O quanto a realidade pode influenciar os sonhos? Essa foi a pergunta que pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) buscaram responder ao analisar a vida onírica das pessoas durante a pandemia de covid-19. O estudo apontou que fatores como sexo, idade e classe social podem ter influenciado os sonhos – ou pesadelos – relatados durante o período de emergência global de saúde.
Os pesquisadores utilizaram as 611 respostas obtidas a partir de um formulário online aplicado entre agosto de 2021 e janeiro de 2022 para montar o perfil socioeconômico dos participantes. Também coletaram narrações de sonhos comuns ou marcantes.
As perguntas fechadas – com respostas pré-definidas – deram origem ao primeiro artigo, publicado recentemente na Revista Brasileira de Sociologia (RBS). Os dados foram analisados por Enio Passiani, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS; Harlon Santos, professor adjunto do departamento de Sociologia e Ciência Política da UFMT; e Weslley Moraes, mestrando em Sociologia na UFRGS.
Os participantes puderam marcar mais de uma opção. A maioria (48,9%) afirmou ter tido sonhos associados ao contexto pandêmico. Entre os tipos, os mais frequentes são os sobre o uso de máscara, (43,4%), desastres naturais (42,4%), eventual morte de familiares e conhecidos (30,4%), e insetos ou monstros (29,8%). Vacinação, possibilidade de contrair covid-19 e hospitalização também foram temáticas relatadas.
— Principalmente nos Estados Unidos, há pesquisas que mostram que as pessoas sonhavam muito com desastres naturais, ou com monstros, zumbis, invasão alienígena, e nós replicamos um pouco disso na nossa pesquisa. Não no mesmo grau do que nos Estados Unidos, mas também surgiram. As respostas fechadas tentavam apanhar esse perfil, tentando pontuar quais eram os sonhos mais frequentes — explica Enio Passiani.
Ainda, os pesquisadores pontuaram que os sonhos durante o contexto pandêmico estavam, comumente, associados a sentimentos negativos. Ansiedade (57,8%) é a emoção que mais aparece, seguida de angústia (51,1%), desconforto (50,7%) e medo (34,9%). Satisfação, tristeza, raiva e alívio também são citados.
Sentimentos e faixa de renda
O estudo também cruzou o relato dos principais sentimentos negativos citados com a faixa de renda dos participantes. Mulheres, pessoas mais jovens, de menor renda e escolaridade apresentaram mais emoções ruins, destaca Passiani.
— Mas por que nesses grupos há uma predominância de sentimentos negativos? Em relação às mulheres, acho que é meio evidente. De modo geral, elas ainda são as pessoas que mais se dedicam aos trabalhos de cuidado, inclusive dentro da própria família. Então, a pandemia colocou as pessoas que estavam sob seu cuidado em risco. As pessoas mais jovens podemos deduzir que viram o seu futuro em risco. E as pessoas de menor renda e escolaridade, justamente, são as pessoas de maior vulnerabilidade — justifica.
As maiores proporções dos que afirmam não terem tido sonhos relacionados a desconforto, medo, tristeza e raiva são os que contam com renda superior a quatro salários mínimos.
Acho que essas são achados importantes da nossa pesquisa, porque mostra como a pandemia atingiu a sociedade como um todo, mas não atingiu a sociedade como um todo da mesma maneira. Alguns grupos foram mais atingidos que outros, particularmente esses: mulheres, pessoas mais jovens e pessoas de menor renda e escolaridade
ENIO PASSIANI
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS.
Perfil socioeconômico
A maioria dos participantes são jovens entre 14 e 29 anos, brancos e do sexo feminino, o que combina com o perfil dos universitários no Rio Grande do Sul. Mais da metade dos respondentes ganha mais de quatro salários mínimos. Cerca de 25,5% ganham de dois a quatro salários mínimos e 17,2% contam com um a dois salários mínimos. Apenas 7% apresentam renda familiar de até um salário mínimo. Ainda, 46,3% se intitulam estudantes, 23,7% se identificam como profissionais e servidores públicos e 20,6% profissionais liberais.
— Como a nossa pesquisa é sociológica, ou seja, não está no campo da psicanálise, a nossa pesquisa queria mostrar as possíveis relações entre os pertencimentos – social, econômico, de gênero, racial – e o mundo onírico, em que medida uma coisa está articulada à outra — resume Passiani.