Tragédias como o acidente que matou sete integrantes de uma equipe de remo de Pelotas podem gerar impactos emocionais em toda a sociedade, inclusive em quem não conhecia as vítimas. Na visão de especialistas da área de saúde mental, os moradores da cidade da região Sul, as famílias e indivíduos próximos enfrentarão o chamado luto coletivo.
Ana Maria Dall'Agnese, psicóloga do Núcleo de Luto do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (Cefi), explica que o luto é um processo natural diante de perdas ou ameaças de perdas com características que fazem com que as pessoas passem por um processo de transformação. Os primeiros sentimentos costumam ser de choque e impacto, além de uma certa dificuldade de acreditar na realidade:
— Tem uma diferença entre sabermos o que aconteceu e assimilar tudo que está acontecendo. Conforme vamos assimilando, o impacto do luto vai se revelando e é singular para cada pessoa. Ou seja, cada pessoa vive o luto de uma maneira.
Para Caroline Santa Maria Rodrigues, professora do curso de Psicologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse (Nepte) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), é importante considerar que, mesmo sendo uma experiência individual, o processo de luto envolve aspectos culturais, históricos e familiares. Além disso, está diretamente relacionado com a construção dos vínculos com a pessoa falecida — quanto mais forte for a relação, mais impactante será o sentimento.
Também especialista em emergências, desastres e catástrofes, Caroline acrescenta que o luto coletivo se refere ao compartilhamento dos sentimentos e do pesar das pessoas frente a uma perda. Isso não ocorre necessariamente em função de um vínculo direto com os indivíduos que morreram, mas sim de um laço que a sociedade tem com a coletividade e com a representação de quem faleceu.
— Entendo sim que é um luto coletivo no sentido mais macrossocial, de compreendermos que todos esses jovens faziam parte de um contexto, de uma comunidade, de um projeto social. Então, tem o grupo do projeto social, tem a cidade de Pelotas, tem o Estado do Rio Grande do Sul. Estamos falando de uma série de sistemas que são afetados — destaca Caroline.
Entretanto, a professora afirma que não é possível comparar o luto individual com o coletivo, porque há muita diferença entre quem tinha um vínculo direto com as vítimas e quem lida com esse sentimento pelo significado que aquelas pessoas têm naquela sociedade.
De toda forma, ela enfatiza que o luto coletivo proporciona rituais compartilhados e momentos em que se trabalha pela manutenção da memória dos indivíduos mortos, colaborando para a valorização das vítimas e para o luto individual.
Já Ana Maria aponta que o luto coletivo corresponde a uma situação que faz com que uma sociedade de alguma forma também se transforme, reavaliando a maneira como vive, as escolhas que faz e como é possível se proteger de tragédias que são evitáveis. Sendo assim, o fenômeno requer um olhar generoso, de reconhecimento social àquela dor e de amparo às pessoas que sofreram perdas:
— Se nos transformarmos diante das perdas, aí podemos dizer que se operou um processo de luto. Se não, podemos dizer que estamos compartilhando uma tristeza muito grande e, de certa maneira, um medo de que se repita ou ocorra conosco. Acho que nós estamos vivendo uma tristeza coletiva em termos de sociedade. Mas o luto coletivo acho que vai acontecer talvez na comunidade de Pelotas, nas casas das famílias que perderam, nas pessoas próximas das famílias que perderam.
De acordo com a professora da PUCRS, a manifestação do luto coletivo está muito associada à comoção. Caroline cita como exemplo a tragédia da Boate Kiss, que marcou a história de Santa Maria e do Rio Grande do Sul, e afirma que essas situações geram impactos na memória e na construção do significado, tanto da perspectiva social e cultural quanto da individual.
Acidente na BR-376 causa “inversão da ordem”
A psicóloga do Núcleo de Luto, que também é especialista em atendimento clínico e terapia sistêmica, ressalta que há uma dificuldade muito grande de se colocar no lugar desses familiares, devido à perda de um filho ser um sentimento único. O fato da maioria das vítimas ser jovem, com idades entre 15 e 20 anos, é outro ponto que choca muito a sociedade, conforme Ana Maria:
— Nesse tipo de tragédia, tem uma inversão da ordem lógica e socialmente aceita. Sabemos que as mortes acontecem o tempo todo e a qualquer momento, mas dentro dessa perspectiva de que os filhos é que devem enterrar seus pais, nunca esperamos essa inversão da ordem. O que torna o processo de luto muito mais difícil.
Na visão de Ana Maria, é importante que se tenha um olhar amplo para esse grupo de pessoas. Isso envolve o sistema de saúde, que deve dar uma assistência mais direcionada para essas famílias, e a sociedade, que deve se preparar para amparar e acolher essas pessoas.
— Sabemos que não tem remédio para o luto e para a dor, que é muito importante dentro desse processo, mas, às vezes, as pessoas precisam de cuidados específicos, que passam inclusive pela medicina para controlar aquelas características mais visíveis do luto, como a insônia, o desespero, a dificuldade para se alimentar e todo o mal-estar que ocorre no corpo — aponta.
Também é recomendado, ao invés de utilizar frases de consolo e conformação, se colocar à disposição, permitir que os enlutados chorem e sintam sua dor, bem como dar espaço para que falem sobre o que estão sentindo.
— O luto é um processo coletivo, que precisa ser vivido em sociedade. É preciso que a sociedade dê tempo para essas pessoas processarem o que estão vivendo, para retomarem as coisas da vida. Agora é hora de toda a comunidade sentir e cuidar uns dos outros — finaliza a psicóloga.