazem novas conexões neurais.
Aprender uma nova habilidade, participar de jogos que estimulem o raciocínio lógico, integrar discussões em grupo, testar habilidades musicais, de computação ou fazer aulas para praticar um novo idioma. Mais do que aumentar os conhecimentos e se divertir, atividades como essas fazem bem ao estado geral do cérebro.
De acordo com especialistas, o treinamento cognitivo é um dos cinco fatores que protegem e melhoram a performance e saúde cerebral a longo prazo. Segundo o médico neurologista responsável técnico pelo Centro de Pesquisa e Investigação Clínica do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (Inscer), Cristiano Aguzzoli, a importância do treino intelectual fica ao lado de manter uma dieta balanceada, praticar atividades físicas regularmente, controlar os fatores de risco cardiovasculares e se engajar em atividades sociais.
Quando essa combinação não recebe atenção, o declínio cognitivo pode ser uma consequência. Em relação ao treinamento intelectual, o presidente da Sociedade de Neurologia e Neurocirurgia do Rio Grande do Sul e integrante do Grupo de Distúrbios Cognitivos da Santa Casa de Porto Alegre, André Luiz Rodrigues Palmeira, destaca que quando se deixa de praticar habilidades, o cérebro vai perdendo a capacidade plástica.
Quando aprendemos coisas novas, estamos estimulando a formação de novas conexões.
ANDRÉ LUIZ RODRIGUES PALMEIRA
Presidente da Sociedade de Neurologia e Neurocirurgia do RS
— E ele vai se tornando mais vulnerável aos danos. Quando aprendemos coisas novas, estamos estimulando a formação de novas conexões. É o que chamamos de neuroplasticidade. Quando estimulamos, melhor se responde ao processo de desenvolvimento e às doenças que possam surgir — detalha.
Atualmente, há estimativas que apontam a existência de aproximadamente 150 mil gaúchos com alguma demência, dos quais 50 a 60% dos casos são relativos à doença de Alzheimer. O cálculo é do médico geriatra e professor da Universidade Feevale Leandro Minozzo, baseado no número de idosos e a partir de dados do Relatório Nacional sobre a Demência no Brasil (Renade). É um levantamento que preocupa e que deve piorar.
— As projeções todas apontam mesmo para o crescimento do número de casos de demência no mundo todo, em especial em países em desenvolvimento. A região da América Latina é a área do mundo onde se tem a maior prevalência de casos de demência. Também há estudos que mostram de 700 mil a 800 mil casos sem diagnóstico no Brasil, o que torna a situação ainda mais complexa e demandante para toda a sociedade — aponta Minozzo.
Por isso, o treinamento é necessário por toda a vida. Segundo especialistas, a preocupação começa já na infância. E entre os fatores que mais protegem o cérebro nesse sentido é a educação. Há estudos que relacionam a baixa escolaridade com o aumento da chance de um indivíduo desenvolver demência.
— Os anos de educação são primordiais a longo prazo, desde a infância, adolescência, e para adultos jovens. Mais anos de escolaridade estão relacionados à proteção. Em um segundo momento, na fase adulta mais avançada, o treinamento cognitivo é fundamental para ter a mente ativa — afirma Aguzzoli.
Ginástica cerebral por meio do aprendizado de idiomas
Entre as formas indicadas para as atividades intelectuais, está o aprendizado de idiomas. Na ACM-RS, pessoas de todas as idades se encontram semanalmente no Centro Histórico de Porto Alegre para estudar inglês e espanhol. São cerca de 150 alunos, com idades entre 13 e 83 anos. Há, inclusive, grupos focados na terceira idade.
— Depois dos 50 anos, a gente para de ter uma atividade profissional, mas precisa manter o cérebro ativo. E o estudo de um idioma, que não é a nossa língua-mãe, é fundamental para a ginástica cerebral — relata a policial civil aposentada Katia Beirão Haag, 57 anos.
A professora de línguas e coordenadora de idiomas da ACM-RS, Nádua Gallo Muhammad, conta que há turmas online e presencial. Mas, independentemente do formato, o objetivo é seguir com a mesma filosofia:
— O nosso trabalho é humanizado. Temos a missão de olhar para o próximo, acolher. O aprendizado de línguas exercita a mente, mas também traz a socialização como um dos benefícios. (...) A cada aula, é uma nova palavra, um novo texto, uma nova dinâmica.
O engajamento em atividades sociais, outro ponto importante para a saúde cerebral, também entra como um fator decisivo para os alunos, que aguardam ansiosos o momento de se reverem. Para além da sala de aula, tornaram-se amigos.
— Esse grupo é muito importante para todos nós. Nós conseguimos nos aproximar como pessoas. Inclusive, viajamos juntos. Eu considero essas aulas como uma terapia de vida. Conversamos, falamos bobagens, trocamos experiências, e aprender espanhol é um bônus — conclui a estilista aposentada Rejane Penck de Araujo, 69.
Considero essas aulas como uma terapia de vida. Conversamos, falamos bobagens, trocamos experiências, e aprender espanhol é um bônus.
REJANE PENCK DE ARAUJO
Estilista aposentada
Técnicas para treinos cognitivos
Se o treinamento cognitivo se assemelha aos treinos de academia, também existe um jeito certo de realizá-lo? São tantas séries e tantas repetições? Os especialistas explicam que a lógica não é exatamente a mesma, mas alguns pontos merecem a mesma atenção e cuidado que a execução de uma flexão ou agachamento. Um deles é o exemplo do uso do celular e das telas em geral.
— Na maioria das vezes, as pessoas os utilizam como atividades muito passivas. É importante que se busque algo que engaje, tarefas nas quais nos desafiamos a dar o nosso melhor. A tecnologia é bem-vinda, desde que usada de maneira correta. A grande dificuldade moderna é o equilíbrio — sublinha o presidente da Sociedade de Neurologia e Neurocirurgia do RS.
Para o médico do Instituto do Cérebro, esse engajamento pode surgir a partir de afinidades já identificadas pelo indivíduo. Quem realizou aulas de piano na infância, por exemplo, pode aproveitar o interesse pela música e aprender novas técnicas ou instrumentos.
— Eu recomendo aos pacientes que se envolvam em atividades que gostem. Porque se for algo que dê prazer, que eles se engajem, vão voltar a fazer. O melhor treinamento cognitivo é aquele que o paciente já se sente confortável. Há idosos que acabam tendo restrições a explorar esses exercícios, e por isso o mais importante é despertar o interesse da pessoa — comenta.
Mas, para André Luiz Rodrigues Palmeira, aprender coisas novas é a chave para o desenvolvimento. Ao entrar em contato com ações desconhecidas, a mente se mantém ativa e formando as tão esperadas novas conexões.
— Uma pessoa que é boa de fazer palavras-cruzadas não necessariamente vai estar estimulando, porque chega uma hora em que o cérebro se acostuma. A ideia é se propor a realizar atividades que desafiem, estar disposto a estímulos diversos. O cérebro é ávido por informações novas — diz.
Outra dica é a boa e velha leitura. Os especialistas explicam que ela ativa diversas áreas do cérebro, especialmente as visoespaciais e de linguagem, já que, ao ler, há o processamento de informações.
Atenção para quando for necessário buscar ajuda
Conforme Aguzolli, após os 60, 65 anos existe um declínio relacionado com a idade que é esperado. É uma situação fisiológica, e não patológica, associada à perda de memória de curta duração e funções executivas, como atenção e velocidade de processamento do pensamento.
— O que preocupa o neurologista é quando a pessoa está esquecendo mais do que o normal para a idade dela. Aquele esquecimento de uma chave ou carteira, por exemplo, está mais relacionado com a atenção do que com a memória. Mas esquecer algum evento, detalhes de coisas importantes que já passou, sim. Esquecimentos significativos, que atrapalham a gestão daquela pessoa — alerta.
O presidente da Sociedade de Neurologia e Neurocirurgia do RS também complementa que é necessário ficar alerta aos primeiros sinais de dificuldades que atrapalhem o dia a dia. Nesses casos, o indicado é sempre consultar com profissionais.
— Se a pessoa está com problemas de esquecimento, dificuldade com memória recente, fala, raciocínio ou mudanças no comportamento, é necessário buscar ajuda. Dentre as causas de demências e comprometimentos cognitivos, há pontos reversíveis. Se tratados precocemente, têm resultado mais satisfatório e não deixamos progredir.
Dicas para a saúde cerebral
Para além dos fatores genéticos, que não podem ser modificados, os especialistas destacam que há uma série de questões comportamentais e ambientais que podem reduzir a chance de desenvolvimento do Alzheimer e outras formas de demência, além de outros distúrbios neurodegenerativos, como corpos de Lewy, Parkinson e afasia primária:
- Estímulos educacionais
- Prática de exercícios físicos
- Manutenção de alimentação balanceada
- Cuidados com a saúde auditiva
- Cuidados com a saúde visual
- Não fumar
- Evitar o consumo excessivo de álcool
- Cuidados com pressão alta, diabetes, colesterol e obesidade
- Manter a vida social ativa
- Controlar o consumo de ultraprocessados e moderar o consumo de carne vermelha
- Minimizar a exposição à poluição do ar e aquífera
RS terá Plano de Cuidado Integral em Demências
Frente aos números atuais, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) informa que o Plano Estadual de Cuidado Integral em Demências está em fase final e com previsão de lançamento para o mês de setembro. De acordo com a SES, o objetivo é responder às demandas que envolvem o diagnóstico e cuidado em demências em uma perspectiva integral. Detalhes sobre o trabalho serão anunciados no dia 27 de setembro, na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), durante a II Jornada de Cuidado Integral em Demências.