Uma torneira aberta pode ser gatilho para um pensamento que se tornou recorrente no Rio Grande do Sul após os temporais que causaram enchentes por todo o Estado: minha casa será novamente alagada?
Transtorno do estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e esgotamento profissional (burnout) são doenças de saúde mental citadas por quem respondeu a uma pesquisa em andamento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
As impressões coletadas até o momento apontam que 9 em cada 10 moradores do Estado estão afetados psicologicamente pela chuva que atingiu o solo gaúcho ao longo do mês de maio. Foram analisadas 1 mil de 2,5 mil respostas a questionários aplicados ao longo de três semanas no RS.
Entre os dados já coletados, se destacam a ansiedade, com 91% dos entrevistados respondendo que têm sintomas; burnout, 60%; e depressão, 50%. A psiquiatra Simone Hauck, coordenadora do estudo, analisou as respostas: há relatos de abalo mesmo em quem não foi diretamente atingido pela subida das águas.
— O que a gente tem visto é que, mesmo voluntários, pessoas que participaram dos resgates, eu ouvi cada relato, por exemplo, 'eu escuto a água da torneira e é como se a enchente estivesse acontecendo de novo'. 'Quando eu vou dormir, eu não perdi nada, mas quando eu vou dormir, eu sonho que a água está chegando no meu apartamento'. 'Eu não consigo acreditar mais que vale a pena conquistar qualquer coisa na vida porque a gente pode já perder a qualquer momento'. E isso afetando pessoas que nem foram tão atingidas, sabe? — diz.
A pesquisadora pondera que parte do público tem esses sintomas de forma passageira, ou seja, eles devem diminuir conforme o tempo da tragédia se distancia, com a resolução de problemas de moradia ou outros transtornos ligados à enchente. As pessoas que seguirem com os sinais devem procurar ajuda especializada para evitar o agravamento do quadro.
Especialistas também alertam que níveis elevados de ansiedade e de depressão podem levar a pensamentos suicidas. Ainda mais preocupante é um dado que coloca o RS no topo de um ranking nada desejado: é o Estado brasileiro com a mais alta taxa de suicídios, quase o dobro da média nacional.
O psiquiatra Flávio Kapczinski, diretor da Rede Nacional de Saúde Mental, reforça que ainda há preconceito contra a população que desenvolve traumas psíquicos.
— Ninguém escolhe ter uma doença, assim como qualquer outra, como ter pneumonia, como ter asma. E ter uma doença mental ninguém decide ter, todos gostariam de ter saúde. E isso precisa ser melhor acolhido pela sociedade, isso precisa ser melhor acolhido pelas famílias e isso precisa ser discutido dentro dos ambientes de trabalho, das empresas, dentro das escolas, universidades e no âmbito da família — diz.
Mapeamento
O objetivo da pesquisa é mapear os bairros de cada cidade que devem ter prioridade em investimento público na área de saúde mental, como a construção de centros de atendimento e a contratação de psicólogos e médicos psiquiatras.
— O direcionamento de recursos, se ele for feito baseado em dados, ele é muito mais efetivo. Alguns bairros muito atendidos, muito atingidos, eles não têm, por exemplo, nenhuma assistência de saúde mental, um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), que já é refinadíssimo, mas mesmo um posto de saúde, eventualmente, com algum psiquiatra ou psicólogo. E esse é um momento que a gente não pode menosprezar isso — complementa Simone
A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre disponibiliza atendimento psicológico e psiquiátrico gratuito, pela internet. É voltado para vítimas das enchentes quanto para os profissionais de resgate. Já o Grupo DOC disponibiliza atendimentos psicológicos e médicos gratuitos para a população gaúcha atingida pelas enchentes. Para realizar a consulta, é preciso realizar o cadastro e aguardar o atendimento no site.