"A literatura salva, é o que dizem, mas nunca achei que fosse de um modo tão objetivo”, diz a escritora Julia Dantas em uma publicação nas redes sociais na qual agradece os amigos que estão vendendo livros para ajudá-la a recuperar a casa. A autora de Ela Se Chama Rodolfo, livro de 2022 premiado pela Associação Gaúcha de Escritores e pela Academia Rio-Grandense de Letras, é mais uma das pessoas que viram seus lares sendo subjugados pela enchente no Rio Grande do Sul.
A porto-alegrense de 38 anos foi forçada a sair de seu apartamento no térreo por conta da água que vertia das paredes e do chão no bairro Menino Deus. Quando voltou, 10 dias depois, andou sobre um piso quase invisível sob a crosta de lama e deparou com uma geladeira tombada e móveis herdados da família inchados pela água intrusa. Restaram os armários aéreos, os pertences que deixou com os vizinhos do segundo andar e alguns livros úmidos que estão abrigados na casa de amigos para secar.
— A água saiu e ficou a sujeira. Encontrei objetos fora do lugar, porque tudo se mexeu ao longo da semana em que a água ficou ali dentro. As coisas que viraram de ponta-cabeça e tu não consegue nem entender como aquilo aconteceu — descreve a autora formada em Jornalismo e doutora em Escrita Criativa.
Se algum dia eu virar cineasta e fizer um filme de terror, essa cena estará lá: a água brota por entre as junções do piso de madeira em manchas escuras mínimas que rapidamente ganham tamanho e se espalham indiferentes aos panos e às folhas de jornal com as quais se tenta suprimi-las.
JULIA DANTAS
Trecho de “A Casa Alagada”
No contraste com as obras literárias que viraram gosma no chão da sala, Julia tem criado novas palavras para salvar a si mesma da confusão de sentimentos do momento e também para deixar registrado o impacto que esse evento histórico tem no cotidiano mais íntimo das pessoas. Os textos, cujos trechos correram a internet nas últimas semanas, estão publicados no blog Passagem Dois.
— Escrever organiza um pouco as coisas e torna possível lidar, fazer planos objetivos para cuidar da casa. É um momento em que temos problemas de ordem muito prática, além dos conflitos existenciais de estado de espírito. Para resolvê-los, tem que ter algum grau de estabilidade emocional, e escrever funciona — explica Julia.
A escritora tem recebido relatos de que seus escritos sobre a enchente estão ajudando outras vítimas a se sentirem representadas, em alguma medida:
— Recebi várias mensagens muito queridas de “Ah, que bom que tu escreveu, porque passei por isso e não conseguia explicar para os outros” ou “Alguém que conheço passou por isso e agora entendo melhor”. Me dá uma sensação de que ajudei as pessoas desta forma.
Olhares sobre duas tragédias
O isolamento forçado, a falta de alguns produtos no supermercado, o luto e indignação pelas vítimas e a sensação de que ainda vai demorar para o problema ser resolvido são características que combinam tanto com a pandemia da covid-19 quanto com a catástrofe climática que o Rio Grande do Sul passa.
Esse paralelo não passou despercebido por dois amigos de Julia: os jornalistas Raphaela Donaduce Flores e Luís Felipe dos Santos. Ambos a contataram para propor um Diário da Enchente, inspirado no Diário da Pandemia que a escritora organizou há alguns anos, reunindo cerca de 170 relatos de moradores da Capital e montando um retrato daquele período dramático.
Já no ar, Diário da Enchente é atualizado diariamente com textos de diferentes colaboradores. O trio está recebendo e selecionando relatos pelo e-mail diariodaenchente@gmail.com.
— É bacana essa ideia de uma “colcha de retalhos”, porque são sentimentos de diversas pessoas que costuramos juntos e, assim, dá uma sensação deste momento coletivo. O projeto recém começou e vai longe. Teremos muito tempo para escrever, ler e elaborar tudo isso que estamos vivendo — avalia Raphaela
Leia a entrevista com Julia Dantas
Qual é sua opinião sobre o Diário da Enchente?
É importante porque ajuda quem escreve, ajuda quem lê e ainda é um registro histórico relevante da pior enchente do Estado – espero que continue sendo “a” pior enchente do Estado, e não “uma das”. Raphaela e Luís toparam fazer o operacional, porque estou sem condições nesse momento.
Em 2020 você fez o projeto Diário da Pandemia. O que a motivou?
Lembro de pensar que o nosso mundo iria reduzir, que a gente iria ficar em casa. Então queria fazer algo que fosse ligado a esse território alcançável do momento, que era Porto Alegre. Comecei o diário um dia antes das escolas fecharem e durou mais de 200 dias. Via como o jornalismo dava conta de narrar os grandes fatos, mas era importante que houvesse registros do cotidiano. A tragédia se desenrola nesse grande cenário nacional, mas e a pessoa que ainda não foi afetada, acorda e faz o quê? É importante ter essa crônica histórica do dia a dia, de como a pessoa comum enfrenta esses grandes eventos.
É a primeira vez que conto a história inteira de uma vez só. Me emociono, mas não choro. Vinte minutos mais tarde, me vejo no supermercado secando lágrimas na frente dos congelados porque olho para uma caixa de lasanha e penso na que ficou na nossa casa, agora abandonada sem eletricidade
JULIA DANTAS
Trecho de “A Casa Alagada”
Dá para fazer um paralelo entre os dois momentos, a pandemia de 2020 e a enchente de 2024?
Mais uma vez, em pouco tempo, estamos vivendo um momento histórico gigante e exaustivo. E que chega, novamente, com a promessa de que daqui para frente as coisas terão que ser diferentes. Me pergunto se será assim, porque na pandemia tinha aquela ideia de “depois disso seremos todos melhores e mais solidários” e não fomos, né? Então também não sei se o Estado vai ficar melhor depois desta enchente.
De que forma a cena literária a abraçou neste momento?
No mutirão de limpeza, uma porção da cena literária da Capital estava dentro da minha casa, retirando meus livros para levar para suas residências para secar, foi muito bonito. A TAG, que em dezembro publicou Ela Se chama Rodolfo, agora está vendendo o kit da obra para o público geral, algo que normalmente não fazem, e vão reverter a renda para mim. Também a Leila Teixeira, que tem um projeto de lives com escritores chamado Labirintos da Ficção, adiantou a minha transmissão de outubro para junho, para que essa renda venha agora. E meus amigos escritores, Sara Albuquerque e Gabriel Bortolini, estão vendendo livros para depois me mandar o dinheiro.
Você escreveu que perdeu a poltrona verde que escolheu a dedo com seu companheiro, assim como todos os afetados estão perdendo coisas de valor sentimental. Essas perdas “menores” também merecem o seu espaço de luto?
As perdas sentimentais são as que mais pegam a gente. Uma guria que me escreveu depois de ler A Casa Alagada me disse: “Minha mãe não fica se lamentando pela geladeira, pelo colchão, mas de vez em quando ela está em silêncio e do nada diz ‘Tinha congelado o feijão’”. Me identifico com isso porque são essas pequenas coisas, tristes e até cômicas, que confirmam a interrupção total das nossas vidas. Também tem as outras matérias da casa que é muito mais difícil perder, as fotos, as cartas, um monte de coisas que você não consegue comprar de novo. A escrita ou outras formas de arte podem ajudar. Dá para tentar reconstituir essas coisas em palavras.