Não há como passar incólume pela catástrofe que atingiu o Rio Grande do Sul. Com variações na dimensão do impacto, todos fomos afetados de alguma forma. É preciso ter saúde mental para lidar com um trauma dessa envergadura. A maior parte da população vencerá o longo processo de dor e luto, garante o psiquiatra e psicanalista Alfredo Cataldo Neto, 70 anos, professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e uma parcela pequena terá complicações. Nutrir esperança em relação ao futuro é fundamental.
– A esperança é a mola para a reconstrução interna e externa. Nós temos que reconstruir fora e dentro. Dentro vai ser muito importante para as pessoas poderem sobreviver – explica o médico, natural de Esteio, na Região Metropolitana.
Leia a entrevista a seguir.
A situação é avassaladora. Imagina uma pessoa perder tudo. Não é só a casa, o terreno e os objetos, mas aquelas pequenas coisas que fazem parte da sua história. É um choque violentíssimo. E, para sobreviver a isso, nós precisamos de saúde mental.
O desastre que vivemos é de imensas proporções, um trauma coletivo. Todos fomos afetados de alguma forma. Como fica a saúde mental, considerando os maiores e os menores impactos sofridos pelas pessoas?
A imensa maioria dos gaúchos foi e está sendo afetada todos os dias por essa tragédia. A saúde mental é uma coisa extremamente instável. Nós precisamos, constantemente, manter um equilíbrio de tudo o que pensamos e vivemos com as questões que estão fora, no meio ambiente. Então, quando há uma catástrofe desse tamanho, todo mundo é abalado, claro que de diferentes formas. Uma coisa é a gente ficar incomodado porque faltou água ou luz, porque não consegue se deslocar. Outra é aquela pessoa que perdeu tudo. A psiquiatria tem feito um trabalho no ginásio da PUCRS (onde funciona um dos abrigos para desalojados). Conversei com muitas pessoas lá. A situação é avassaladora. Imagina uma pessoa perder tudo. Não é só a casa, o terreno e os objetos, mas aquelas pequenas coisas que fazem parte da sua história. É um choque violentíssimo. E, para sobreviver a isso, nós precisamos de saúde mental. A grande maioria das pessoas vai superar essa situação, mas vai passar por um período de choque, em que é normal haver uma série de mudanças psicofisiológicas, medo, luto, raiva. “Por que comigo?” “Por que não com o outro?” Encontrei muitas pessoas se culpando ainda. “Eu devia ter feito isso, eu não podia estar morando ali.” A grande população que não vai ter maiores complicações, que vai conseguir elaborar esse luto, é uma população de menos risco. A população de risco é quem vai sucumbir com essa situação. Pessoas que já tinham problemas psicológicos e, principalmente, problemas psicossociais, sem uma rede de apoio social. É uma situação catastrófica. Quem tinha uma casa para onde se mudar, um parente que acolhesse, já é um outro departamento. Então, vamos ter uma segunda camada, vamos chamar assim, que, graças a Deus, não é a maioria, e depois pessoas que vão desenvolver um transtorno que nós chamamos de estresse pós-traumático, que são pessoas que sobreviveram, mas que estão extremamente chocadas.
Nossa casa é o nosso lugar no mundo, nosso abrigo, nossa proteção. A imagem da casa e destruída, material e simbolicamente, é devastadora.
Com certeza. A casa é a nossa identidade. Ela representa o que nós somos. O que nós somos é a nossa casa. Existem duas casas. Uma casa concreta, onde nós moramos, e a interna. A casa interna é tudo o que nós pensamos, tudo o que nós temos. Esses objetos também foram danificados. Isso não vai depender da prefeitura, do Estado, da União. A própria pessoa, claro, com a ajuda externa, vai ter que reconstruir sua própria casa interna, que ficou muito abalada. Conversei com várias pessoas no ginásio. Elas têm um olhar perdido, um olhar de quem está em choque. Às vezes, elas não têm ainda a dimensão de tudo o que está acontecendo, mas já imaginam, pelas fotos, pela filmagens, pela TV, pelo celular. Então, é uma situação com que estamos muito mobilizados. Se o ser humano tivesse a solidariedade, a empatia que estamos tendo nesses últimos tempos aqui no Rio Grande do Sul, o nosso mundo seria outro. A reação da comunidade, o esforço das pessoas que foram para o front, isso é muito louvável. A empatia é gigantesca. Digo para os meus alunos que a maior aula que estamos dando hoje é a da solidariedade. É muito bonito ver como os jovens estão empenhados. Jovens médicos, inclusive, que tivemos que mandar para casa para evitar a exaustão. A pessoa faz uma identificação por compaixão e não consegue parar. A gente tem que mandá-los para casa porque se não vão se exaurir, vão ficar doentes também.
Penso que a reconstrução é das casas, das cidades, do Estado, mas também de cada um de nós, em termos de estrutura emocional. Como a gente atravessa esse período de luto e como se refaz?
Num primeiro momento, o que a pessoa mais precisa é que alguém a escute. Vivemos num mundo em que a escuta é difícil. Tem até cursos de oratória, mas cursos de “escutatória” não existem. Vejo as pessoas reunidas, e todo mundo quer falar, ninguém quer ouvir. As pessoas atingidas pela tragédia precisam que alguém as escute, sem dizer nada, sem julgar, sem frases do tipo “você foi morar lá do lado do rio, só poderia dar no que deu, queria o quê?”. Essas posições críticas não ajudam em nada. A pessoa precisa que alguém se sente do lado dela e simplesmente a escute. Uma das artes mais difíceis do mundo: a arte de escutar com afeto, prestando atenção, talvez aqui e ali um suporte, não com aquelas coisas comparativas, como “ah, você está se queixando, mas e quem perdeu a vida?”. Isso a pessoa sabe, mas ela quer falar, precisa pôr para fora toda a dor que ela tem. E nós temos que estar ali, escutando firmes, sem fazer juízos de valor, sem criticar. É assim que se reconstitui o mundo interno. Uma pessoa, encontrando esse apoio, vai começar a pensar no que pode fazer, no que pode limpar. Outro dia vi uma coisa bacana, uma pessoa ensinando como se lavam fotografias com barro. Os pets têm uma importância fantástica na vida das pessoas. Temos cães resgatados que vieram junto com os seus tutores para o abrigo. Vejo as pessoas pegando o seu cãozinho para o passeio. Isso tudo é amor, isso tudo é reconstrução.
As pessoas atingidas pela tragédia precisam de alguém que as escute. É assim que se reconstitui o mundo interno. Uma pessoa, encontrando esse apoio, vai começar a pensar no que pode fazer, no que pode limpar.
Tem se falado nas diferenças e semelhanças entre o momento atual e o da pandemia. Que comparações o senhor consegue fazer?
Acho que a gente sempre tende a valorizar, aumentar o que está passando. Várias pessoas me disseram: “É muito pior do que a pandemia”. Nós, que trabalhamos num hospital, podemos dizer que a pandemia da covid-19 foi pior porque tínhamos a morte do nosso lado. Até para ajudar uma pessoa era difícil. A gente não podia se abraçar, não podia chegar perto para atender um paciente. Os colegas se vestiam feito astronautas dentro do hospital. As despedidas eram terríveis. Temos que ter cuidado com a população de idosos. A grande maioria dos que morreram de covid-19 eram idosos. Tinha aquele cerimonial quando a pessoa ia para o tubo (respirador artificial em uma UTI) e fazia a ligação para a família. A gente que estava lá sabia que a maioria dos que iam para o tubo morriam. Foi bem complicado. É semelhante porque há medo. Naquele tempo tinha a diferença de ter que ficar em casa...
E muitos não têm mais casa agora.
Ou têm risco e têm que sair de casa. Então há semelhanças, há diferenças. A gente tende a dizer que é pior agora porque estamos vivendo isso, mas me parece que a pandemia foi pior. Era uma morte solitária. Ninguém podia ficar perto, era uma despedida terrível.
Eram muito mais mortes na pandemia, e agora o grande volume é de destruição material.
Com certeza. (Sobre a maioria das vítimas da covid ser de idosos.) O idoso é frágil, o idoso não tem a mobilidade do adulto, o idoso já tem medo de temporal. Imagina um idoso que agora perdeu a sua casa, não tem para onde ir, está se sentindo frágil, desassistido.
Estamos vivendo em um cenário de destroços e muito lixo. É ainda mais triste porque as pilhas de entulho são formadas pelo que antes estava na casa das pessoas atingidas. Qual o impacto psicológico que a visualização constante disso provoca?
As cenas que estamos presenciando, em alguns momentos, se assemelham às de uma guerra. Uma pessoa que não soubesse o que aconteceu, alguém que chegasse agora ao planeta e descesse aqui, olhasse esses destroços todos, talvez pensasse: houve uma guerra aqui, as pessoas morreram. Realmente, é um impacto gigantesco. Nós temos que reconstruir fora e dentro. Dentro vai ser muito importante para as pessoas poderem sobreviver.
Essas reconstruções são simultâneas?
Exatamente. A não ser que o abalo seja tão grande que a pessoa paralise totalmente, fique em estado catatônico. Aí é uma situação muito grave. Os pacientes psiquiátricos são pacientes de muito risco em uma situação como essa. É muito importante também destacar que isso aí não é loucura, não é fantasia. O que está acontecendo é real. A pessoa não está imaginando. A situação está acontecendo, a pessoa está reagindo como ela tem que reagir. Só que cada um vai ter o seu processo de desenvolvimento. Cada um vai ter a sua maneira de poder passar por essa tempestade toda. Quanto mais bem armado, quanto mais bem assistida a pessoa, quanto melhor a casa dela, quanto mais segura, melhor. As pessoas de maior poder aquisitivo puderam sair de Porto Alegre para suas casas de veraneio. Nada contra. Mas a maioria absoluta das pessoas não têm casa de veraneio. Então nós temos que buscar dignidade social para essas pessoas. Elas têm que ter alimentação, têm que poder dormir, ter repouso, estar em segurança. Uma senhora me disse (no abrigo) que nunca se alimentou dessa forma, com cinco refeições por dia. Temos que dar informação para essas pessoas, e a imprensa é fundamental. Claro que também não se sugere que alguém fique o dia inteiro ouvindo notícias. É muito choque para o seu mundo interno.
É difícil digerir, né?
Tem que tentar fazer outras coisas, continuar com seus contatos sociais. Quando estivermos com os amigos, falando, falando, falando da enchente, acho que é muito saudável mudar um pouco de assunto, o que é difícil. Eu estava com um grupo outro dia e fiz umas cinco tentativas de mudar de assunto, mas ninguém queria mudar de assunto.
Ocorre até uma certa culpa quando a gente tenta rir, se divertir. Mas isso é fundamental, uma dose de normalidade tem que ter?
Sim. Assim como o suporte emocional, o reconhecimento de que a pessoa está sofrendo. E vamos enfrentar. Nós somos gaúchos, “não está morto quem peleia”. Vamos reconstruir o que é possível.
As mulheres falam muito mais, se comunicam muito mais. Os homens têm mais dificuldade, há o preconceito de que eles têm que ser fortes, não podem se mostrar frágeis. Uma pessoa que possa chorar numa hora dessa está lavando a alma.
Qual a importância do senso de comunidade numa hora dessas? Que apoio, que força é possível encontrar no outro, também afetado pela catástrofe?
Vi, no ginásio, pessoas consolando outras. Pessoas mais velhas consolando mais jovens e vice-versa. Se a pessoa te escutar, você vai se aliviar. As mulheres falam muito mais, se comunicam muito mais. Os homens têm mais dificuldade, há o preconceito de que eles têm que ser fortes, não podem se mostrar frágeis. Uma pessoa que possa chorar numa hora dessa está lavando a alma. (Em comunidade) Nós vamos dividir situações. Vou contar que perdi a minha televisão, que ainda não terminei de pagar as prestações. O outro vai falar sobre o que aconteceu com ele. Essas trocas nos tornam mais humanos perto dos outros humanos. Nós diminuímos a dor vendo que a dor é de todos. De uns mais, de outros menos. A pior dor é a dor solitária, a dor do “só eu”. Por exemplo, pessoas que ficaram sozinhas antes do resgate. É uma situação muito difícil. O cavalo Caramelo era um ser solitário em cima de um telhado por dias, ele não tomou aquela água senão teria morrido, não sucumbiu e foi salvo. Isso é um símbolo. Aquela outra senhora que se agarrou a uma antena de TV por 24 horas e foi resgatada. Esses momentos de solidão absoluta numa tragédia são talvez o pior que é enfrentado.
Ter esperança é fundamental?
Fundamental, sim. A esperança é a mola para a reconstrução interna e externa. Esperança, a transmissão de uma mensagem positiva, isso ajuda muito. Pessoas que são muito pessimistas fazem muito mal a elas próprias, inclusive aos outros. Acho até que temos que nos afastar. É melhor estar perto de pessoas que tenham algo bom para transmitir. Pessoas esperançosas têm dentro delas objetos, como nós chamamos em psicanálise, que transmitem essa segurança. As pessimistas não têm. Está tudo já quebrado, tudo já não funcionou, elas não acreditam em nada, nada vai dar certo. E a coisa fica bem mais difícil. Dentro do possível tem que se fazer um esforço, ter uma postura positiva de enfrentamento. Vamos lá. Nós vencemos a covid-19, vacinamos as pessoas, sobrevivemos. O mundo inteiro estava em risco com a covid-19. Não fossem as vacinas, nós teríamos morrido todos.
Sentir e manifestar raiva e indignação é importante?
É natural. “Por que eu? Por que não o fulano lá?” O ser humano tem raiva. Podemos até listar. O que é normal? O choque, primeiro. Aquele olhar que descrevi, parado, quase sem reação. O medo é muito comum, especialmente em idosos e crianças. O luto, que é o natural. A gente vai elaborando, vai se conformando em última análise. A raiva. O ressentimento. “Por que estão me fazendo isso? Eu não mereço. Eu sempre fiz o bem.” A culpa. “Eu não devia ter vindo para cá. Eu não devia ter feito isso.” A vergonha também. A desesperança. É grave a pessoa perder a esperança. O desamparo. Muitos idosos se sentem completamente desamparados por não terem ninguém, ninguém perguntou por eles. O entorpecimento, a confusão, a desorientação, a fadiga, a insônia.
A esperança é fundamental (para manter a saúde mental neste momento). Temos que ter uma atitude positiva, de enfrentamento da situação. Temos que sobreviver e estamos sobrevivendo. Bola para a frente.
Como ficam as crianças nesse contexto?
As crianças dependem dos seus cuidadores, dos seus pais. Vou contar uma história que conto sempre para os alunos. No bombardeio a Londres, na Segunda Guerra Mundial, foi feito um estudo. As crianças, suas mães, seus pais iam para dentro dos bunkers para fugir do bombardeio. Viam-se crianças desesperadas e crianças tranquilas. O que se verificou? Quando o pai e a mãe, apesar de toda essa desgraceira, conseguem manter a calma, uma posição de esperança, de “nós vamos conseguir”, “nós vamos sair dessa”, a criança se tranquiliza. Quando o pai e a mãe não têm essa postura e estão também desesperados, as crianças sucumbem junto. A criança é um espelho dos pais. Isso, na crise, também aparece claramente. Crianças em pânico e crianças tranquilas. Um menino passou perto de mim no abrigo, chamei, comecei a conversar. Ele estava muito tranquilo. Perguntei onde estava a mãe, e ele me apontou. Ela estava olhando para nós. Essa senhora estava tranquila. Me lembrei dessa história toda. Agora não existem mais colégios em algumas áreas, e em outras, para chegar, é impossível. O colégio é muito importante. O encontro com os iguais, com a professora. A professora tem um papel materno secundário importantíssimo. E tudo isso ficou aí no barro, nessa confusão toda.
O som da chuva não é mais tranquilizador como era para muitas pessoas, um convite ao relaxamento e ao sono. Será possível ressignificar outra vez elementos como esse com o tempo?
Vou fazer uma comparação com uma coisa trágica que tem um grande valor afetivo que é o suicídio de uma pessoa. Estudos mostram que, para uma família elaborar um suicídio, elaborar mentalmente um suicídio, leva três gerações. O neto ainda vai estar sob a égide de que o vô se suicidou. Essa comparação é um pouco exagerada, mas eu acho que vai levar muito tempo para a chuva ser uma coisa romântica, para ser motivo de música. Vai levar tempo, vai levar tempo com certeza. Isso vai marcar a nossa história, a história do Estado. E o som dos helicópteros, parece guerra.
Em resumo, o que é fundamental para manter a saúde mental?
A esperança é fundamental. Temos que ter uma atitude positiva, de enfrentamento da situação. Temos que sobreviver e estamos sobrevivendo. Bola para a frente. Acho que a gente tem que ter essa atitude. Não esquecer também essa diferença grande: a reconstrução mais importante não vai ser de casas, terrenos, telhados. Vai ser a reconstrução de cada um, o seu luto, o que perdeu, para poder seguir vivendo.
Esse é um trabalho de muito tempo?
Um luto desse tamanho... Um ano, dois anos. Mas o importante é que a gente esteja no processo, que esse processo não fique trancado. E que a gente possa identificar as pessoas que estão ficando para trás, que não estão conseguindo. Essas pessoas precisam de assistência médica especializada dos colegas psicólogos, dos colegas psiquiatras, dos postos de saúde. Porque aí começa todo tipo de problema.