Wendy Mitchell descreve a demência de um ponto de vista pouco conhecido do grande público: o de quem vive com essa condição. A inglesa foi diagnosticada com demência de início precoce em 2014, aos 58 anos, e trabalhou no Serviço Nacional de Saúde até o ano seguinte. O segundo de seus três livros sobre o tema, O que Eu Gostaria que As Pessoas Soubessem sobre Demência (Ed. BestSeller, 272 páginas, R$ 54,90), acaba de ser lançado no Brasil.
Na abertura, em um capítulo destinado aos cinco sentidos, impressiona o leitor saber detalhes da relação da autora com a comida. Wendy não se importa de comer sempre os mesmos pratos: "Não enjoo das refeições como as outras pessoas, simplesmente porque não me lembro que é a mesma da noite anterior". A autora, atualmente com 67 anos, vai além da bem conhecida característica da perda de memória, revelando de que outras formas sua rotina vem sendo impactada.
Wendy mantém um blog em que relata sua rotina. "Comecei este blog para me permitir, em primeiro lugar, escrever todos os meus pensamentos antes que eles se percam", confidencia a escritora, que concedeu entrevista por e-mail a GZH.
O seu diagnóstico de demência de início precoce já tem quase 10 anos. Você quis escrever este livro para compartilhar parte do que aprendeu sobre essa condição. E sobre você, o que aprendeu durante esse período?
A maior coisa que aprendi é sobre o quão pouco se sabe sobre a experiência vivida da demência. Sobre mim, aprendi como minhas características do passado me ajudam a lidar com a demência. Minha resiliência ao longo da vida, sendo altamente organizada e o tipo de pessoa do "copo cheio", tudo me ajudou a lidar com a demência de maneira positiva. A personalidade tem tanto a ver com a maneira como você lida com qualquer coisa na vida, especialmente a demência.
Quais foram as pessoas, os lugares, as coisas mais importantes em que você buscou suporte nos últimos anos?
As duas pessoas mais importantes sempre foram minhas filhas. Elas estão comigo nesta jornada. Sem o apoio e a compreensão delas, eu não teria sido capaz de fazer metade das coisas que fiz. E também algumas pessoas que vivem com demência _ minha segunda família. Sou integrante de uma rede de pessoas com demência, uma organização sem fins lucrativos, que permite que tenhamos voz. Junte pessoas com demência e você ouvirá risadas. Não julgamos uns aos outros, não nos criticamos ou corrigimos. É o lugar onde podemos ser nós mesmos. Meu paraíso de Keswick (no noroeste da Inglaterra) é um lugar que visito todos os meses. Me hospedo na mesma pousada, e os proprietários sabem como tomar conta de mim. Me sinto segura lá. Rotina e consistência são muito importantes para pessoas com demência. E, finalmente, minha comunidade. A comunidade do meu vilarejo me aceita e me inclui em tudo. No princípio, eles me conheciam como "Wendy, a mulher da câmera". Amo fotografia e tiro fotos diariamente, postando-as na página do vilarejo no Facebook. Os moradores me conheceram primeiro e depois descobriram que eu tinha demência, então viram a demência de forma diferente. Primeiro me viram como uma pessoa com um talento, antes de ver minha demência.
Não consigo ler meus livros porque não lembro o que li de uma página para a outra, mas sei que aquelas são as minhas palavras.
WENDY MITCHELL
Escritora
Como você lida com a ansiedade diante do que ainda pode acontecer?
Nunca vivo no futuro porque não tenho controle sobre isso. Já falei com minhas filhas sobre como será o meu cuidado e a minha morte, então coloquei isso de lado e passei a dar conta da tarefa que é viver. Por que se preocupar com algo sobre o qual você não tem controle? Em vez disso, vivo o momento. Aproveito o hoje, e se hoje for um dia ruim, digo para mim mesma que amanhã deverá ser melhor. Enquanto puder me dizer isso, estarei feliz.
Que ideias você tinha a respeito da demência que acabaram sendo descontruídas à medida em que foi enfrentando essa condição?
Como tantos outros, eu pensava que a demência só atingia os mais velhos, mas, desde que fui diagnosticada, conheci pessoas na casa dos 20, 30, 40 anos. A demência não está relacionada com a idade, você apenas está mais propenso a desenvolvê-la à medida em que envelhece. Quando ouvem falar em demência, as pessoas costumam pensar direto nas últimas fases. Bem, precisa ter um começo, um meio. Há tanta vida ainda por ser vivida e aventuras para se ter, que mesmo que seja de forma diferente e com apoio. Como mostra meu livro, e como eu mesma descobri, demência é muito mais do que memória. Muitos de nossos sentidos são afetados, nossa maneira de andar, nossa relação com a comida, emoções, tudo pode mudar. Achava que os médicos sabiam muito sobre demência. Desde então, me dei conta de que eles podem diagnosticá-la e entender o funcionamento do cérebro, mas sabem muito pouco sobre a experiência da doença vivida e da realidade.
Um livro é um registro permanente, para o futuro. Com tantos problemas de memória, qual é a sua relação com seus livros publicados? O que pensa sobre eles?
Sou muito sortuda por ter tido a oportunidade de escrevê-los. Não consigo ler meus livros porque não lembro o que li de uma página para a outra, mas sei que aquelas são as minhas palavras. Olho para elas hoje e me surpreendo com sua existência. Quem diria, quase 10 anos atrás, que eu estaria aqui agora falando com você sobre meus livros? Eu é que não. O mundo desiste de você com o diagnóstico de demência. O que meus livros mostram aos outros é que você nunca deveria desistir de si mesmo, não importa o que aconteça na vida, já que você nunca sabe o que o aguarda ali na esquina.