Um infeliz cenário pandêmico vivido por brasileiros agora é realidade na China: hospitais lotados, filas em necrotérios e mortos em casa. O país asiático enfrenta sua maior onda de coronavírus, também a maior já enfrentada por qualquer nação. Modelos matemáticos preveem entre 1 milhão e 2 milhões de chineses mortos nas próximas semanas, o equivalente à população de Porto Alegre, com cerca de 1,4 milhão de habitantes.
O cenário ocorre após o governo da China, país de 1,42 bilhão de habitantes, desistir da política de covid zero, que isolava a população com resultado positivo. Além da queda de restrições, não há mais política de testagem em massa e casos sintomáticos deixaram de ser reportados.
A consultoria de inteligência de dados britânica Airfinity prevê que a atual onda atinja pico de 3,7 milhões de infecções diárias e que uma segunda onda, em março, culmine em 4,2 milhões de casos ao dia. A tendência é de piora nas regiões de Pequim e Guangdong.
O epidemiologista chinês Eric Feigl-Ding, professor na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, citou em uma rede social outra estimativa, de que, nos próximos 90 dias, 60% da população chinesa seja contaminada, o que equivale a 10% da população do planeta.
A falta de transparência do governo chinês dificulta acompanhar o cenário com detalhes, portanto a dimensão dessa onda é feita através de levantamentos independentes em hospitais, necrotérios e cemitérios.
A forma de informar as mortes mudou: entram para estatísticas de covid-19 apenas os óbitos por doença respiratória, enquanto que, no resto do mundo, entram na conta as mortes por outras doenças ligadas ao coronavírus (como falência renal, por exemplo).
O cenário chinês
Especialistas destacam que há uma série de detalhes específicos que dificultam imaginar que uma onda parecida atingirá o resto do mundo. A principal singularidade é que grande parte dos idosos chineses não tomou terceira dose, a principal virada na proteção contra variantes da covid-19. Na China, 92% da população tomou uma dose e 89% tomaram duas, mas somente 57% dos habitantes receberam três aplicações, segundo dados do Our World in Data.
— A China tem uma situação particular: adotou uma política de covid zero, não teve nenhuma onda como no resto do mundo, mas não investiu em vacinação. Vacinou a população com a Coronavac, menos efetiva, e perto de 50% da população sequer tomou a terceira dose e não tem nem quarta. É uma população com pouca proteção. Em outros países, as pessoas se infectaram e se vacinaram, têm o que chamamos de imunidade híbrida. Na China, há um grande número de pessoas com pouca proteção vacinal, sejam pelo reduzido número com três doses, seja pela menor qualidade da vacina aplicada — diz o médico Alexandre Zavascki, coordenador da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor de Infectologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Idosos chineses estão muito mais desprotegidos do que brasileiros. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a cobertura de três doses até é menor do que entre os chineses na população em geral (55%), mas chega a 81% entre idosos com 80 anos ou mais e a quase 52% com quarta dose.
No país asiático, por outro lado, a quarta dose não é aplicada, e a terceira dose entre idosos tem baixa cobertura. Os mais velhos têm grande hesitação vacinal, devido à popularidade da tradicional medicina chinesa a aversão à medicina ocidental.
A preferência do governo chinês por vacinas de vírus inativado, como a CoronaVac, inclusive na terceira dose, também favorece o crescimento da onda, observa o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale.
— A China ficou com a política de covid zero além do período possível, não avançou o suficiente com as vacinas e não introduziu as bivalentes. A maior parte da população idosa está vacinada apenas com duas doses de CoronaVac, o que é um risco enorme, sem reforço e sem outras vacinas. É por isso que se insiste tanto no Brasil sobre a importância da dose de reforço, que faz toda a diferença com novas variantes — diz o virologista.
Vacinas de vírus inativado, como a CoronaVac, foram importantes para começar a combater a pandemia quando faltavam imunizantes. Todavia, após o surgimento de novas variantes, ficou claro para a ciência a necessidade de tomar doses de reforço com tecnologias diferentes, como Pfizer, AstraZeneca e Moderna, que geram mais estímulos ao sistema imune e elevam as defesas contra agravamento da doença.
— O Brasil fez um mix de vacina com CoronaVac e bastante AstraZeneca e Pfizer. No passado, não cabia ser sommelier porque não tinha para todo mundo. Mas, hoje, sabemos que as vacinas mais seguras são da Pfizer e AstraZeneca. Na China, usaram principalmente vacinas de vírus inativado, como CoronaVac, que são menos efetivas, e são usadas, inclusive, na dose de reforço. São baixas as coberturas de reforço para adultos com 50 anos e ainda menores entre a população idosa — destaca o médico Alexandre Naime, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A cepa mais prevalente nesta onda é uma nova subvariante da Ômicron, a BF.7 — já presente na Europa, nos Estados Unidos e na Índia, mas sem grandes repercussões, ao contrário da China.
A BF.7 é ainda mais transmissível do que as “irmãs”, é incubada em um período menor e tem grande capacidade de infecção, seja para quem já adoeceu antes ou foi vacinado, declarou Li Tongzeng, médico do Hospital Xiaotangshan de Pequim, ao jornal chinês Global Times.
Para entender o quão infecciosa é essa nova subvariante, alguns cálculos apontam que sua taxa de reprodução, chamada de R, seja de 10 a 18,6 — isso significa que uma pessoa transmite o Sars-Cov-2 para até 18 indivíduos. Na Ômicron original, a taxa de reprodução é de cerca de cinco.
Riscos para o Brasil
Há dois riscos na onda na China para o resto do mundo, destacam especialistas. O primeiro é o de que uma nova variante possa ser exportada para outros países e modificar a relativa calmaria que o mundo ocidental vive.
— Quando temos grande circulação de vírus, há cenário para nova variante. Vimos isso com a Alfa no Reino Unido, com a Beta na África do Sul, com a Gama no Brasil, com a Delta na Índia e com a Ômicron na África. Há um perigo real de criar nova variante. O impacto talvez não seja tão grande, grande parte da população do Brasil está vacinada e tem a dose reforço — reflete o médico infectologista Alexandre Naime.
O outro risco é de falta ou encarecimento de insumos médicos no mercado internacional. A China é uma produtora mundial de respiradores mecânicos, máscaras, antibióticos e outros medicamentos. Uma grande demanda lá pode dificultar a oferta em solo brasileiro, o que exigirá preparação e jogo de cintura de gestores de saúde.