A possibilidade de realizar um transplante cardíaco em pacientes pediátricos vem mudando a vida de crianças e adolescentes há mais de três décadas no Brasil. A estudante gaúcha Laura Nathally Santanna da Silva, 15 anos, e o advogado mineiro Matheus de Melo Magalhães, 29, são exemplos de pessoas que ganharam uma nova chance graças ao procedimento. Desde então, muitos avanços ocorreram no setor, mas ainda há dificuldades a serem dribladas.
De acordo com o diretor da cirurgia cardíaca pediátrica do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Marcelo Biscegli Jatene, também professor da USP e coordenador da cirurgia pediátrica do Hospital do Coração (Hcor), o primeiro transplante cardíaco do mundo em um recém-nascido foi realizado em 1985, pelo cirurgião Leonard Bailey, que liderava um grupo de pesquisa sobre o tema em Loma Linda, na Califórnia.
Jatene acredita que, nas três últimas décadas, cerca de 500 transplantes pediátricos de coração tenham sido realizados no Brasil:
— O Brasil tem alguns centros sólidos em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná. Se somarmos a experiência de todos esses centros nos últimos 30 anos, acredito que cheguemos a um número próximo a esse.
Leia aqui as outras partes desta reportagem:
Primeira parte: Transplantes pediátricos de coração representam vida nova para os pequenos pacientes
Terceira parte: A história do transplante cardíaco pediátrico e o que ainda precisa evoluir no Brasil
Em palestra sobre o tema no Congresso Mundial e Brasileiro de Cardiologia deste ano, o médico citou números da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) que mostram que o Brasil tem uma necessidade estimada de transplante de coração em quase 1,7 mil pacientes adultos e pediátricos por ano. No entanto, em 2021, foram realizadas somente 330 cirurgias. Conforme dados do Ministério da Saúde, 43 delas foram em pessoas de zero a 17 anos.
Até agosto, ocorreram 25 transplantes cardíacos nesta faixa etária no país em 2022, sendo dois no Rio Grande do Sul, de acordo com a pasta. E, até junho, segundo a ABTO, havia 47 pacientes pediátricos ativos à espera por um coração no país – cinco deles no Estado. No InCor, a média dos últimos cinco anos é de 25 a 30 crianças de diferentes idades esperando por um transplante.
— O transplante é um tratamento efetivo para diferentes cardiopatias. Os resultados são consistentes e vêm melhorando, com novos imunossupressores e a experiência das instituições. Mas ainda temos poucos doadores em unidades pediátricas — disse Jatene, citando outros entraves como a falta de estrutura adequada em hospitais, a necessidade de compatibilidade de peso, a logística de captação de órgãos e a recusa das famílias.
No Rio Grande do Sul, o primeiro transplante cardíaco pediátrico foi realizado em 16 de outubro de 1990, no Instituto de Cardiologia, em Porto Alegre. O paciente, de nove anos, tinha cardiomiopatia dilata e sobreviveu por um dia, morrendo em função de uma rejeição hiperaguda. A instituição e a Santa Casa são os centros do Estado que fazem esse tipo de operação, conforme Aline Medeiros Botta, intensivista pediátrica responsável pelo Programa de Transplante Cardíaco Pediátrico do Hospital da Criança Santo Antônio, que começou seu processo em 2000.
Desde então, o Instituto de Cardiologia transplantou 26 pacientes, sendo que seis deles, todos operados nos últimos 10 anos, seguem vivos, afirma Sílvia Casonato, cardiologista responsável pela equipe pediátrica da instituição desde 2019. O hospital costuma fazer um ou dois transplantes pediátricos por ano e, atualmente, tem quatro pessoas na lista de espera – a menor com quatro anos e a maior com 15.
Já o serviço da Santa Casa realizou 31 transplantes e, hoje, tem cinco pacientes pediátricos na lista de espera. Aline relata que, só neste ano, outros dois morreram aguardando um novo coração.
— Não oferecemos o transplante para todos, mas apenas quando não temos mais nenhum tratamento convencional para o paciente. Isso porque o coração transplantado tem uma vida útil, que pode ser de 20 ou 30 anos. Então, ao transplantar um bebê, sabemos que ele vai chegar na vida adulta precisando de um novo órgão — esclarece a intensivista.
Além da dificuldade para conseguir um órgão pediátrico, em que doador e receptor tenham pesos semelhantes e a mesma tipagem sanguínea e que a família aceite doar em um momento de muita dor, a especialista da Santa Casa destaca que o coração, especificamente, é um órgão muito difícil de transplantar. Isso porque, diferentemente dos rins, por exemplo, que podem ficar quase 24 horas fora do organismo, o coração é muito delicado e resiste por no máximo quatro horas entre a retirada do doador e a implantação no receptor.
— Para fazer o transplante, precisamos de um coração que sirva para o peso do paciente e que não seja de uma pessoa muito mais velha. Sabemos que corações com mais de 10 anos de diferença entre doador e receptor tem uma chance maior tanto de rejeição quanto de redução de vida útil do enxerto — acrescenta Silvia.
Fora isso, Aline aponta que a pandemia teve um impacto negativo sobre as ofertas de doação de órgãos, reduzindo os transplantes em todas as áreas – fato que fez com que alguns pacientes, com quadros graves, morressem na lista de espera.