Por Edson Luiz André de Sousa
Psicanalista. Autor, entre outros, de “Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia” (2022)
Muitas são as imagens que guardaremos por anos, senão séculos da inundação que arrasou grande parte do Rio Grande do Sul. As cidades conservam as feridas das destruições que sofrem. Mesmo que estas possam ser reconstruídas, as cicatrizes permanecem como um texto vivo que interpela as gerações que se seguem. Por que aconteceu? Como aconteceu? Como sobreviver depois?
Até hoje é evocado, por exemplo, o terremoto de Lisboa em 1755 ou, mais recentemente, aqui no Brasil, o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho (MG), que deixaram um rastro de terra arrasada. A história contabiliza a destruição e nem sempre anota e guarda na memória as forças de resistência que surgem nesses cenários. Uma que deveríamos guardar para sempre, mesmo que não fique registrado nos livros de história, é a do cavalo Caramelo, que resistiu por quatro dias e meio no telhado de uma casa completamente inundada no bairro Mathias Velho, em Canoas, sem alimento nem água potável. Mas por que essa imagem ganhou tanta força?
Caramelo não é só um cavalo. Ele materializa o desejo de sobrevivência e a força de vida de milhares de pessoas que enfrentaram as situações mais adversas para encontrar alguma saída diante desta catástrofe. Caramelo deu sentido ao ato de espera apostando em uma ajuda que chegaria a algum momento, uma espera ativa que aciona evidentemente um pensamento sobre esperança. Alias, é exatamente isto o que propõe Ernst Bloch logo na abertura de sua monumental obra sobre utopias Princípio Esperança. Bloch escreve: “O ato de esperar não resigna: ele é apaixonado pelo êxito em lugar do fracasso. A espera, colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco trancafiada em um nada”.
Caramelo é o desenho mais vivo da esperança, e por isso seu resgate teve um sentido simbólico. A imagem de Caramelo no telhado de uma casa capturou com precisão uma correnteza contra a inundação, pois ali a vida se fez, de forma comovente, mais forte do que a destruição. Caramelo aciona também as energias solidárias de outras milhares de pessoas que espontaneamente entraram em cena como voluntários para acolher tantos desamparos.
Solidariedade é a palavra-chave neste momento. Digo isto porque penso que, paradoxalmente, não foi só a louvável habilidade e destreza técnica das equipes de resgate que salvaram Caramelo. Foi ele que, de certa forma, apontou uma saída na palavra esperança. Foi, portanto, um salvamento mútuo: salvamos Caramelo e ele nos salvou. Lembrei muito de outro cavalo, o do escritor russo Anton Tchecov que, no seu conto Angústia, descreve o desespero de um cocheiro assolado pelo luto com a morte de sua esposa. Na impossibilidade de compartilhar com seus passageiros apressados que não tinham tempo para escutá-lo, foi diante de seu cavalo, quando retorna para casa, à noite, que ele pôde compartilhar a sua dor.
Um trauma incalculável com tantas vidas perdidas e tanta destruição. Estamos vivendo cenários desesperadores, desamparos ainda em busca de palavras que deem contorno a tantos sofrimentos. Podemos encontrar algumas dessas palavras na história de três mulheres que tiveram a mesma força do Caramelo. Não tiveram o mesmo destaque que a imagem comovente do equilíbrio tênue e obstinado no fio de um telhado, mas nos transmitem outras estratégias de equilíbrio. Ao ouvir a história das três pensei que acontecimentos como esses poderiam nos ajudar a perceber que, para não naufragar, é preciso resistir e sonhar juntos. Que outro mundo se poderia construir, se essa onda de solidariedade continuasse efervescente?
Caramelo é também Viviane, Janete e Delci.
Viviane Blak, 46 anos, moradora de Candelária, enfrentou os redemoinhos do Rio Pardo por 30 minutos. A descrição dela das estratégias de sobrevivência é impressionante. Sua força talvez tenha vindo do que pensou ali naquele momento: “Não vou deixar o rio me levar”. Arrastada pela correnteza, resolveu justamente nadar “ao contrario”. Metáfora potente que indica por onde a vida tem, por vezes, que seguir: contra a corrente. Anotei uma frase dela que, acho, diz muito das milhares de pessoas vítimas desta inundação: “Já passei por tanta coisa, não é afogada que vou morrer”.
Janete Zilio, 57 anos, de Muçum, foi arrastada por 18 quilômetros no Rio Taquari. Quando a água chegou à sua casa e arrastou tudo o que havia pela frente, se agarrou em uma folha de zinco e seguiu rio abaixo como uma jangada, enfrentando uma sucessão de quedas naturais no curso do rio. “Eu não soltei. Fiquei ali segurando as orelhinhas do zinco”, disse ela. Mas foram outras orelhas que ouviram seu grito de socorro: Luiz Pertille e Leandro Gonçalves, que lançaram para ela uma corda e a salvaram. O comovente foi quando Janete percebeu que os dois foram justamente os pedreiros que construíram sua nova casa, no último verão, casa agora perdida.
Delci Silveira, agricultora de 65 anos, moradora no distrito de Rebentona, não sabendo nadar, se agarrou em Arlindo, seu marido, e desceram juntos na correnteza do Rio Pardo. Nadaram por cerca de 80 metros até chegarem a um aterro de contenção na margem do rio, onde esperaram 40 horas até serem resgatados. Mas, se o marido era em parte seu telhado, ela também serviu de telhado para outras vidas: “Nas minhas costas, eu carregava um saco com meus três cachorrinhos pinscher, um deles surdo e a outra cega, que eu não abandonaria por nada deste mundo”.
As urgências são muitas neste momento. A reconstrução será difícil, desafiadora e levará muito tempo. Vamos precisar urgentemente saber por que cenários como esses acontecem. Em que medida as gestões políticas, violentando vorazmente o meio ambiente, acionam essas catástrofes? Por que falhamos nos investimentos e nas estratégias de prevenção? As forças de Caramelo, Viviane, Janete e Delci precisarão nos acompanhar por muito tempo, pois nos deixam o exemplo de que para viver é preciso resistir e nadar de forma convicta contra a corrente. Não queremos mais a correnteza que destrói o que vive.