Na manhã de 31 de outubro de 2007, Débora Larissa Santanna entra no banheiro do quarto onde a filha de 10 meses está, bem em frente ao posto de enfermagem, no Hospital da Criança Santo Antônio, em Porto Alegre. Fecha a porta e se ajoelha sobre o piso frio. Chorando, fala com Deus:
— Senhor, por favor, me dá uma prova de que não estou falando em vão as coisas que estou falando. Não acredito que o senhor me deu a Laura e agora vai tirá-la de mim. Tenho tanto amor para dar para essa criança.
O prognóstico dado pelos médicos era de que Laura Nathally Santanna da Silva poderia ter apenas mais alguns dias de vida. Mas na madrugada de 1º de novembro, uma batida na porta do quarto faz Débora despertar do breve cochilo debaixo do leito da filha e levantar depressa para viver o que ela depois caracterizaria como a resposta aos seus pedidos em oração.
Com uma bacia, um pote com sabonete líquido e uma pequena camisola em mãos, a enfermeira parada na porta pergunta mais de uma vez se está tudo bem e dá instruções à mãe:
— Virá gente te ajudar, mas entra lá e dá um banho de paninho na Laura, só na parte da frente, na parte de cima, onde fica o peito. Bem devagar, só passa o paninho e espera, porque o coraçãozinho dela está vindo e ela vai fazer o transplante.
Débora segue a orientação. Perto das 8h30min, após conversar com outros profissionais da equipe e ligar para a família, entrega a filha nos braços do médico anestesista e só volta a vê-la seis horas depois, quando o coração que era de outra criança já bate em seu peito.
— Quando a enfermeira falou, parecia que eu já sabia, porque tinha certeza de que ela ficaria bem, que alguma coisa iria acontecer — recorda Débora, hoje com 35 anos.
A data lembrada em detalhes pela mãe completa 15 anos na terça-feira (1º), mas operações desse tipo no setor pediátrico, que considera pessoas de zero a 18 anos, são realizadas no Brasil há mais de três décadas. Neste domingo, por exemplo, o Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) comemora os 30 anos do primeiro transplante cardíaco em um recém-nascido que recebeu alta.
Leia aqui as outras partes desta reportagem:
Segunda parte: Transplante pediátrico de coração tem avanços notáveis, mas características dificultam o procedimento
Terceira parte: A história do transplante cardíaco pediátrico e o que ainda precisa evoluir no Brasil
Os 15 anos de Laura
A palavra estampada na blusa preta, por baixo do conjunto de blazer e calça rosa claro, resume aquilo que Laura cresceu praticando: gratidão. A adolescente de sorriso largo e maquiagem nos olhos, que completa 16 anos em 5 de janeiro, nasceu saudável, em Osório, no Litoral Norte. Com quatro meses de vida, teve uma infecção respiratória viral, que afetou seu coração, gerando uma miocardite (inflamação do músculo cardíaco), que evoluiu para uma miocardiopatia dilatada grave.
Débora tinha 19 anos naquela época e lembra de entrar “em transe” quando o primeiro pediatra, ainda no litoral gaúcho, disse que a filha apresentava um aumento de volume cardíaco severo e que corria risco de morte. O diagnóstico concreto chegou no dia seguinte, já no Hospital São Lucas da PUCRS, na Capital, onde Laura foi imediatamente internada. Conforme o médico, ela teria de seis meses a um ano de vida, com episódios de convulsões e paradas cardiorrespiratórias.
Se essas coisas não tivessem acontecido, talvez eu nem estivesse aqui hoje. Estou aqui, bem e feliz, posso fazer outras coisas e tenho pessoas que me ajudam com isso.
LAURA NATHALLY SANTANNA DA SILVA, 15 ANOS
Paciente que recebeu transplante de coração aos 10 meses
Em setembro de 2007, Laura foi transferida para o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e, depois, para a Santa Casa de Misericórdia. Entrou na lista de espera de transplante em 26 de outubro do mesmo ano. Na época, foi a paciente mais nova a receber um coração na Santa Casa. Teve alta três semanas após a cirurgia. Mesmo com os cuidados necessários, idas semanais ao hospital para sessões de fisioterapia e uso contínuo de imunossupressores, a menina sempre se adaptou às limitações e teve uma infância normal: foi à escola, à praia, fez amigos, andou de bicicleta, correu e brincou.
— Lembro pouco da minha infância, mas sempre tive uma recordação muito boa do hospital, sobretudo o que aconteceu lá. Minha mãe me ensinou a agradecer pela vida, então eu lido muito bem com tudo isso — relata Laura, destacando que até hoje lhe perguntam sobre suas cicatrizes e que sempre gostou de falar sobre tudo que passou.
Em 2019, ela teve um linfoma no intestino, em função dos medicamentos que toma desde pequena. Fez tratamento com imunoterapia e, em março de 2020, já estava melhor. No ano seguinte, porém, descobriu um linfoma de grandes células e precisou fazer quimioterapia – tratamento encerrado em setembro de 2021.
Matriculada no 1º ano do Ensino Médio, em uma escola de Osório, Laura hoje exibe um cabelo mais curto do que costumava usar, mas garante que gosta do novo visual e que é grata pelos momentos bons e ruins que viveu.
— Quando conto sobre mim, vem um sentimento de “uau, isso aconteceu mesmo”, mas acho que a gratidão prevalece. Se essas coisas não tivessem acontecido, talvez eu nem estivesse aqui hoje. Estou aqui, bem e feliz, posso fazer outras coisas e tenho pessoas que me ajudam com isso — aponta a jovem.
Cirurgia em bebê de 14 dias
Em São Paulo, 15 anos antes do transplante de Laura, os médicos Estela Azeka e Marcelo Biscegli Jatene integravam a equipe que possibilitou que um bebê de 14 dias recebesse um novo coração. A operação bem sucedida foi realizada em 30 de outubro de 1992, uma sexta-feira, no Instituto do Coração (InCor), na capital paulista, pelo cirurgião Miguel Barbero Marcial.
Até então, a instituição já havia realizado transplantes cardíacos em crianças maiores e adolescentes, que estavam na faixa de idade pediátrica, mas dentro do grupo adulto. Diretor da cirurgia cardíaca pediátrica do InCor, que participou da captação e do implante do órgão, Jatene explica que não existia um grupo específico de transplante cardíaco pediátrico, equipe que foi organizada a partir do final de 1991, culminando no primeiro transplante de recém nascido na instituição.
De acordo com a cardiologista pediátrica, que é chefe clínica de transplante cardíaco, insuficiência cardíaca e ventrículo artificial em crianças e adultos com cardiopatia congênita da instituição, o paciente tinha hipoplasia do coração esquerdo, ou seja, havia nascido sem um dos ventrículos.
— A cirurgia idealizada na ocasião tinha uma mortalidade muito alta, então ele foi indicado para o transplante de coração. Depois, ficou um mês internado, recebeu alta e foi para casa, mas no primeiro retorno já tinha sinais de rejeição. Ele faleceu no segundo dia do tratamento — explica Estela, que acompanhou todo o caso.
A especialista afirma que o transplante é indicado para pacientes portadores de cardiopatias congênitas (que nascem com alguma doença cardíaca) e para aqueles com cardiomiopatias. Para Estela, a cirurgia de 1992 abriu caminho para que outras crianças tivessem uma segunda chance para viver:
— Antes, víamos as crianças morrendo. Hoje, com o avanço das técnicas, é possível fazer uma cirurgia paliativa para que o bebê com esse tipo de problema sobreviva e faça mais dois estágios paliativos. Mas, mesmo nessa situação, ele pode precisar de um transplante.
Entre as possíveis complicações dessa cirurgia está a falência do enxerto no pós-operatório imediato, as rejeições aguda, humoral e mista, as infecções, o câncer pós-transplante, a doença vascular do enxerto e a insuficiência renal.
O terceiro coração de Matheus
Conforme Estela, o InCor já realizou mais de 280 transplantes cardíacos pediátricos. Entre os pacientes está Matheus de Melo Magalhães, que recebeu seu segundo coração em março de 1995, quando tinha apenas um ano e nove meses, e foi acompanhado pela cardiologista.
Natural de Pouso Alegre (MG), Minas Gerais, Matheus tinha uma cardiomiopatia restritiva/ hipertrófica, que fazia com que seu coração não relaxasse de forma adequada, deixando de bombear sangue para o corpo todo. Os médicos tentaram fazer o tratamento com marca-passo e medicamentos, mas não obtiveram resposta. Por isso, foi preciso recorrer ao transplante.
Aos 29 anos, o advogado mineiro e lembra de ter tido uma infância “mais ou menos normal”, apesar das consultas médicas e adaptações. Sempre muito consciente sobre os cuidados necessários, afirma que não participava das aulas de Educação Física, comia ou corria como as outras crianças. Mas não deixava de se divertir: jogava videogame, assistia a filmes, jogava futebol na rua e brincava d e pega-pega e esconde-esconde com os amigos do bairro.
— Tenho muita lembrança de hospital, principalmente de São Paulo, por conta das intervenções, dos exames, das rejeições e dos tratamentos que foram feitos. Mas também tenho daqui de Minas, de brincar, de ter uma infância parecida com o normal, mas com as consequências de uma pessoa transplantada — relata Matheus, que com seis anos também teve um linfoma e precisou passar por quimioterapia.
Já na adolescência, começou a ter problemas renais, devido aos imunossupressores. O mineiro descreve esse período como o que lhe exigiu mais resistência emocional, já que a perda da função renal estava impondo limitações físicas e afetando sua aparência, o que gerava uma grande frustração. A partir dos 17 anos, a situação de Matheus ficou mais complicada: em paralelo à questão renal, o coração passou a apresentar indícios de necessidade de retransplante:
— O que mais me afetava nessa época em relação ao coração era o cansaço. Eu me sentia muito cansado em tarefas absolutamente simples, como colocar um tênis. Eu não conseguia andar, falar e respirar ao mesmo tempo.
Mesmo nessa situação, o jovem finalizou o Ensino Médio e ingressou na faculdade de Direito em 2012. Dois anos depois, porém, teve uma piora significativa e precisou ser internado. Além disso, para sua surpresa, entrou na fila para o retransplante de coração e foi obrigado a interromper a graduação por um ano. O terceiro coração de Matheus chegou em julho de 2014, em meio à Copa do Mundo realizada no Brasil. A internação durou seis meses e ele completou 21 anos dentro do hospital. Logo após a cirurgia, também precisou fazer hemodiálise e entrar na fila do transplante renal, que foi realizado em janeiro de 2015.
Desde então, o novo coração tem funcionado perfeitamente. Matheus fez estágio, se formou, concluiu duas pós-graduações e começou a trabalhar de casa. Teve de passar por um novo transplante de rim, em maio de 2021, e novamente precisa de retransplante, em decorrência de um vírus que se alojou no órgão. O mineiro não costuma falar abertamente sobre o que já enfrentou, para evitar que isso o defina. Acredita que as pessoas podem conhecê-lo e gostar dele, sem saber que é transplantado. Também se esforça para se manter bem, mesmo tendo motivos para não conseguir.
Eu poderia não estar bem, não estar feliz, poderia estar triste e me lamentando, mas acredito que isso não vai agregar em nada na minha vida.
MATHEUS DE MELO MAGALHÃES, 29 ANOS
Paciente que já passou por transplante de coração duas vezes
— Acho que estar de bem com a vida faz parte não só do meu jeito de ser, mas também de toda a minha experiência. Eu poderia não estar bem, não estar feliz, poderia estar triste e me lamentando, mas acredito que isso não vai agregar em nada na minha vida — destaca, apontando que sempre faz isso em gratidão aos pais.
— Tenho muito a agradecer a Deus por todas as pessoas que colocou na minha vida, pelo privilégio de poder viver, respirar e ouvir meu coração bater por mais um dia. E também a todos que se dispuseram a doar os órgãos de seus familiares. É uma dívida impagável — finaliza.